O CORVO


    Aconteceu numa triste meia-noite, durante a qual eu, fraco e cansado, ponderava. Os eventos iniciaram-se nesta hora emblemática, quando um dia morre e outro nasce. Eu estava imerso em volumes singulares e curiosos, por certo tomos esquecidos de conhecimentos ancestrais. Quase cochilando na penumbra, vacilei com a cabeça e, de repente, irrompeu do silêncio discreto solavanco. A partir deste, ouvi uma batida delicada. Era alguém batendo à porta do meu quarto. Murmurei a mim mesmo:
     –É algum visitante que bate à porta do meu quarto. Há de ser isto e nada mais.
     Ah, relembro distintamente: era dezembro e fazia frio. Gélido fim de ano. Cada brasa crepitante morria separada das demais, forjando sua própria impressão fantasma em cima do assoalho. Ansiosamente desejava por dias vindouros. O esquecimento do amanhã. Procurava, nos meus livros, cessar ou, pelo menos, amenizar a tristeza. Profundo pesar por meu amor perdido. Minha Lenora. Em vão, devo acrescentar. Minha Lenora perdida. Só os anjos, certamente, detinham o privilégio de chamá-la pelo nome. Fora, sem dúvida, uma rara e radiante donzela. Os anjos... Ali, naquele instante negro, no entanto, não dava mais para conversar com minha Lenora. Não a chamava mais, pois não me responderia. Sem nome, para sempre. Uma vez desvelado o silêncio do éter, fiquei inquieto. Lembranças e mais lembranças. Ruídos insistiam. Algo atrás das minhas cortinas. E o sedoso, triste e incerto farfalhar das purpúreas cortinas causou, em mim, impressões impactantes. Meu espírito encheu-se de terrores fantásticos com uma amplitude que eu nunca tinha sentido antes. Assim foi e, com as batidas do meu coração ainda firmes e pulsantes, eu repetia em pensamentos:
     –É algum visitante pedindo abrigo à porta do meu quarto. Algum visitante inoportuno, fora de hora, pedindo abrigo à porta do meu quarto. É isto e nada mais.
Pouco tempo depois, alma recomposta, eu disse sem hesitar:
     –Senhor ou senhora, aceite meu sincero pedido de perdão. Mas o fato é que eu estava dormindo quando, gentilmente, o senhor ou a senhora bateu. Foi uma leve batida na porta do meu quarto. Tão discreta que chego a duvidar se ouvi mesmo.
     E então, sem delonga, abri a ampla porta e vi o breu. Lá fora, a escuridão era densa e nada mais havia. Nem senhor, nem senhora.
     Espreitei as profundezas compactas das trevas. Por longo tempo fiquei estático, pensando e temendo. Mais que qualquer coisa, duvidando, sonhando sonhos que nenhum mortal jamais se atreveu a sonhar antes. Mas o silêncio era inquebrável, intransponível, denso e asfixiante. E a quietude sufocava a razão. Por fim, a única palavra pronunciada foi um sussurro repleto de dor e saudade. Sem perceber, saiu dos meus lábios:
     –Lenora?
     E das trevas, em resposta, um eco rumorou de volta a palavra:
     –Lenora!
     Apenas isto e nada mais.
     Voltei ao meu aposento, minha alma em mim ardendo. Não demorou e ouvi, outra vez, uma batida. Só que um pouco mais intensa que antes. Afirmei a mim mesmo, tentando me convencer:
     –Certamente... Certamente é algo na gelosia da minha janela.
     Permiti a mim mesmo, então, o mistério explorar. Dei um momento ao meu coração e fui o mistério explorar. Como um louco, falei com meus pensamentos:
     –Isto é o vento e nada mais.
     Abri, naquele momento, o fecho da persiana. Foi quando, num frêmito, de lá saiu um Corvo imponente vindo dos dias santos de outrora. De tempos medievais, épocas arcanas. Não fez reverência e não se deteve um minuto sequer. Pairou no ar. Empoleirou-se nos meus umbrais, com semblante de senhor ou senhora. E lá ficou, empoleirado em cima do busto de Palas que há por sobre os meus umbrais. Empoleirado no ombro de Palas. Queria sabedoria ou combate? Sentou-se ali e nada mais.
     Então, o pássaro de ébano, sedutor em sua sinistra envergadura, transmutou minha tristeza em sorriso. Talvez tenha sido o decoro grave e severo da ave escura que atenuou, um pouco, minha amargura. Eu disse:
     –Ainda que a sua crista esteja cortada e aparada, você, com certeza, é uma ave destemida. É um medonho, triste e antigo Corvo vagando na vertente da noite. Diga-me o seu nome criatura escura. Como é chamado no Hades noturno? Qual sua alcunha nas planícies infernais?
     E o Corvo disse:
     –Nunca mais.
     Fiquei deveras maravilhado ao perceber que tão desalinhada ave entendia, claramente, o meu discurso. Foi surpreendente, mesmo diante do pouco significado da resposta. Mas qualquer um concordaria que nenhum ser humano na face da terra fora abençoado com a visão de um pássaro solenemente posto num umbral e que, em resposta a uma pergunta, respondera a essa mesma pergunta. E foi exatamente isto que ocorreu. Inquiri àquele pássaro ou besta, pousado sobre o busto de Palas esculpido acima da porta. Perguntei seu nome e ele disse:
     –Nunca mais.
     Mas o Corvo, sobre o plácido busto, só falava duas palavras, como se sua alma fosse, ela mesma, essas palavras. Como se sua essência se resumisse a essa composição lexical. Reticente ao máximo, não falou mais nada. Não se pronunciou e nem uma pena moveu. Plumas negras e sepulcro. Pouco depois cochichei:
     –Outros amigos partiram antes. Pela manhã ele vai me deixar. Vai com certeza, assim como minhas esperanças que já me abandonaram.
     Então o pássaro disse:
     –Nunca mais.
     Minha alma estremeceu. Fiquei estarrecido, pois o silêncio foi tombado por tão afiada palavra. A resposta foi tão bem colocada que só me restou dizer:
     –Sem dúvida. O que profere é a única coisa, pode chamar até de conhecimento, que conseguiu apreender com algum mestre do desastre e do infortúnio. Algum dono antigo castigado pelo destino. Sem pausa, sem piedade. Tudo aconteceu rápido ao seu mestre e o que restou foi apenas esta cantiga aprendida, carregada de lamentações. Restou a você, ave negra, tagarelar:
     –Nunca, nunca mais.
     Mas o Corvo, ainda que fúnebre, fez sorrir, novamente, meu triste pensamento. Em linha reta marchei até o assento almofadado em frente ao pássaro, defronte ao busto, frente à porta. Em seguida, após afundar meu corpo no veludo, percorri sonhos, fantasias e devaneios, sempre imaginando o que aquela agourenta ave de outrora, o que aquele triste, deselegante, magro, medonho e ominoso pássaro de outrora quis dizer ao crocitar:
     –Nunca mais.
     Sentei-me e me entreguei a conjecturas. Sem expressar nada, nem uma sílaba. Só uma meditação silenciosa. E a ave, diante do meu silêncio, abrasava minha alma com seus olhos de fogo. Sentado, com tudo isto e mais, conjecturava. Minha cabeça encostada na poltrona reclinável, cujo forro de veludo violeta da almofada a luz banhava. Ali, sentado, transbordou a melancolia. A saudade surgiu forte, pois o forro violeta, o forro de veludo, era, outrora, tocado por cabelos angelicais. Agora não mais. Ela ficava à luz, repousando. Outrora era ela, agora, ah, nunca mais.
     Então, súbito, me pareceu que o ar ficou mais denso, perfumado por turíbulo invisível, manuseado por serafins cujas passadas tilintavam no chão como tufos. E eu chorei:
     –Miserável! Deus permitiu sua presença e, por intermédio destes anjos, ele te enviou. Para eu esquecer, apagar minhas memórias, minhas tristezas e glórias. Tudo o que quero é beber em grandes goles, grandes goles de nepentes para esquecer minha Lenora perdida.
     E o Corvo disse:
     –Nunca mais.
     Exclamei:
     –Áugure! Coisa do mal! Profeta ainda, se ave ou diabo, não importa. Pelo Tentador fora enviado ou a tempestade atirara-te aqui em terra? Ave maldita da desolação, desalojada nesta terra deserta, nesta casa por imenso Horror assombrada. Diga-me, ave infernal, diga-me, verdadeiramente, há conforto nas colinas de Gileade, a leste do rio Jordão? E, por extensão, há bálsamo nesta terra? Imploro por uma resposta.
     E disse o Corvo:
     –Nunca mais.
     E eu exclamei:
     –Áugure! Coisa do mal! Profeta ainda, se ave ou diabo, não importa. Pelo céu que se dobra acima de nós, pelo Deus diante do qual nós dois somos iguais, diga a esta alma pesada de tanta tristeza, diga se, no Éden distante, no além-vida e nos campos celestiais, os anjos amparam a santa donzela de nome Lenora. Os anjos amparam a rara e radiante donzela chamada Lenora?
     E disse o Corvo:
     –Nunca mais.
     E eu gritei, prepotente:
     –Que estas palavras sejam o prenúncio da nossa despedida. Ave ou demônio retorne à tormenta da qual foi escarrado. Regresse à aridez infernal, às trevas da noite. Suma da minha frente e não deixe uma penugem negra que ateste as mentiras que tua alma crocitou. Que reste apenas, para mim, a mais nefasta solidão. Desencrave seu bico do meu coração, leve sua sombra para longe e saia dos meus umbrais!
     E devolveu o Corvo:
     –Nunca mais.
     E o Corvo, estático, repousa. Ainda repousa ímpio nos ombros pálidos de Palas. Bem acima de mim, nos arredores, onde a porta se abre. Bem ali, no umbral. Seus olhos encerram a inquietude de um demônio que sonha com algo que se foi há tempos. A luz fugidia atinge os contornos da funesta ave, projetando sua sombra ao chão. Então, minha alma aperta-se ainda mais e chora.
     Mas o Corvo espectral grita:
     –Nunca mais!



trad. Jeison Luis Izzo - 2014





in O Corvo e Outros Corvos, 2014
e-book disponível em Amazon Kindle

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