NA TELA RÚTILA DAS PÁLPEBRAS: OLHAR SOBRE A POESIA DE
NÉSTOR PERLONGHER


Texto e traduções de Josely Vianna Baptista


Os poemas aqui traduzidos integram o poemário Águas aéreas, de Néstor Perlongher (Buenos Aires, Ultimo Reino, 1991), e "foram inspirados", conforme palavras do próprio autor, na experiência do Santo Daime. Em 89, já trabalhando no livro, Néstor enviou-me seus primeiros manuscritos, que na época levavam o título geral de Yagé, pedindo que os submetesse a minha "investida pupilar": "são absolutamente inéditos e um tanto estranhos para mim (costumo demorar séculos antes de pôr os poemas em circulação)". A modificação posterior do título para Águas aéreas é interessante: quase como uma mudança da causa pelo efeito.

Yagé é o nome da planta alucinógena com a qual se prepara a "ayahuasca", ou "mariri", bebida originalmente utilizada em rituais de índios peruanos. No Brasil, a beberagem é empregada por populações ribeirinhas do Amazonas, onde recebe também o nome de Santo Daime. Irène Bellier, em seu ensaio Los Cantos Mai Huna del Yagé (América Indígena, vol. XLVI, n. 1, México, 1986), conta que aquele que toma o "yagé" desenvolve uma percepção extra-sensorial, fundindo-se "num universo movente, luminoso, vermelho, perfumado". "Mariri" é a mãe da ilusão (ou "mareação", nome dado aos efeitos da ingestão do "yagé"), e se apresenta "com uma efervescência de escamas e redemoinhos, torvelinhos que aludem à vinda de Ñukecito, a mãe da água".

Fluídicos, voraginosos, os poemas de Águas aéreas foram feitos sob os eflúvios amazônicos da bebida sagrada. Traduzem um mundo feérico, engendrado por um "xamã da escritura que chegou a uma nova definição de seu exercício", como refere o poeta uruguaio Roberto Echavarren na introdução a Lamê (coletânea de poemas de Perlongher publicada pela Editora da Unicamp em 94). Seu principal referente é a RETINA, a tela rútila das pálpebras, que capta, como uma rede, as imagens oferecidas à percepção pela "ayahuasca". Nos últimos anos de sua vida, Néstor estudou o Santo Daime como antropólogo, e participou de vários de seus rituais, tendo acesso à bebida sagrada. Quem bebe a "ayahuasca", conta Bellier, pode andar pelo "mundo das almas" — o tronco das almas, a quebrada das almas e a água das almas — , lugares ligados ao tempo, que normalmente "são conhecidos depois da morte, e expressam muito diretamente a idéia da passagem de um estado a outro, deste mundo ao outro". "O Sacro Daime é uma — já então — unção quase extrema", diz Haroldo de Campos no lutuoso tributo prestado a Néstor com o poema "neobarroso: in memoriam", escrito em 93.

O primeiro encontro de Néstor e Haroldo, por sinal, foi memorável. Trabalhando na tradução de fragmentos das Galáxias haroldianas (Ex Libris, 1994), Néstor ainda não conhecia o poeta paulista pessoalmente. Combinamos um encontro em minha casa em São Paulo, num fim de tarde ensolarado de 91. Francisco Faria, com quem Néstor e eu tínhamos um projeto em comum, também estava lá. A animação da conversa, que perfez uma verdadeira circunavegação poética — com roteiro pontuado, naturalmente, pelas presenças de Góngora, Juan del Valle Caviedes, Gregório de Mattos e outras feras — selou as afinidades eletivas 'em poesia e em pessoa' entre os poetas. No escritório abarrotado, por onde na certa já volitavam, invisíveis, anjos 'berrueco'-argênteos, Néstor lia em voz alta sua versão das Galáxias, com um acento portenho inconfundível. Animado, Haroldo sacou de um exemplar de seu livro e, mais que numa simples leitura, entrou num verdadeiro estado de apoderamento poético — "mire usted que buena suerte le plantaron la mesquita delante de la bodega calamares e um vinho málaga língua liquefeita em topázio à distância de passos" —, e seguiu afogueando a língua, logo os dois numa espécie de repente barroco de brasa e prata que nos encontrou, ao final da galáctica via de mão dupla, vertiginosamente enlevados. Haroldo de Campos, lembro aqui a propósito, foi um dos poetas brasileiros mais receptivos ao trabalho de Perlongher — suas obras se tocando no arco de pleno cimbre do neobarroco. A memória do envolvimento dos dois com a poesia (no sentido mais amplo do termo), suas enteléquias vivíssimas, o afiado senso crítico e o humor generoso, funcionam como antídotos contra o ar às vezes tão rarefeito de nosso ambiente literário.

Alguns dos poemas de Néstor Perlongher que você pode ler a seguir foram traduzidos anteriormente para inclusão em Lamê. Outras traduções foram feitas recentemente, e a elas somamos ainda uma versão do Canto de ilusão da tribo Mai Huna (Amazônia peruana), que descreve as visões de um xamã após beber o "mariri".

Nos poemas de Águas aéreas percebemos, em primeiro plano, o sensualismo da linguagem, o "teatro de matérias" (Gilles Deleuze), uma espécie de dissipação verbal (de resto, comum a toda escritura que tenha bebido em minas (neo)barrocas — ou "neobarrosas", para citar o termo utilizado por Néstor para certa poesia neobarroca de extração platina). Desmesura atrevida, choque entre preciosismos e vulgarismos, vocábulos dançando sua casticidade em guetos, 'virgens sobre consolos de chumbo', misturas "bastardas", imagens postiças — uma língua travessa que vai brocando, com luxos de artifício, a assepsia da página (do discurso) bem comportada, saturando a linguagem comunicativa: "a máquina barroca lança o ataque estridente de suas bijuterias irisadas no plano da significação", assinala Néstor na introdução a Caribe Transplatino (Iluminuras, 1991), "minando o nódulo do sentido oficial das coisas". A linguagem abandona sua função utilitária para "deleitar-se nos meandros dos jogos de sons e sentidos — função poética que percorre e inquieta, soterrada, subterrânea, molecularmente, o plano das significações instituídas". Velaturas recobrem o referente, em Águas aéreas movediço, cambiante, fluido, e aqui o traço erótico surge transfigurado em êxtase quase místico (na senda do Eros cognoscente de Lezama Lima, para quem a Poesia, sendo caminho para o conhecimento absoluto, pode substituir a religião).

Nenhuma antologia que venha a compendiar as escrituras neobarrocas da pós-modernidade americana, no arco que se estende dos anos 70 aos 90, poderá ignorar o trabalho do poeta argentino. No plano formal, no plano ideológico, a poesia de Néstor Perlongher é paradigmal dessas "literaturas de linguagem" que, avessas às idéias de totalidade, autoridade, centralidade e outras "verdades", desfraldam seus signos em bandeiras buliçosas. O senso de ironia é de arrasar: procedimentos de linguagem são levados a limites apoteóticos, com sua conseqüente, e inevitável, irrisão. Vocação paródica in extremis. Quedas primordiais, tempestades no Paraíso.



Josely Vianna Baptista


ÁGUAS AÉREAS

Poemas de Néstor Perlongher em tradução de Josely Vianna Baptista

I

ACRÍLICO (ACRE LÍRICO) mais que esplendor volume furta-luz luz fria lua aquática sua raia (intersecção de élitros, choque ou ballet de vaga-lumes, niágara) de luva veste a espessura glaceando o manati de uma cutícula de nuvens, cútis nívea, glostosa de nívea, na afetação do trejeito glorioso se dispunha ao agarre da raia, quadriculado na vertigem, craquelê, sem deixar de ser ruína, melado de babas, a rebarba de nácar estirada na borda de sua bainha de valsa, ríspido roque que muda os estremecimentos em núpcias, leves, aladas, quase voiles, manatis sereias, bosques rio, pois o milagre de seu sobressalto, ao descascar, em romãs, os arozinhos de esparto, despertava nele ancas de cisne coruscante, vazio, vagabundo, sua limpidez de penas no leito imprevisto, nonada, só que se deixa levar, ser arrastado, no agito das hélices pela torrente pantanosa, escândalo de espumas a onda-urina, águas de porcelana no jorro de jóias, um portland luminoso ao envolver o polvo como luva, pérola que se revela elástica ou nasce borracha, ferida pelo acre ou o amargor, em delongas marejadas de um ungüento encantado.

II

E O QUE SE REVELAVA, na vibração, mais que o cintilar do filamento em sua finura de medusa, a transparência da voz, o gargarejo mucilaginoso traçando liames de cristal entre as vestes, seu oscilar, no ar orvalhado que se dissolve numa porosidade de receptáculos: em cada oscilação o fulgurante dilaceramento da distância em glóbulos de laca, em cada glóbulo uma luz.

III

OPALESCÊNCIA E LIVIDEZ DO RAIO, fumarola de jade em seu deflúvio, arrastava nas rédeas uma coorte de erráticas divindades. Luz divina. Potlatch de luz divina na afluência das nereidas nas ondas, nas espumas das orlas. O granuloso do brocado, em cada glóbulo um soutien, laminado de astilhas, platinado, uma alma granular, fazendo coro ou eco no foro mareado das densas traiçoeiras águas. Espinhas das almas pelas águas, as borbulhas do peixe por riachos de acrílico nevado, adquire seu jade no ofego, o dobrão do ofego na dobragem, a aura amara dos sonhos. Ou no avesso da rendilha, à qual os ofegos, para amansar o estridor, dobravam-se, não morava uma enguia que, superando o fosso, se transformava em águia? Ou era o lagarto das ruínas, por monturos espelhados, deslizando seu rabo faiscante, para iscar na fricção do fole a lisura do jade.

IV

A SAUDADE DO VELUDO ou a ternura de diferir o deslizar das gemas sobre as guedelhas enfastiando-as com um laivo de naviondas chegando e partindo ao mesmo tempo, marinhas transparentes pintadas sobre uma água inquieta mas ao correr da película um ressaibo que sustenta o movimento acampanado, ou de espirais, uma flecha concêntrica, esse melaço rasga o pulmão da vítima do ar num ai ébrio, aberto como uma boca louca e em sua estendida dimensão entra a fateixa da unha na luva de veludo criando calos na frágil distância.

V

REFOLHO DE PLISSÊS de goma em ondas oleosas de incenso ar em volutas rarefeito enobrecido pela ambiência do branco derramando-se do alto de uma mesa estelar onde coruscam burilados cristais azul assume a amplitude celestial do vôo do refolho na floresta etérea de lagartos enrolados em finos choupos que chorassem — se de repente são ouvidos — nênias e litanias da alma de meninas à espera de uma emenda de estilo ou movimento ao embalar a impulsão do corpo inteiro no "bailado", se faz bailar bailada a alma de menina assomada entre os rebrilhos do crucifixo de duas tábuas ou quatro braços o corisco da marisma de cristais e fulgores da fímbria e brilhos meros brilhos da luz ganso brilhante no tanque preso como suspenso no aquário aéreo mas se o agitam amplos alentos e hálitos fortes e jogos do corpo pelo vento do couro em alma viva em carne leve esfoliada possante pelos balanços rítmicos da dança, o bailado na vida, a vida no bailado e as tranças se enlaçando no repisar da vibração tremores embarcavam penteando as funduras do ser que em puro abismo o céu figuravam em planícies sinuosas que esse ritmo do bailado alisa e lhe faz frisos de divino esplendor.

VI

O CIRCUITO DE OCELOS o tanque encantado
comove lentamente com a finura de uma
enguia do ar
vermes de rosicler urdindo sob a grama
um labirinto de relâmpagos.

VII

O EMBALO DOS BOTOS nos cabelos líquidos da água, fluvial a gargantilha em suas irisações no córtex da superfície partida como um espelho pelo payé
                      que em resposta à invocação das profundezas adentra submerge de uma ponte especialmente armada para o mergulho ritual e ressurge depois de horas ou dias completamente seco, como se nunca tivesse se molhado, como se as águas mal tivessem alisado os seus cachos, cabelos que se fundem e confundem aos da mãe-d'água que derrama a azulada magnificência e magia de seus dons de aurora.

VIII
A Edward Mac Rae

MÃE DA ÁGUA vestes celestes ouro em chuvisco sobre os
olhos resplandecentes translúcidos através dos quais
a chamada pelos companheiros do fundo se embrenhava num
porto que era um ponto nas águas que davam para o bosque
a titilação incessante de seus cabelos que eram asas de
borboletas imperiais fazendo ondas aquáticas na árvore
do ar e o gorjeio dos pássaros amarelos azuis acrescentava
uma coloração fugaz intempestiva à música de
massas úmidas.


CANTO DE ILUSÃO *

Escamas, redemoinhos, fervores me rodeiam...
"Mariri", mãe da ilusão, em remoinhos te aproxima...
Estou na "mareação" com prazer, já fui embora, não desanimo, vou
com gosto, vou te fazer ver, vou te fazer vir, vem sem medo,
na mesma ilusão de prazer, que te faz ver coisas lindas.
A força que me faz ver almas como pó cai do meu lado...
Sente-se como um pássaro que perde suas penas...
Na casa da sucuri, na casa da sucuri, na casa da sucuri, o tigre pequenino
atirado do monte vem cair, atirado do monte vem cair, entra, o tigre,
o tigre na casa da sucuri, cai, entra, cai, entra, parece cabeças
verdes, cabeças verdes, cabeças verdes...

Canto de Doheru (finado), entoado por Lino

* Canto de ilusão da tribo Mai Huna, grupo tucano-ocidental que vive na Amazônia peruana, entre os rios Napo e Putumayo. (Ilusão, aqui, tem o mesmo sentido de "mareação", nome dado aos efeitos da ingestão do "yagé"). Entoados nas "masateras", festas de bebida em que os homens tomam "yagé" e as mulheres preparam cervejas de iuca, banana, milho e "pifuayo", esses cânticos variam de acordo com o "dab-i" (cantor-xamã) que os profere, refletindo sua experiência pessoal e sabedoria. O "universo movente" da floresta e das águas se mostra a cada um de modo particular — jogo de reflexos infinitos. Após beber o "mariri", ingestão preparada com "yagé", o cantor-xamã descreve as visões causadas pelo alucinógeno. Bellier refere que essas visões respondem à pergunta na qual o xamã pensou. É durante a viagem provocada pelo alucinógeno que ele tem a "revelação".


Néstor Osvaldo Perlongher nasceu em Avellaneda, Buenos Aires, em 1949, e faleceu em São Paulo em 1992. É autor dos poemários Austria Hungría (Tierra Baldia, 1980), Alambres (Ultimo Reino, Prêmio Boris Vian, 1987), Hule (Ultimo Reino, 1989), Parque Lezama (Sudamericana, 1990) e El chorreo de las iluminaciones. A fita cassete Cadáveres recolhe seus poemas gravados (co-edição Circe-Ultimo Reino). Autor também de diversos ensaios, colaborou em publicações da Argentina, Brasil, Uruguai, Peru, México, Cuba, Estados Unidos, França, Espanha, Venezuela, Suécia, Suíça. Integrou, com Osvaldo Lamborghini e Marosa di Giorgio a mostra de poetas rioplatenses Transplatinos (México, El Tucán de Virginia, 1990). Organizou a antologia Caribe Transplatino: poesia neobarroca cubana e rioplatense (São Paulo, Iluminuras, 1991; trad. de Josely Vianna Baptista). Em 1994, a Editora da Unicamp publicou Lamê, antologia bilíngüe espanhol-português de seus poemas, com seleção e prólogo do poeta uruguaio Roberto Echavarren e tradução de Josely Vianna. Recentemente foi lançada na argentina uma edição de suas Obras Completas.


Textos publicados originalmente na página semanal de arte e poesia "Musa paradisiaca", editada por Josely Vianna Baptista e Francisco Faria na "Gazeta do Povo" (Curitiba) e "A Notícia" (Joinville).



(Matéria gentilmente enviada pela autora para Pop Box)