O CORVO


Em certa triste meia-noite, quando eu deprimido e quase dormitando
Lia um volume singular de esquecidas artes imemoriais,
Ouvi baterem de repente, como que muito levemente,
À porta do meu quarto umas pancadas irreais;
«Uma visita», disse, «bate pancadas irreais...
Apenas isto, e nada mais.»

Ah, perfeitamente lembro que era agreste dezembro
E cada brasa enviava ao chão os seus clarões finais.
Quanto ansiava o dia! Aos livros eu pedia
Me fizessem esquecer a que os anjos, seus iguais,
Chamam Lenore, virgem radiosa, de quem os anjos são iguais...
Seu nome aqui, para nunca mais.
 
Da seda purpurina o rumor triste e vago na cortina
Enchia-me de temores não sentidos jamais.
Assim para a acalmia do meu peito eu repetia:
"É uma visita só, que pede entrada a horas tais...
É apenas isto e nada mais."
 
Fortaleci o coração e, sem qualquer hesitação,
"Senhor ou dama", perguntei, "realmente perdoais
A quem adormeceu? Tão de leve bateu
Realmente vossa mão, de leve, nos umbrais
Da porta..." E assim falando abri os meus umbrais...
Negrume só e nada mais.
 
Ali, as trevas espiando, muito tempo fiquei pensando,
Duvidando e sonhando sonhos nunca sonhados por mortais;
Mas o silêncio era constante e a paz das trevas incessante
E os sons, únicos sons sussurrados como ais
Foram do nome "Lenore" que eu soltei como em uns ais...
Isto somente e nada mais.
 
De volta ao interior, com a alma cheio de ardor,
Senti nova pancada, esta mais forte que as demais;
"É com certeza agora alguma coisa fora
Do postigo... Verei que são estes sinais.
Quando estiver mais calmo irei ver os sinais...
É o vento e nada mais."
 
As janelas abri de par em par e logo vi entrar
Esvoaçando agitado um grande corvo de eras primordiais
Nenhuma reverência me prestou, nem um só instante parou,
Mas junto à porta empoleirando-se com ares senhoriais,
Sobre um busto de Palas, com ares senhoriais,
Ficou pousado e nada mais.
 
A negra ave então desfez, pelo aspecto grave,
A minha melancolia, com seus gestos rituais,
"Embora", eu disse, "tosquiada tenhas a poupa, não és nada
De um covarde ou de um sinistro corvo de noites infernais.
Declara o nome que usas nessas noturnas praias infernais..."
Volveu o Corvo: "Nunca mais."
 
Maravilhei-me ouvindo a feia ave proferindo
Esta resposta tão concreta mas sem propósitos reais.
Pois hei-de crer que eu, um ser humano, possa ter
Uma ave sobre a porte dos meus pousos habituais,
Ave ou quadrúpede, num busto, em meus pousos habituais,
E com o nome "Nunca Mais"?
 
Mas o Corvo, que lá estava no busto plácido só expressava
Duas palavras, qual se fluísse nelas os dotes espirituais.
Nada mais pronunciou, nem uma só pena agitou,
E eu murmurei: "Outros amigos foram já nas auras celestiais;
Este irá de manhã, com as Esperanças, nas auras celestiais..."
E ele então disse: "Nunca mais."
 
Estremecendo nessa paz a uma réplica tão sagaz,
Pensei: "O que ele diz é quanto em períodos cruciais
Um dono lhe ensinou e a quem o destino fustigou
De modo que os cantos seus só comportassem sons letais,
Que os cantos fúnebres da Esperança fossem só os sons letais
Desse estribilho "Nunca mais."
 
Porém, o Corvo, levando minha alma triste a um riso brando,
Fez-me com que, sentado, frente a ele e ao busto, em sonhos graduais,
Pensasse no que essa ave de outrora, aquela grave
Negra e agourenta criatura dos tempos imemoriais,
Ao crocitar o "Nunca mais".
 
Nisto cuidando, sem falar, vendo a ave singular
Cujas pupilas me queimavam até ao peito, fulgurais,
Nisto e no resto ponderando e a cabeça reclinando
No coxim roxo de veludo, em meus pátrios locais,
Não tocará jamais...
 
Julguei que o ar era mais denso, perfumado de insensível incenso
Do turíbulo de um serafim com passos de tinidos de cristais.
"Biltre!", gritei. "Deus emprestou-te o nepentes, deu-te os véus
Que ofuscam a Lenore... Oh, bebe-lhe as gotas letais
Que apagam a memória de Lenore, gotas letais..."
Volveu o corvo: "Nunca mais."
 
"Profeta, anjo do mal, profeta ou pássaro infernal,
Se o Tentador te envia, ou te deitou o vento a estas costas hibernais,
Livres mas desoladas, terras desertas e encantadas,
Ao lar que o horror habita, diz-me em palavras leais
Se há em Galaade um bálsamo.... di-lo em palavras leais."
Falou o Corvo: "Nunca mais."
 
"Profeta, anjo do mal, profeta ou pássaro infernal
Pelo céu que a nós cobre, por Deus, alvo dos nossos rituais,
Conta a esta alma triste se no Éden onde ela existe,
Posso beijar a virgem a quem as cortes celestiais..."
Disse-me o Corvo: "Nunca mais."
 
"Seja isso o sinal de nos apartarmos... ave ou espírito do mal!
Reentra na tempestade e nas noturnas praias infernais,
Nem uma pena tenebrosa deixes em prova de tua alma odiosa,
Poupa a minha solidão e o busto acima dos meus umbrais.
Tira o teu bico do meu peito e some-te dos meus umbrais!"
O Corvo disse: "Nunca mais."
 
E o Corvo, sem se afastar, continua nesse lugar,
No busto pálido de Palas, em meus pátrios locais.
Sua expressão medonha tem o ar de um diabo que sonha;
A vela de cera sobre ele verte-lhe a sombra nas tábuas espectrais,
E dessa sombra a minha alma, flutuando nas tábuas espectrais,
Não se erguerá jamais! 


. . .




trad. Cabral do Nascimento - 1972





in EDGAR POE, Lisboa: Verbo, col. Gigantes da Literatura Universal, 1972

fonte: Babilónia Revista Lusófona de Línguas, Culturas e Tradução, nº 02/03, 2005

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