um poeta em busca da beleza difícil

Claudio Daniel

 

Augusto de Campos é um poeta com vocação para o futuro. Na época do “pós-moderno”, que se traduz no retorno a formas neoclássicas ou numa releitura do Modernismo dos anos 30, ele insiste em “desafinar o coro dos contentes”. À margem da margem, recusa o tom confessional e discursivo e insiste na busca da beleza difícil. Com os novos recursos oferecidos pela informática, Augusto vem realizando experiências com a poesia digital, que une a cor, o som, a palavra e o movimento, retomando o ideário da poesia concreta, com mais vigor e rigor. Tradutor incansável, Augusto acaba de concluir uma nova coletânea de versos de Rainer Maria Rilke, talvez o maior poeta de língua alemã deste século. O livro, com 51 poemas, está à espera de editor. A tradução — ou “recriação” — , como ele prefere chamar, é “uma forma de aprendizado, de crítica criativa e de conversa inteligente”. Com o poeta norte-americano e. e. cummings, por exemplo, ele mantém um diálogo de quase quatro décadas, que vem inseminando a sua própria produção. Para os que pensam que a arte poética está exaurida, o poeta sentencia: “Tudo está dito. Tudo é infinito”.

 

Você está escrevendo um novo livro? Fale um pouco sobre os seus atuais projetos.

— No momento, não estou preparando nenhum novo livro. Venho-me dedicando, nos últimos tempos, principalmente à digitalização e à animação poética, o que resultou nos Clip­Poemas, apresentados na exposição Arte Suporte Computador, na Casa das Rosas, em 1997, e no material que está agora no meu site oficial http://uol.com.br/augustodecampos. Isso sem falar nos CDs Poesia é Risco e Ouvindo Oswald, com Cid Campos nas criações musicais, e no espetáculo Poesia é Risco, que tem também a colaboração do vídeopoeta Walter Silveira. Essas atividades "intermídia" têm tomado todo o meu tempo de criação poética, sobrepondo-se, na minha história pessoal, à idéia de livro de poemas. Mas tenho, pronta, à espera de editor, uma nova antologia dos "poemas-coisa" de Rilke, com 31 poemas a mais do que a primeira edição, já esgotada, que tinha apenas 20 poemas.

Desde o final dos anos 80, você tem feito experiências com a poesia digital, que une imagem, som e movimento. Pretende lançar um CD Rom com alguns desses novos poemas?

— Desde que um amigo meu, o professor Charles Perrone, da Universidade da Flórida, Gainesville, em fins de 1984, me mandou um prospecto do primeiro Mac, lançado justamente naquele ano, fiquei namorando os computadores pessoais. Só vim a ter o meu primeiro "Classic" em 1991, mas naquele mesmo ano de 84 eu já entrava em contato com um computador de alta resolução, Sistema Intergraph, convidado por Wagner Garcia e Mário Ramiro para participar de um pacote artístico patrocinado por aquela empresa. Com o auxílio deles e da equipe do "Olhar Eletrônico" pude então realizar o meu primeiro videoclip: uma versão em movimento do poema Pulsar (sincronizada com a música de Caetano Veloso), que chegou a ser divulgada pela televisão. A partir de 1991 pude enfronhar-me cada vez mais no mundo digital, passando por vários estágios de macintoxicação, até chegar ao ciberespaço. É claro que gostaria de fazer um CD Rom. Material não me falta. O que falta é apoio balístico-financeiro.

A crise do verso anunciada por Mallarmé, a seu ver, aponta para o fim da poesia como arte verbal, com a adoção dos meios eletrônicos, ou ainda é possível a experimentação no poema-texto?

— Não acho que a crise do verso aponte para o fim da poesia como arte verbal, mas para um redimensionamento estrutural do poema. Essa reestruturação começou a ser trabalhada de vários modos pelas vanguardas do início do século, mas foi interrompida pela intervenção de duas grandes guerras e de duas ditaduras, a nazista e a stalinista, que perseguiram tenazmente os artistas experimentais e retardaram a evolução. Retomada, sob a inspiração de Mallarmé, pela poesia concreta, na segunda metade do século, essa abertura estrutural continha em germe os pressupostos das linguagens que iriam encontrar o seu "habitat" natural no contexto das novas tecnologias eletrônicas. Nesse contexto, a palavra não deixa de ter lugar, mas tem que ser reciclada, entrando em contato direto com a dimensão não-verbal, as imagens e os sons, e passa a ser interdisciplinar, intertextual e muitas vezes interativa, além de projetar-se em parâmetros materiais mais amplos, que devem levar em conta critérios de forma, cor, espaço e movimento. Não há porque excluir o livro ou outros suportes matéricos e textuais, que seguem o seu curso e até se beneficiam da tecnologia digital no processo de sua feitura. O que ocorre é a abertura insopitável para o universo virtual, em situações em que a palavra, potencializada em todos os seus parâmetros, já não cabe no livro. Suponho que haverá ainda, por muito tempo, lugar para aqueles que prefiram trabalhar exclusivamente as poéticas do texto fora do contexto das novas mídias eletrônicas. Por outro lado, insisto em sublinhar, o mero domínio do computador não transforma ninguém, só por só, em grande poeta, e as facilidades da engenharia digital devem preocupar sempre aqueles que a usam. Acima de tudo, a grande arte é sempre difícil. "Sem presumir o que sairá daqui, nada ou quase uma arte", dizia Mallarmé, há um século, no prefácio do Lance de dados, que antecipou todos os lances. E Pound, inventor de tudo: "Beauty is difficult". E Schoenberg, mestre de todos, aos seus alunos: "Eu vim aqui para tornar impossível a vocês compor música". Daí surgiram Anton Webern, Alban Berg e John Cage.

Fale um pouco sobre o seu método de trabalho. Costuma escrever todos os dias? Quando escreve um poema, o que surge primeiro: o assunto, alguma palavra, o design ou algum recurso de linguagem? Tudo é planejado, ou em dado momento entra em ação o acaso?

— Trabalho todos os dias, mas poemas, mesmo, faço muito poucos. Traduzo muito mais poemas alheios do que faço os meus próprios. É uma forma de aprendizado, de crítica criativa e de conversa inteligente. Armazeno informações e me preparo, sem pressa. Mas não planejo racionalmente poemas. Uma forma, uma frase, uma imagem, um fato, uma emoção, uma palavra podem constituir um indício e precipitar um momento de tensão, a partir do qual se desencasula o poema, que, então sim, depois da chispa inicial, pode ser controlado, desenvolvido e aperfeiçoado com o know how adquirido. Não desdenho o acaso, ao qual até já dediquei um poema.

Em Música de invenção, você fez uma ampla abordagem da música experimental do século XX. Aliás, sua preocupação nessa área está presente também em obras como O balanço da bossa, as traduções de Arnaut Daniel e do Pierrot Lunaire e as parcerias com Caetano Veloso. Qual é a importância da música para o seu trabalho poético?

— A importância da música é obviamente muito grande em meu trabalho, que começou sob o signo dela. Antes mesmo do lançamento oficial da poesia concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956, três poemas do Poetamenos foram apresentados no Teatro de Arena, num espetáculo que já levava o título de Música e Poesia Concreta, ao lado de Machaut e Webern, em 1955. O trabalho com Cid Campos, no CD Poesia é risco e nos espetáculos do mesmo nome testemunham a continuidade da presença da música em minha atuação poética. Assim como o recente Música de invenção, que tenta alertar para a grande lacuna cultural deste fim de século, que é a paradoxal marginalização da música erudita moderna, da "música contemporânea", uma das mais fascinantes aventuras da criação artística do nosso tempo.

Augusto e Cid Campos gravando o CD Poesia é Risco (1994) - foto Julio Prieto
Augusto e Cid Campos gravando o CD Poesia é Risco (1994)
foto Julio Prieto

Você acaba de publicar uma nova edição, ampliada, dos poemas de cummings, autor que vem traduzindo desde os anos 50. A seu ver, a contribuição de cummings já está esgotada, ou ainda é possível aprender algo de novo com ele?

— cummings está mais vivo que nunca. Sua poesia é mais nova e mais atual do que a maior parte da que se lê hoje, considerando-se que houve nos últimos tempos, a pretexto de "pós-moderno" (na verdade, antes "anti" ou "contra"' moderno, quase sempre) um retrocesso na linguagem poética. cummings concilia liberdade (desmembra e intercepta frases, palavras e sílabas, dinamizando o poema e multiplicando as direções e as dimensões da leitura) e rigor (suas estruturas poéticas obdecem a processos de organização que se opõem às facilidades verbais), o que é raro. Há muito que aprender e que degustar em sua poesia.

Em Despoesia, sua mais recente coletânea poética, há diversas referências ao cosmo, ao quasar e ao quark.  A própria disposição espacial das palavras, em alguns poemas, recorda mapas celestes. De onde vem o seu namoro com a astronomia?

— No fundo, há, inelutavelmente, a sombra de Mallarmé e seu Lance de dados ("…exceto, talvez, uma constelação…"). Mas essa angústia ou inquietação cósmica é ao mesmo tempo muito humana e muito da nossa época, palco de tantos avanços na física e na cosmologia. Penso sempre nos poemas Pulsar e Quasar, de 1975, como mensagens numa garrafa cósmico-terrestre, à maneira daquela que foi enviada ao espaço, um ano antes, em sinais de rádio, do Observatório de Arecibo, ou daquela outra, que a sonda espacial Voyager levou, em 1977, num "disco interestelar" , à procura de um hipotético decifrador extraterreno. Não é essa uma boa metáfora para a poesia, sempre em busca de "vida inteligente", "alienígenas espertos", aqui mesmo na terra, e já agora no ciberespaço?

Em sua arqueologia das poéticas de invenção, vários autores foram resgatados de um injusto esquecimento, como Sousândrade e Kilkerry. Que outros poetas, em sua opinião, merecem ser resgatados para o repertório de alto padrão da poesia brasileira?

— Continuo achando que os casos de Sousândrade e Kilkerry são os mais significativos, considerando que os demais poetas não-canônicos relevantes, como Gregório, por muito tempo censurado e marginalizado, têm hoje boa divulgação. Não se pode "descobrir" poetas de alto padrão a todo momento. E mesmo em relação àqueles dois grandes poetas encontramos dificuldades enormes para sua difusão. Basta que se diga que os dois livros com o "corpus" essencial de suas obras, Re-Visão de Sousândrade e Re-Visão de Kilkerry, estão há muito esgotados, subsistindo, de Sousândrade, apenas a pequena antologia que Haroldo e eu fizemos para a Agir (em segunda edição, atualizada).

Qual é a sua opinião sobre dois movimentos estéticos recentes, o Neobarroco e a Language poetry?

— A meu ver, nem o "Neobarroco" nem a "Language poetry" constituem propriamente movimentos. A expressão "neobarroco" caracteriza antes uma interpretação de certos aspectos estilísticos da linguagem literária do nosso tempo, especialmente da América Latina de língua espanhola. Mas, se se quiser, poder-se-á encontrar estilemas barrocos em Joyce e até na poesia concreta. O grupo da "Language poetry" é mais definido, por ter se concentrado fisicamente em torno de uma revista, cujo primeiro número apareceu em 1978, mas não tem a envergadura de um movimento. Chamou a atenção para a materialidade da palavra, no contexto da poesia norte-americana, mas essa preocupação já fora explicitada, com maior nitidez e amplitude, em teoria e prática, pela poesia concreta, desde a década de 50. Acho a maioria dos poetas ligados à revista muito prejudicada pela opacidade da "escrita não-referencial", derivada dos "botões tenros" de Gertrude Stein, e muito ingurgitada de algaravia crítica. Ainda assim, a ênfase na materialidade do texto fez do grupo, no mínimo, um pólo de discussão relevante no âmbito da poesia norte-americana contemporânea.

Tudo está dito? Ou ainda há o que dizer, em poesia?

— Tudo está dito. Tudo é infinito.

 

dois poemas de
e. e. cummings:

 

33 (im)c-a-t(mo b,i;l:e FallleA ps!fl OattumblI sh?dr IftwhirlF (U1)(1Y) &&& away wanders: exact ly;as if not hing had,ever happ ene D
33 (i)g-a-t-o(m) ó,v;e:l SobresssA It!fl UtuatombaN do?de SligiranteM (En)(tE) &&& passeia:exata mente;como se nad a tivesse,suce did O
trad. Augusto de Campos
62 thing no is(of all things which are who) so alive quite as one star kneeling whom to (which disappear will in a now) i say my here


62 coisa é nenhuma(de todas as coisas que são quem)tão bela como uma só estrela ajoelhando qual à (que já vai embora indo num aqui) eu digo meu agora
trad. Augusto de Campos

 

do livro   p o e m (a) s    e. e. cummings, ed. Francisco Alves, RJ, 1999
veja também: outras traduções nas páginas e-cummings

 

Û motz e.l
son
Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes