O ESTORVO
Certa vez, de madrugada, com a cabeça debruçada Sobre uma apostila usada, dessas que ninguém lê mais — Bocejando, já caduco, de repente um vuco-vuco Escutei, como um maluco que batesse à minha porta. "É um maluco... Quem se importa? Isso é o que a bebida faz: Está bebo. Nadimais." Desse lance eu bem me lembro: era um porre de um dezembro, E das velas, num vaivém, brotavam chamas viscerais. Eu ansiava pelo dia e cada folha em vão treslia, Besta que era, a ver se ali a dor calmava ou ia embora — Dor da falta de Leonora, que partiu tempos atrás E não voltou nunca mais. E o balanço lento e chocho da cortina em tons de roxo Infundia-me uns tremores que ninguém sentira iguais; Pra que eu não tivesse um infarto, bem baixinho no meu quarto Repetia-me "Estou farto: é só um maluco sem relógio A rezar pra que eu aloje-o. Vou mostrar como se faz, Que o safado não vem mais." Me senti viril pra burro; prenunciando um belo murro, "Cara", eu disse, "Ou dona, escuta... Eu nem sei o que te traz; Tava quieto, e essa batida me deixou tão p. da vida Que eu não vou te dar guarida. 'Té tentei deixar passar, Mas não dá pra te aguentar" — E eis que a porta abri, voraz; Era a noite; nadimais. Retornando ao meu quartinho, novamente o burburinho Que me fez tremer na base — dessa vez bem mais tenaz. "Eita nós", gritei, "Cautela... Foi de fora da janela... Vamos ver o que tem nela, e acabar com esse tormento — Com certeza é só o vento... Saberemos num zás-trás Que é só vento... Nadimais..." Destranquei-a, abri o batente, e num revés, tão de repente, Veio o vento, e uma esquisita Mariposa veio atrás. Ignorou-me por completo, e, como um vulto irrequieto, Voou até pousar no teto, chacoalhando a negra saia Sobre um pôster do Tim Maia, na parede lá de trás; Foi, pousou e nada mais. A bichinha velha e escura me fez rir da minha agrura Pelas pompas que vestia, pelo jeito perspicaz; "Apesar da asa rasgada", puxei papo com ela, "nada Transparece de espantada, entrando assim, e assim enorme. Qual teu nome? Pois me informe, se é que um nome você traz." E ela disse: "Tanto faz." Não pensava que esse verme fosse mesmo responder-me. Se o que disse fez sentido, pouco importa, pois, rapaz, Combinemos uma coisa: cê já viu uma mariposa Que entra no teu quarto e inda ousa conversar de igual contigo? Eu duvido, meu amigo: não existem animais Que se chamam "Tanto Faz"... Mas a mariposa queda sobre o Tim que se empareda Parecia desdobrada nessas sílabas fatais. Nem tentou falar mais nada, nem saiu em revoada, 'Té que, em voz bem moderada, resmunguei: "O dia avança; Como os bondes e a esperança que eu perdi, também te vais" E ela disse: "Tanto faz." Outro baque. Então, perplexo pela tréplica sem nexo, "Claro", eu disse, "o que ela fala é imitação de Satanás: Quando ainda era larvinha, toda noite o Cão lhe vinha Repetir a ladainha, até gravar no coração; E eis a única razão que de supor eu sou capaz Para tanto Tanto-Faz..." Matutando em que rolava sem dizer uma palavra Para os aurinegros olhos que me ardiam mais e mais, Reclinei-me no banquinho e, contemplando o negro linho, Me esqueci de estar sozinho: "Lê, meu bem, pega a vassoura." Foi então que vi: Leonora me deixou pra nunca mais... "Ai, que falta ela me faz..." O climão ficou tamanho, mas do nada um cheiro estranho Inundou meus aposentos como um banho de erva e sais. "Céus", chorei, "que doce esmola ao desespero que me assola! Sente, sente essa marola — esquece a outra de uma vez; Há no mundo tantas Lês — esquece! Esquece! Engole os ais!" De repente: "Tanto faz." "Coisa ruim de borboleta", eu disse, "cria do capeta, Se o calor é o que te trouxe, ou se foi mesmo Satanás — Temerosa, mas arauto — nesta rua sem asfalto, Neste quarto — na moral, tô de joelhos, me responde: Onde é o fim do túnel? Onde? Me responde, e um bem me faz!" Mariposa: "Tanto faz." "Coisa ruim de borboleta, serva ou cria do capeta, Pelo teto que nos cobre, pelo amor de nossos pais — Tira o peso do meu peito e diz pra mim se ainda há jeito: Quando enfim reencontrarei todo esse amor que hoje me fere, Que tem nome de mulher e que partiu pra nunca mais?" Mariposa: "Tanto faz." "Quer saber? Tu que se dane, ô coisa ruim!" Lancei-me, inane — "Vai pro inferno que é tua casa dar um beijo em Satanás!" Pra expiar de vez minha alma, dei um pulo e, abrindo a palma, Soquei-a — não menos calma — sobre o pôster do Tim Maia, E na boca do Tim Maia seus fluídos corporais Escreveram "Tanto faz". E o que foi a mariposa agora pousa, agora pousa Sobre a boca do Tim Maia na parede lá de trás; E o seu olho ardendo aceso com irônico desprezo Sob a luz projeta o peso de um silêncio no recinto; E esse peso que ora sinto me enche de uma estranha paz, Ou remorso, tanto faz...
Comentários,
colaborações e dúvidas: envie e-mail para Elson
Fróes.
trad. Pedro Mohallem
no blog ESTA POUCA CINZA FRIA 28/10/2016