Glauco Mattoso apresenta:


[1] Nestes parágrafos quero endossar com alguns sonetos o calo repisado
dos poetas e a anestesiada dor de cotovelo da crítica, sintomas já
relatados de longa data na literatura especializada. Na coluna
"Glaucomatopéia" que assino no sítio BLOCOS ON LINE* aludi à "tendência
a cagar regra que há por detrás do ofício poético, seja ele popular ou
acadêmico". Dizia eu que "cada autor se julga professor de seu gênero e
porta-voz de sua geração, cada gênero se propõe como superior aos demais
(quer por ser anterior, quer por ser posterior, conforme seja a postura
tradicionalista ou vanguardista) e cada geração se propõe como eleita
perante a História para cumprir sua missão de difundir o 'verdadeiro'
conceito de poesia. Acho que em nenhum terreno a cagação de regra tem
mais razão de ser que no cordelismo e no glosismo, onde o trunfo é o
blefe, o arsenal é a empáfia e quanto mais fanfarrão mais prestígio
ganha um poeta". Ironizando esse espírito de "dono da verdade" com que
os cantadores usam o típico heptassílabo para propalar seus feitos,
assim sonetei neste alexandrino "exagerado", isto é, tridecassílabo, o
soneto "Barbarizado":


SONETO 573 BARBARIZADO

Já se disse: sete é conta de mentira e lenda.
Também dizem que de azar o treze é cifra certa.
Isso explica a redondilha como porta aberta
no cantar dos repentistas, na feroz contenda,

à bazófia descarada, onde é melhor a emenda
que o soneto decassílabo, no qual se enxerta
entre termos eruditos a falácia esperta,
lei de todo bom poeta que seu peixe venda.

Outrossim, também se explica por que nunca é visto
um soneto alexandrino, mas de pé quebrado:
este, a cuja tentação do treze não resisto.

Vou chamá-lo "aleijadinho", pois, em vez de errado,
tem caráter de obra-prima, pelo menos nisto:
completar catorze versos sem ficar quadrado!


[2] De fato, os poetas só se igualam na presunção, pois cada um tem seus
próprios (e justos) motivos para se sobressair aos demais naquilo que
lhe autentica a obra: a individualidade, quer no estilo inconfundível,
quer no tema pessoal e intransferível. Daí o dilema: pertencer a uma
escola (como Bilac) ou isolar-se dos clichês (como Augusto dos Anjos)?
Há prós e contras. Os engajados têm, em grupo, mais visibilidade e, por
serem catalogáveis e classificáveis, amealham fortuna crítica em vida.
Em compensação, carecem de algum malabarismo para aparentar
originalidade e resistir às comparações com os correligionários e
coetâneos. Os não-alinhados, por sua vez, pendulam entre extremos:
gênios perante seu círculo e anônimos em meio ao público e à crítica,
têm por consolo a aclamação da posteridade. O dilema é, na verdade, um
paradoxo, já que o poeta não escolhe livremente e, quando quer ser
único, confunde-se entre imitadores; quando quer se enturmar, sente-se
rejeitado. Tudo encaminha para a conclusão preliminar de que o poeta (se
é que o é) é antes de tudo um frustrado. Sobre essa síndrome do fracasso
que sintetiza a crise de personalidade dos vates, fiz o soneto "Ambíguo"
que apareceu na revista MEDUSA; sobre a discutível independência
intelectual cujo ônus seria o ostracismo, fiz o soneto "Genialógico":


SONETO 92 AMBÍGUO

Quem quer a exatidão não é poeta.
Poetas têm o dom da ambigüidade.
A imagem pode ser falsa ou verdade,
depende só de como se interpreta.

O matemático é uma linha reta.
Filósofos duvidam da unidade.
Católicos têm fé numa Trindade.
Mas o poeta nunca se completa.

Quer no "duplipensar" do autor inglês,
quer seja o "VIVA VAIA" do concreto
ou triplo trocadilho, a dois por três,

Palavra de poeta não tem teto,
tem piso, onde rasteja este freguês
do pé perverso, meu pé predileto.


SONETO 533 GENIALÓGICO

Não brigo com baianos ou concretos
por causa de paulistas ou troianos,
nem brigo com tupis ou paulistanos
por causa de antropófagos diletos.

Só brigo por mim mesmo e meus projetos
exóticos, insólitos, insanos,
que não acham piloto noutros planos
e são dos regabofes só dejetos.

Sou individualista por demais
e menos engajado que um vidente,
de vez que cego estou... para os normais.

Mas como sou humano, de repente
alguém também sem mestres e sem pais
me esbarra e reconhece por parente...


[3] Se em terra de Cego Aderaldo quem tem um olho é Camões, fica
explicado o maquiavelismo que transforma em politicagem aquela
necessidade de ser "primus inter pares" da qual depende a visibilidade
em vida como alternativa preventiva ante a incerta aclamação póstuma.
Dessa luta pela sobrevivência literária decorrem os sectarismos e
maniqueísmos que erguem igrejinhas, academias e panteões, donde a
pantomima das nobelizações e imortalizações dos "príncipes dos poetas",
"poetas maiores" e "maiores poetas vivos". Tudo perda de tempo, que
seria mais bem empregado na composição de obras mais consistentes que as
manobras. Afinal, poeta não é que nem presidente da república ou
governador de estado, que precise ser eleito para uma só vaga, da qual
sai um para entrar outro. Poeta é mais como deputado ou senador,
agrupado ideológica ou fisiologicamente sob liderança de algum mais
carismático. Não existe maior poeta vivo, existem poetas maiores mortos.
Mas assim como tem gente achando que governar é dividir, tem quem ache
que poetar é governar. A tal propósito fiz o soneto "Elitista", e a
propósito da mortalidade na poesia ("A poesia está morta, mas juro que
não fui eu!", segundo José Paulo Paes) fiz para a revista ET CETERA o
soneto "Cadaverídico" e, posteriormente, retornei à cena do crime no
soneto "Do réu confesso":


SONETO 88 ELITISTA

Poetas têm mania de grandeza.
Se julgam portadores do intelecto.
Quem não lhes puxa o saco é analfabeto.
Zarolhos reis da língua portuguesa!

Parecem patrulheiros da nobreza,
zelosos de seu vão poder de veto.
Mas eu, malditamente, sou correto
e faço uma limpeza na limpeza.

A sofisticação que vá pros quintos!
Estou farto de tanto salto alto,
e apelo pelos mais baixos instintos!

Que digam que de bom gosto sou falto!
Prefiro lamber botas, pés e pintos,
e nem sequer as unhas lhes esmalto!


SONETO 514 CADAVERÍDICO

Aqui jaz um zumbi que, com veneno,
espada, faca, forca ou guilhotina,
a turba em fúria cuida que extermina,
mas volta a si e respira a pulmão pleno.

À morte não serei eu que o condeno,
mas dizem que ele próprio se incrimina,
fingindo aguda a dor mais pequenina,
tornando enorme o gozo mais pequeno.

Na lápide inscreveram um poema:
"Não creia no sorriso da caveira!
Visões fantasmagóricas não tema!"

Da tumba o zumbi zomba e, mal se esgueira,
de novo seu despojo a turba crema...
Maior poeta vivo? Crê quem queira!


SONETO 808 DO RÉU CONFESSO

"Morreu a poesia? Não fui eu!"
— gozou Zé Paulo Paes. Agora alguém
sustenta que a matou e que fez bem:
"Matei não só a Marília: até o Dirceu!"

Pergunto: quem dirá que um verso meu
despacha uma mosquinha para o Além?
No máximo um político o desdém,
abaixo do cocô, me mereceu!

Eu próprio quis matar a poesia
mais de uma vez, tocando fogo nela
ou "abolindo o verso" e a pondo fria.

Não deu: a desgraçada se rebela,
renasce, ressuscita, desafia,
e bobo faz de quem lhe acende vela.


[4] Se partíssemos do princípio de que qualquer medalhão é legítimo
detentor dum título, teríamos que admitir que seus adversários de outras
panelinhas estariam vegetando no limbo dum equivocado "conceito" de
poesia ou, segundo os mais radicais, engatinhando na mera incompetência
semi-analfabeta. Ora, como o tal conceito não é fórmula matematicamente
demonstrável (ainda que cada corrente equacione sua proposta em
manifestos quase matemáticos), segue-se que, se cada movimento literário
abole o antecessor e é impugnado pelo sucessor, todos os movimentos se
anulam. O que sobra é o conceito que cada poeta faz de sua própria obra,
e nesse caso todos os conceitos são válidos porque todos os poetas se
julgam poetas e acreditam no que praticam. Desse truísmo tirei a
reflexão "conteudística e formal" encapsulada no soneto "Sintético",
presente em antologias e na revista argentina TSÉ TSÉ; na revista
SIBILA, instado a me manifestar sobre manifestos, juntei a tradição à
contradição no soneto "Remanifesto":


SONETO 340 SINTÉTICO

De como a poesia é definida
depende a trajetória do poeta.
Qual é, pergunto, a fórmula secreta
que traça em poucas linhas uma vida?

Segundo Rilke, a lira não duvida.
mas Eliot é turrão, e tudo objeta.
Bashô quanto mais crê menos se aquieta.
Pessoa diz que é fé na dor fingida.

Divergem tantos mestres só no tom.
Não há por que dar tratos ao bestunto:
há química no verso, não um dom.

Qualquer opinião, qualquer assunto
será, verdade ou não, poema bom
se for densa a fração, breve o conjunto.


SONETO 507 REMANIFESTO

Depois de tanta escola e tanta igreja
desde o barroco aos pós em que hoje vivo,
arcaico, iconoclasta ou construtivo
preceito em manifesto é o que sobeja.

Também quero propor! Que o verso seja
mais sujo e chulo: um ralo e não um crivo;
mais curto e grosso: expresso e não esquivo;
mais duro e rijo: o metro não fraqueja!

Enfim, nada de novo: apenas quero
respeito à tradição do fescenino,
tão velho em poesia quanto Homero.

Abastardar não basta, vaticino
porém: convence o vate se é sincero
e conta o que sofreu desde menino.


[5] Também eu formulo opinião pessoal em favor da concisão, que não pode
ser erigida em verdade universal sob pena de desmerecermos, por exemplo,
OS LUSÍADAS, enquanto sobra haicai oco com pretensões filosóficas. E se
não é o tamanho do poema que o faz mais cotado como dotado, técnica e
temática também não garantem de antemão a atenção do leitor. Na falta da
técnica, ou na dificuldade de conciliá-la com tema palatável, cabe ao
poeta apelar para uma dimensão política mais abrangente que a dos
conchavos de tertúlia: a defesa do resto da humanidade, tão injustiçada
e oprimida quanto a classe dos poetas. As posturas humanistas e
libertárias costumam funcionar quando se trata de causar repercussão
imediata, ainda que nada assegure a perenidade dum poema
oportunisticamente panfletário. Acerca desse recurso quase que
inevitável em algum momento na carreira de todo poeta, compus o soneto
"Altissonante", que saiu na revista MEDUSA; a par dele, o soneto
"Formal" ilustra a questão, menos relevante, dos moldes concisos ou
prolixos:


SONETO 227 ALTISSONANTE

Barulho é o que se faz na poesia,
de dentro para fora do poema.
Se não for ruidoso o próprio tema,
a forma desafina a melodia.

Se o atonal virou monotonia,
resolve-se na crítica o problema.
É só polemizar, com tinta extrema,
se a pança deve estar ou não vazia.

A fome, última instância do organismo,
define o decibel do belo artístico,
que vai de zero a dez em ativismo.

A coisa se resume neste dístico:
Mais pintam de fatídico um abismo,
maior seu interesse e grau turístico.


SONETO 955 FORMAL

Discute-se qual gênero é mais puro
— haicai, soneto, glosa, oitava ou trova —
e cada defensor mostra uma prova
que num o verso é solto e noutro, duro.

Uns acham que este aqui tem mais apuro,
enquanto aquele traz algo que inova;
alguns mais radicais chamam de "cova",
"prisão", "túnel do tempo" e "quarto escuro".

Nem oito, nem oitenta: a poesia
é boa ou má conforme o testemunho
que dá de seu autor enquanto a cria.

Se sai-me redondinha, é que meu punho
encaixa em cada sílaba outro dia
vivido, sem minuta nem rascunho.


[6] Quando, porém, o bardo opta pelo hermetismo em detrimento da
demagogia barata, arca com o ônus da impopularidade, exceto entre
intelectuais que lhe compartilham o paideuma. Mesmo nesse meio é
irresistível a tentação de "explicar" a obra com teorias paralelas,
dando a impressão de que um poema não se sustenta se não repousar sobre
notas, comentários e arrazoados, de preferência com direito a réplicas e
tréplicas, consubstanciando uma polêmica sem a qual a própria existência
do poema perde o sentido. De duas, uma: ou o leitor é tão burro que não
adianta explicar um poema "difícil", ou é tão inteligente que vai achar
a explicação pior que o poema. Em todo caso, a explicação se justifica
porque faz parte da estratégia política da plêiade visando
territorializar a poesia e, por extensão, o intelecto e, quiçá, o poder
temporal. Sobre a inutilidade das auto-exegeses fiz o soneto
"Posológico", publicado na revista MEDUSA:


SONETO 224 POSOLÓGICO

Alguns poetas querem fazer notas
pra decodificar a poesia.
Acabam produzindo teoria,
chamando seus leitores de idiotas.

Rastreiam referências mais remotas
e nunca se sustentam, todavia.
Pôr bula em poesia é uma mania
de gregos que se dizem poliglotas.

Se são mesmo tão bons de explicação,
por que não se dedicam ao ensaio?
Comentem os versinhos dum grandão!

Mais vezes me traduzo, mais me traio.
Poema com legenda é um palavrão.
"Caralho" é um rodapé para "caraio"!


[7] Se todo poeta é um frustrado, os mais frustrados são aqueles cujo
ceticismo aceita, no máximo, que os poetas só escrevem uns para os
outros. Esse pessimismo é exagerado, a menos que se pressuponha que
todos os críticos são, também eles, poetas frustrados. Afinal, o público
leitor de poesia não se restringe aos próprios poetas: inclui,
necessariamente, a crítica. Aqui entra outro pomo da discórdia além das
picuinhas pessoais e grupais entre menestréis. De duas, uma: ou o
crítico é de fato um poeta esterilmente frustrado e não reconhecerá
talento senão nos mortos, ou é poeta frustrado porém fértil e valoriza
seus contemporâneos para que estes lhe dêem reciprocidade, donde a
imagem de amargo ou melífluo, cítrico ou cínico que destila ou desfruta.
Quando um poeta trata um colega como crítico, fala a verdade e ganha um
inimigo; quando trata um crítico como colega, também fala a verdade, mas
ganha um amigo. Depende, portanto, da política de boa vizinhança o
relacionamento entre poetas palpitantes e palpiteiros, cada lado arcando
com seu ônus: o criador em sua vulnerabilidade e o crítico em sua
blindagem, todos fragilizados como qualquer ser humano no convívio com o
semelhante. No meio desses dois donos da verdade situei os sonetos
"Suspeito", "Autocrítico" e "Imparcial":


SONETO 156 SUSPEITO

Poetas sempre falam a verdade,
e quem a fala não merece pena.
Chorar do crocodilo e rir da hiena:
é assim que se interpreta a realidade.

Um vate dissimula (à) sua vontade,
e muda logo o ângulo da cena.
Tem ódio ou aversão, mas finge pena.
Poetas nunca falam a verdade.

Machista, satiriza a bicha em si.
Marxista, tece a tese da direita.
Carnívoro, destrincha o abacaxi.

Meu caso é sintomático: aproveita
a humilhação dos olhos que perdi,
da língua faz palmilha, e se deleita.


SONETO 158 AUTOCRÍTICO

Autor que cita crítico é inseguro.
Os críticos se citam mutuamente,
pois um nunca está certo se outro mente.
Respaldam-se pra não passar apuro.

Isso é parasitismo, e não aturo.
Só cito outros autores como a gente,
que são meu repertório e que, na mente,
presentes sempre estão, mesmo no escuro.

Não posso ler, mas lembro de um por um.
Dos críticos não lembro nem desdenho.
Me são indiferentes, salvo algum.

Mas não vou citar nomes, porque tenho
certeza de que são gente comum,
pois sou igual àqueles que resenho.


SONETO 867 IMPARCIAL

Alguém disse dum livro: "por seu nível,
não pode simplesmente ser deixado
de lado; deve ser arremessado
com toda força, o mais longe possível..."

Me livre Zeus que ao meu esse alguém crive-o
de críticas tão ásperas! Mas dado
que tenho um preconceito assemelhado
acerca de obra alheia, sinto alívio.

"Não li e não gostei!", diria o Oswaldo,
mas quero ser mais justo e pelo menos
olhar e na leitura ter respaldo.

Se "ver com olhos livres" aos pequenos
dá chance, minha pele salvo e escaldo
pois sou dez, comparado aos mais amenos.


[8] Passa por ponto pacífico que o crítico existe para ver aquilo que o
leitor comum não percebe, donde a perigosa dedução de que o crítico
teria por missão alertar o leitor para os prováveis defeitos do poema
criticado e que, entre tais defeitos, estariam também os pecados. A
sutileza consiste precisamente no detalhe de que um pecado pode
eventualmente ser uma virtude. O gênero fescenino, para não falar da
sátira em geral, é caso bem ilustrativo dessa confusão entre defeito e
pecado que pode levar o crítico a ceder à tentação dum outro pecado
literário: a prática da censura como instrumento de autoridade
intelectual. Ao leitor comum se desculpa que ignore regras de
versificação e que cague regras de conduta puritana, mas do crítico se
exige que ignore os moralismos e conheça a métrica — e esta deve ser
conhecida tão a fundo que o crítico consiga detectar se o poeta a
subverte de propósito ou inadvertidamente. Talvez seja por isso que os
poetas mais traquejados possam perdoar nos críticos o puritanismo
postiço mas nunca o purismo inepto, já que a inépcia técnica é
indisfarçável e o moralismo é hábil ao menos na hipocrisia. A hipocrisia
se tolera. O despreparo técnico do crítico é inaceitável. Mesmo que a
maioria dos poetas seja ainda mais despreparada. A essa parca parcela da
crítica dediquei o soneto "Construtivista", pondo-me na pele do poeta
calejado, tema também do soneto "Atabalhoado":


SONETO 260 CONSTRUTIVISTA

De fora quem lê versos não vê pleno.
Percebe a rima, só que, antes da dita,
existe metro, acento e uma restrita
cesura que censura o meu veneno.

As rimas são as quinas do terreno.
O metro é cada lado, está na fita.
O acento é o torreão de quem recita,
e a pausa põe suspense no obsceno.

Tijolo é toda letra, toda nota.
Vogal ou consoante, tudo conta,
e cada virgulinha tem sua quota.

Castelo edificado, casa pronta.
Mas quando tem caralho, cu, xoxota,
a crítica, que é vândala, o desmonta...


SONETO 996 ATABALHOADO

Quem faz soneto às pressas se sujeita
a alguma rima pobre e algum cochilo
na métrica, mas fico bem tranqüilo
ao ver que minha técnica é perfeita.

A coisa sai tão rápida e se ajeita
tão fácil e automática, que estilo
não falta ao verso e, logo ao redigi-lo,
constato que a fatura está escorreita!

Rascunho, dicionário, cola, nada
de ajuda necessito: só a memória
daquilo que já li e que mais me agrada!

O resto vem por conta duma escória
de autores fesceninos, na calada
da noite, que ilumina a quem adore-a!


[9] Se o crítico experiente geralmente leva sobre o jovem poeta a
vantagem da bagagem teórica e técnica, este leva sobre o crítico a
vantagem de poder brincar. Obrigado que está à coerência com seus
conceitos metodológicos e à exatidão das acepções terminológicas, o
crítico não tem licença para a avacalhação e a pilhéria (ainda que faça
do texto crítico um esnobe laboratório de estilo irônico), enquanto o
poeta tem carta branca e livre arbítrio no verso branco, no livre ou no
de pé quebrado, desde que não ria à toa feito um palerma. Isso talvez
explique por que o crítico tem menos paciência com a sátira que com a
epopéia, o lirismo ou mesmo o panfletarismo, tratando o humor como
gênero menor. Explica-se, mas a má vontade não se justifica, já que
alguns dos maiores clássicos da literatura universal, de Shakespeare a
Cervantes, de Aretino a Bocage, foram humoristas, cujo lema sempre será
o mais poético e político possível: RIDENDO CASTIGAT MORES. Fica a
impressão de que o pouco caso com o fescenino faz parte desse despeito
por não terem os críticos a liberdade de putear sua revolta como
gostariam. Resta ao poeta contra-atacar com a mais deslavada empáfia,
personificando o gabola gaiato como faço nos sonetos "Jactancioso" e
"Gato-escaldado":


SONETO 146 JACTANCIOSO

Não é que eu seja gênio. São os críticos
que à altura não estão dos meus defeitos.
Se os homens já são seres imperfeitos,
poetas são ainda mais raquíticos.

Estão, porém, os críticos graníticos
naquela sua burrice. São sujeitos
mental e moralmente tão estreitos
que igualam-se aos primatas paleolíticos.

Louvor em boca própria é vitupério.
Não quero me gabar, mas que remédio?
Do que é evidente não se faz mistério.

Poetas como eu têm nível médio.
Ocorre que ninguém se leva a sério,
e a sisudez da crítica dá tédio.


SONETO 710 GATO-ESCALDADO

Cachorro que é mordido pela cobra
tem medo de lingüiça, diz o dito.
Assim age o poeta, após o pito
do crítico que bebe-lhe na obra.

"Tirando rima e metro, nada sobra",
escreve aquele cujo nome evito.
Um outro, que só curte autor maldito,
o oposto diz, e é cânone o que cobra.

Ninguém sabe o que quer, é o que parece.
No fundo, são do contra por despeito:
seria bardo um deles, se pudesse.

Por isso incho se apontam-me um defeito:
de velho sei que o vício é que apetece.
A cama fiz, e nela agora deito.


[10] Já que extrapolei o tempo todo a posição do poeta para posar de
crítico da crítica, aproveito a promiscuidade entre críticos e poetas
para encerrar estes apontamentos com um mea-culpa sobre a megalomania
dos criadores, a qual nada mais é que a confissão duma desesperada
impotência diante da inexorabilidade das tragédias pessoais de cada
poeta, entre as quais está aquela que me iguala ao restante dos mortais
— a própria morte, à revelia da Academia; é do que trato no soneto
"Ubíquo":


SONETO 91 UBÍQUO

Não é só Deus que está por toda parte:
poetas têm o dom da ubiqüidade.
Escrevem sobre o campo na cidade
e cantam tanto a Terra quanto Marte.

Turistas telepatas, em qual arte
iriam se expressar com liberdade?
Só mesmo a poesia, na verdade,
invoca Deus e diz: "Posso igualar-te!".

É muita pretensão, reconheçamos.
Um cego, que não sai da sua masmorra,
querer chegar aonde nunca estamos!

Talvez. Mas vi Sodoma e vi Gomorra,
estive sob o pé de muitos amos,
e mais visitarei, antes que morra...


(*) www.blocosonline.com.br



GLAUCO MATTOSO, maio/2002



(*) GLAUCO MATTOSO tem dois sítios pessoais e colabora em outros, cujos
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http://sites.uol.com.br/formattoso
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http://www.elsonfroes.com.br


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