POÉTICAS EM FLOR
Sobre a antologia

OUTRAS PRAIAS

  13 Poetas Brasileiros Emergentes  
OTHER SHORES
  13 Emerging Brazilian Poets  

 

                    Antologias sempre!, imperfeitas mas essenciais, por vezes valem por toda uma obra. Vide Safo de Lesbos, todos os códices, carminas, os cancioneiros medievais; o que seria da literatura sem eles? Pobre língua portuguesa se perdêssemos Martin Codax! Digam o que disserem, o tempo cala as más línguas, não os bons poetas.

                    Aportar em Outras Praias/Other Shores, recente lançamento da Iluminuras, pode ser de múltiplas revelações: treze poetas emergindo do mar revolto da poesia — a contragosto daquele círculo, vicioso e refratário a novidades, que sombriamente domina os exíguos espaços da poesia na imprensa. Bilingüe também, nos mesmos moldes daquela outra excelente antologia Nothing the Sun Could not Explain (Nada que o sol não explique), para inglês ver e causar enlevos além-mar, num desfile de diversas poéticas, do que há de melhor das duas últimas décadas.

                    Dos poetas, alguns já conhecidos, outros nem tanto, destaque-se que vários deles também fazem musica e já participaram de vários CDs, entre eles o Antonio Cícero, grande letrista da MPB e troubadour de primeira — seus poemas tem trânsito livre entre o papel e a canção. Encarnando o dito de Heidegger, ele simultaneamente apresenta-nos o questionamento ontológico do filósofo na resposta do poeta, ele mesmo poeta-filósofo: "VOZ // Orelha, ouvido, labirinto: / perdida em mim a voz de outro ecoa. / Minto: / perversamente sou-a".

                    Eco deste poema se faz em DIALETOS de Jaques Mario Brand: "Sentir dobrado, / ouvir distante. // Falar uníssono / (ou superposto) / como os amantes." Já em seu IMAGISM aflora, literalmente, a alma do haikai: "Uma porta entreaberta, / Uma janela escancarada. // O vaso de flores captura / pétalas de luz da manhã."

                    Mais ainda neste notável poema de Rodrigo Garcia Lopes, em que se inscreve e sobreescreve um haikai em negrito: "cerejas / podem // parecer / amargas // se você nada sabe / do solitário sabor // experimente-as / antes // quando / ainda // forem / flores". Este recurso do poema dentro do poema é aqui muito bem explorado, à moda de e. e. cummings, exatamente como faz Peter Greenaway em seus filmes neobarrocos como A Última Tempestade (Prospero’s Books) ou O Livro de Cabeceira (The Pillow Book), em que flutuam sobre a grande imagem principal pequenas cenas e legendas.

                    Poemas com o radical sabor do haikai que, embora não o sejam, saltam aos olhos como se fossem. Fica aqui a minha "grata satisfação" por encontrar quase todas as dez qualidades do haikai (segundo Leminski, nosso mestre) nestes poemas, livres daquela camisa de força kitch parnasiana em que se travestiu o haikai oficial no Brasil, cujo pecado capital foi a dissociação forma-conteúdo, na exclusão da visualidade pelo enrijecimento das regras verbais e pela exaustão repetitiva da imagética frouxa e adocicada. Nenhum desses males afeta a poesia desta safra. Em Outras Praias, como bem observa o seu organizador, podemos afirmar que esses haikais ocasionalmente "incorporados" estão dialogando mais com a tradição japonesa, e menos com a forma fixa. Leminski, salvo engano, falava que seria impossível escrever um haikai seguindo a métrica fixa, dadas as diferenças substanciais das línguas japonesa e portuguesa do Brasil (matéria que é muito bem explorada por Haroldo de Campos no livro Ideograma — Cultrix). Em Outras Praias, de certa maneira, um haikai sobreposto é uma revitalização sem cair na armadilha da métrica fixa, já que, na tradição oriental, costuma-se escrever haikais em diários, ou seja, dentro de um contexto mais dilatado.

                    São vários os caminhos a explorar nesse livro. Pode-se passear ludicamente por jogos de luz, em chiaro-oscuro barroco, deslocando a razão na vertigem dos sentidos, por poemas como NOMOS (espécie de canção mágica grega): "No claro ou no breu / no branco, no escuro / clamo por luz / mas oro na treva ..." de Alexandre Horner, ou: "Toda possibilidade / venha // De onde vier, da luz batendo & fazendo / sombras" em CHANCE de Rodrigo Garcia Lopes, ou: "...As luzes / dançam / quando ascendem. / E cada luz é um olho. // Um Shiva Eros Dionisio / — vocês estão aí? —" em E CADA LUZ É UM OLHO de Ricardo Corona, ou ainda: "... a luz não se abstém / antes se insinua / onde ao grafite ela convém" em EXERCÍCIO DE DESENHO de Júlio Castañon Guimarães; entre outros. Nessa mesma linha, é possível ainda traçar outros paradigmas comuns entre os poetas, como por exemplo a lua, a praia, o sol, as mitologias, os poemas metalingüísticos, num verdadeiro diálogo intertextual. Ainda que haja uma diversidade nas abordagens, próprias do estilo pessoal de cada poeta, essas coincidências temáticas conferem uma certa unidade ao livro, uma unidade dentro da diversidade.

                    Seguindo uma tradição de grandes poetas, como Baudelaire, Eliot, Drummond, Gullar, Haroldo de Campos, a dos poemas sobre gatos (há até site na Internet sobre o assunto), Neuza Pinheiro, com aguçadíssima sensibilidade, nos apresenta este poema: "gatos... // sempre mantêm / aquela postura / de pluma // e lá se vão / uma a uma / pé ante pé / pétala sobrepétala // como se pedra / fosse espuma" . Aqui, a meu ver, num retrato mais que perfeito do gato, sente-se na flor da pele da linguagem a delicadeza felina da poeta. E faço aqui um apelo: a poesia precisa urgentemente de mulheres, não só das musas, mas de poetas!

                    Nessa linha da poesia de observação, Adriano Espíndola, com sua linguagem despojada de artificialismos, reapresenta-nos o cotidiano, que se desdobra fantástico e surpreendente, na relação que chamo de inputs e insights: "PRATELEIRAS // Entro no supermercado / da esquina. // Os objetos olham para mim, / extasiados, // ... envelhecem, / se quebram, se vão. // ... a vida em mim // é que é infiel / marca Breve..." e passamos do banal ao assombro das descobertas interiores. Isto tem o seu equivalente na prosa com linguagem de tensão transfigurada de Clarice Lispector, em que a realidade redesenha o mundo interior e vice-versa.

                    De uma sensualidade eletrizante, de eriçar libido, da poesia de Ademir Assunção é impossível se escapar ileso: "O VENENO DO ESCORPIÃO // ... minha poesia: / (musa ardente em dias de protesto / palavra quente em noites de delicias) / que você sempre seja / cereja / erótica delicadeza / & que de nós dois nus nos reste o pó / o pólen / que o vento espalha / & que as migalhas / caiam todas / (como na canção) / sobre a areia da praia / e do calçadão / de copacabana".

                    Maurício Arruda Mendonça, por sua vez, nos apresenta ALMA DE LAMA, poema que dialoga no tempo-espaço com o oriente e o barroco áureo, pela metáfora da transformação lama/alma, que tem estreita relação com a de Baudelaire da lama/ouro e com a de Octávio Paz da alma/chama: "o lótus nasce na água / ainda assim não reclama / quisera ter língua de lama / esse silêncio da flor / que cala às coisas que ama".

                    Outro clássico nessa seleção é ONDAS NA LUA CHEIA de Ricardo Corona, em que se aplica a lição poundiana do renovar: "A lua que tudo assiste / agora incide. // O mar / — sob efeito — / ergue-se / crispado de ondas espumantes..." a mesma emoção que Safo um dia disse na antiga Grécia: "em torno a Selene esplendida / os astros / recolhem sua forma lúcida / quando plena ela mais resplende / alta / argêntea" (trad. H. de Campos), e mais adiante numa sequência de paronomásias e aliterações em jogo de reversos e andamentos: "Ondas deslizantes / redesenham / onde outras ondas ainda / desredesenharão, / fluindo / no fluxo / da influência..." Sua poesia helenizante e barroquizante sabe e resplende ao que há de melhor.

                    Enfim, a título de uma rápida apresentação, reunidos aqui pequenos relâmpagos sobre uma obra que se desdobra em muitas faces, num deslumbre da aventura, fica o desafio ao leitor de percorrer essas praias, dar os seus mergulhos e dourar a pele de uma nova sensibilidade.

                    A poesia está viva, sim, para os vivos!

 

ELSON FRÓES
in Medusa nº 1, pág. 37-41, novembro, 1998.


Veja alguns poemas da antologia em: Poesia anos 80 - 90



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