O CORVO (1845)



Versão da Isa Mara Lando Para a voz de Alceu Valença – Um trovador de presença Que sabe cantar chorando, Ou p’rum velho repentista Que lá no Nordeste exista E saiba triste cantar As angústias do Edgar.
1 Meia-noite, noite escura Hora de sombra e loucura Estou eu meditabundo, Em devaneio profundo Velhos papéis a estudar De sono cabeceando E já quase dormitando Quando alguém me bate à porta — Bate, bate, bem de leve — Com batidas repetidas Quem será, nessa hora morta Que veio me procurar? Deve ser visita breve — Bate, bate, bem de leve — Uma visita de paz Deve ser visita breve É só isso, nada mais. 2 Eu me lembro, bem me lembro No triste mês de dezembro Cada brasa da lareira Uma sombra projetava E seu fantasma lançava Pelo chão a se arrastar. Esperando o amanhecer Em vão eu tentava obter Nos livros da minha estante Consolo pra minha dor A dor de perder Leonor A jovem bela, radiante Que os anjos chamam Leonor Jóia rara, tão fugaz Leonor, pra nunca mais. 3 Cortinas de seda roçavam E minh’alma ameaçavam Com fantásticos terrores Temores que nunca senti. Pra parar meu coração Que batia feito louco Fiquei repetindo um pouco: "É uma visita que chega Esperando ali na porta, Chegou nessa hora morta Mas visita mal não faz É só isso, nada mais." 4 Ganhei coragem e disse, "Meu senhor — minha senhora? Queira me desculpar Eu dormitava inda agora Suas batidas tão leves Não consegui escutar. Apesar da hora morta Vou lhe abrir a minha porta Vamos ver o que me traz." Fui e escancarei a porta — Escuridão, nada mais. 5 Espiei a noite escura Curioso, temeroso Tomado por devaneios Que ninguém ousou sonhar. Só o silêncio me encarava E a única palavra Que ali foi sussurrada Bem de leve murmurada Foi um nome: "Leonor?" Foi o que eu disse baixinho A resposta o eco traz — Disse o eco, "Leonor!" Foi só isso, nada mais. 6 Voltei então para o quarto Dentro de mim tudo ardia Logo alguém bateu à porta Mais forte agora batia. Com certeza é a janela O vento na gelosia Vamos ver o que há lá fora Que ameaça vem agora Calma, meu coração Não bate tanto assim não Vou explorar esse mistério Esse mistério tenaz Vou explorar esse mistério — É o vento, nada mais. 7 Abro a janela e ouço Um esvoaçar de asas — De súbito entra um Corvo Solene pássaro antigo Negro viandante arribado Lá do fundo do passado E sem dar nenhum sinal De querer falar comigo Feito ilustre cavalheiro — ou talvez fosse uma dama — Voou — eu levei um susto — Passou por cima da cama Chegou no alto da porta E foi pousar bem no busto Da deusa Palas Atena — — Deusa da sabedoria Que os meus atos vigia A que não dorme jamais Acima da minha porta Pousou ali, nada mais. 8 Negro pássaro de ébano Um sorriso me arrancou Ancião de terno preto Com jeito de professor "Tu não és nenhum covarde, Corvo antigo que chegaste Do reino da Noite escura Nessa hora negra, tão tarde Hora de sombra e loucura Hora sem sono e sem paz Qual é o teu nome, pergunto, Teu nome de grão-senhor Como é que eles te chamam Lá na Terra de Ninguém De onde todo corvo vem?" Disse o Corvo, "Nunca Mais". 9 Fiquei pasmo, aturdido Ouvindo um bicho tão feio Falar com tanta clareza Mesmo sem fazer sentido Pois qual é a criatura Um mortal entre os mortais Que já viu, em noite escura Um animal, uma ave Chegar em hora tão morta Voar pra cima da porta Pousar em cima de um busto E se chamar "Nunca Mais"? 10 Mas o Corvo ali sozinho É só isso que falava Como se toda a sua alma Coubesse numa palavra Numa palavra cabia Pois mais nada ele dizia E nem uma pena negra Aquele bicho mexia. Até que eu falei baixinho, "Outros amigos partiram Se foram cedo demais Este vai partir na aurora Qual meus sonhos de rapaz, Que também já foram embora." Disse o Corvo: "Nunca Mais!" 11 Espantado com a resposta — Só ela quebrava o silêncio — Com certeza, pensei eu, Ele só fala de cor Com outro mestre aprendeu — — Alguém que muito sofreu Destino amargo demais E já morta a Esperança Só lhe restou na lembrança Uma triste litania Feita de melancolia, Feita só de "Nunca Mais". 12 Mas o Corvo, sério e grave De novo me fez sorrir Puxei cadeira e almofada Sentei diante da porta, Da porta, do busto e da ave. Recostado no veludo Pensei bem naquilo tudo O que ele queria dizer? Qual a intenção desse bicho Tão negro, tão magro, tão feio Triste e solene demais, Ave de mau agouro Que entrou no meu devaneio Grasnando seu "Nunca Mais"? 13 E fiquei ali pensando Só pensando, sem falar. Os olhos do bicho, em brasa, No peito me penetravam E o meu mais fundo queimavam. Mergulhei num devaneio A cabeça para trás Reclinada, a descansar No macio da almofada — Roxo veludo brilhante Com seu reflexo cambiante, Roxo veludo brilhante Que ela não vai mais tocar Não tocará nunca mais! 14 Nisso o ar ficou pesado Com o incenso perfumado De serafins que entravam E bem de leve pisavam No meu quarto atapetado. Gritei "Desgraça! O teu Deus Com esses anjos mandou Um santo remédio pra dor Alívio do sofrimento O bendito esquecimento Pra não lembrar de Leonor! Bebe logo esse remédio E não penses nela mais Esquece tua Leonor!" Disse o Corvo, "Nunca Mais!" 15 "Profeta, bicho ruim! Mas profeta mesmo assim Sejas pássaro ou diabo Se o Tentador te mandou, Ou se alguma tempestade Nestas plagas te jogou Ave noturna, soturna Mensageiro do Terror Aqui nessa terra deserta Nessa terra enfeitiçada Nesse lar mal-assombrado Mal-assombrado de Horror Te imploro, diz a verdade! Um bálsamo ali existe? Fala comigo, ave triste! Responde, se és capaz!" Disse o Corvo, "Nunca Mais!" 16 "Profeta, bicho ruim! Mas profeta mesmo assim Se és pássaro ou diabo, Pelo Céu que contemplamos E pelo Deus que adoramos Responde a esta pobre alma Carregada de pesar! Existe um lugar no mundo Mesmo no abismo profundo Mesmo distante demais Onde minh’alma cansada Doente de tanta dor Um dia volte a enlaçar A jovem santificada A donzela bem-amada Que os anjos chamam Leonor?" Disse o Corvo, "Nunca Mais". 17 "Seja este o nosso adeus, Pássaro, ou inimigo!" Gritei eu me levantando, "Volta pra tempestade Pras negras margens da Noite Sem deixar nenhum sinal Nenhuma pena, nem sombra Dessa mentira, esse mal Que a tua alma falou! Deixa a minha solidão! Deixa o busto de Minerva! Solta meu coração! Sai fora da minha porta Vai embora daqui, ave torta Vai sem olhar pra trás! Disse o Corvo, "Nunca Mais!" 18 E ali está o Corvo, parado Sempre quieto, só pousado No busto de Palas Atena Acima da minha porta. Pelos olhos mais parece Um demônio ali sonhando. A lâmpada alumiando A sua sombra me traz, E a minha alma da sombra Que se arrasta pelo chão Não se erguerá — nunca mais!




trad. Isa Mara Lando - 2003





in CADERNOS DE LITERATURA EM TRADUÇÃO nº 5, ed. Humanitas, 2003.



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