Uma
leminskíada barrocodélica
Haroldo de Campos
Paulo Leminski, o poeta curitibano morto recentemente, escreveu um livro muito citado e pouco lido, o "Catatau", onde ele conta a história de uma fictícia viagem de Descartes ao Brasil do século 18 e das Invasões Holandesas; neste ensaio, Haroldo de Campos analisa o livro de Leminski, comparando-o com a obra de João Ubaldo *
O
"Catatau", de Paulo Leminski, está sendo relançado. Publicado
em 1975, em Curitiba, por uma pequena editora, teve, por
assim dizer, um êxito de câmera. O que se costuma chamar "sucesso
de estima", junto a um pequeno circulo de aficcionados. A seu
redor criou-se, como seria de esperar, a legenda negra da ilegibilidade.
Para isso contribuiu o próprio autor, que, numa advertência inicial,
proclamava: "Me nego a ministrar clareiras para a inteligência
deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas.
Virem-se". E houve quem se virasse, como prova a pequena mas
expressiva "Fortuna crítica" que acompanha esta reedição,
na qual se destaca, pelo detalhe analítico, o ensaio "Catatau:
Cartesanato", de Antonio Risério. Mas o próprio Leminski, antes
de ser fulminado pela cirrose prometéica que o roubou de nosso convívio,
teve tempo de reconsiderar sua primeira atitude de desafio ao leitor.
Preparou para a nova edição uma introdução ao livro, sob o título
"Descordenadas artesianas", na qual abre o jogo e conta
um pouco da história de sua história. "Por fim a cobra morde
o próprio rabo", diz ele. E passa a referir que a "intuição
básica" do "Catatau" lhe viera em 1966, enquanto
ministrava uma aula sobre os Holandeses no Brasil, o estabelecimento
de Maurício de Nassau em Pernambuco, apoiado em forte aparato naval
e militar. Discorria sobre a urbanização do Recife; a Mauritzstad
("cidade de Maurício") na ilha de Antônio Vaz; o palácio
de Vrijbrug, onde o príncipe invasor instalara sua corte ilustrada
de artistas e sábios. Nesse cenário real, irrompe a ficção. Ocorreu-lhe
uma hipótese (falsa, mas verossímil): que aconteceria se René Descartes,
que servira a Nassau na Holanda, o filósofo Cartesius do "Discurso
sobre o Método", o físico empenhado em dar uma explicação mecanicista,
una e sistemática, ao Universo, tivesse acompanhado o conquistador
em sua empreitada nos trópicos? "Hypotheses non fingo"
("Não elaboro hipóteses"), exclamou Newton, numa célebre
refutação a Descartes, a quem não repugnava o raciocínio hipotético,
desde que as deduções nele fundadas fossem convalidadas pela experiência.
Leminski não concorda com Newton e vai elaborando sua hipótese ficcional
elaborando nela através das duzentas e tantas páginas do "Catatau",
confiado não tanto na experiência quanto no verbo... E eis Cartésio
na Mauriciolândia, no parque do paço de Vrijburg, sob uma árvore
folhuda, ele, o experto em Dioptria (refração da luz), com suas
lentes e lunetas, observando a paisagem, as naus no porto e os bichos
no zôo ou á solta. Ei-lo fumando marijuana ("tabaqueação de
toupinambaoults") e fundindo a cuca na desmesura não geometrizável
das formas vegetais e animais, quando uma preguiça lhe alveja o
cocuruto com um disparo fecal, como fez o urubu como Macunaima.
"'Ora, senhora preguiça, vai cagar na catapulta de Paris!",
reclama o filósofo, embarcando, a gosto ou a contragosto, no seu
sonho psicodélico. Melhor dizendo, barrocodélico, pois de um cometimento
neobarroco, de um ensaio de liquefação do método e de proliferação
das formas em enormidades de palavra, é que se trata.
A lengalengagem do delírio
"Catatau",
segundo o Caldas Aulete e o Aurélio, significa: "Discurso enfadonho
e prolongado; discurseira, béstia." É sinônimo de "pancada"
ou de "calhamaço". Reconcilia as noções contraditórias
de "sujeito de pequena estatura" e "coisa grande
e volumosa". Também quer dizer "catana" (espada curva),
uma palavra que os portugueses importaram do Oriente (do japonês
"Kataná").' "Ir num catatau" é o mesmo que "falar
sozinho", como "meter a catana" equivale a "dizer
mal de outrem". Dessa polissemia está bem cônscio Leminski,
que arrola várias dessas acepções em sua introdução. De todas elas
parece ter tirado partido, literal ou metafórico, no que chama uma
"ego-trip": sua delirante "lengalengagem". Pois
tanto o narrador, Cartesius, o pensador puro exedido pelo absurdo
tropical, como seu "alter ego", parceiro ambíguo e depositário
da explicação do texto, o artimanhoso Artyschewsky (figura inspirada
na de um herético fidalgo polonês, general a serviço de Nassau),
ambos tem muito a ver com o próprio Leminski. são registros complementares
de sua voz escritural. "O 'Catatau' -argumenta Leminski- "é
a história de uma espera. O personagem (Cartésio) espera um explicador
(Artyschewsky). Espera redundância. O leitor espera uma explicação.
Espera redundância, tal como o personagem (isomorfismo leitor/personagem).
Mas só recebe informações novas. Tal como Cartéssio."
O
verdadeiro protagonista do texto, no entanto, é Occam (Ogum,Oxum,
Egum, Ogan), uma espécie de monstro semiótico", inflado e voraz
como Orca, a baleia assassina, e pouco disposto a submeter-se à
disciplina metódica de seu homônimo, O monge-filósofo Guilherme
de Occam (1280-1349), cuja navalha afiada se proponha rasourar toda
e qualquer entidade inútil, hipotéticamente complexa e não avalizada
pela experiência. Ao invés, é da paralógica, do paradoxo, das associações
de som e sentido, das frases feitas e desfeitas, dos contágios pseudo-etimológicos,
dos jogos polilingues, que se alimenta o Occam do "Catatau".
Um insaciável abantesma grafomaníaco, que reduz ao absurdo o discurso
metódico no tacho fumegante do trópico.
Sérgio
Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil", refere uma
curiosa explicação antropológica para o insucesso da poderosa empreitada
holandesa em nossas terras. "Ao contrário do que sucedeu com
os holandeses, o português entrou em contacto intimo e frequente
com a população de cor. Mais do que nenhum outro povo da Europa,
cedia com docilidade ao prestigio comunicativo dos costumes, da
linguagem e das seitas dos indígenas e dos negros. Americanizava-se
ou africanizava-se, conforme fosse preciso." E mestre Sérgio
prossegue: "A própria língua portuguesa parece ter encontrado,
em confronto com a holandesa, disposição particularmente simpática
em muitos desses homens rudes. Aquela observação, formulada séculos
depois por um Martius, de que, para nossos índios, os idiomas nórdicos
apresentam dificuldades fonéticas praticamente insuperáveis, ao
passo que o português, como o castelhano, lhes é muito mais acessível,
puderam fazê-la bem cedo os invasores." Mestiçagem. Miscigenação
de corpos e línguas. Eis o dispositivo que teria animado a "guerra
de guerrilhas" contra a qual o exército orgulhoso e bem aparelhado
da Nova Holanda acabou por deixar-se abater. Leminski tenta demonstrar
isso na linguagem. Ou como ele mesmo resume: "O Catatau é o
fracasso da lógica cartesiana branca no calor, o fracasso do leitor
em entendê-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no
trópico."
Uma feira livre macarrônica
As
influências nessa "Leminskíada", como eu aqui a batizo,
são muitas. Algumas óbvias. Como Joyce. Mais que o do "Ulisses",
o do "Finnegans Wake", ou "Finicius Revém",
já fragmentariamente abrasileirado por Augusto de Campos e por mim
na antologia "Panaroma" (1962). Nada a estranhar, diga-se
de passagem, nessa aclimatização do fineganês joyceano ao brasilírico
português. Basta dizer que é o mesmo Sérgio Buarque, em "Visão
do Paraíso", que registra a presença das peregrinações de São
Brandal e da paradisíaca ilha Brasil, High Brazil ou O'Brazil, em
trechos da obra máxima do irlandês ecumênico. Evidente, também,
é o contributo do "Grande Sertão" rosiano: modos de dizer,
circunlóquios, cadências. Mas outros condimentos são igualmente
importantes no sarapatel leminskiano. O sermonário barroco de um
Vieira, por exemplo, cujo estilo engenhoso, a contrapelo do "bom
senso" cartesiano, foi tão bem estudado por A. J. Saraiva ("No
discurso engenhoso, as palavras não são representantes mas seres
autônomos, que como matéria podem ser recortados para formar outros,
e têm em si relações que lembram muito mais os elementos da composição
musical...") O latim escolástico e latinório das tertúlias
coimbrãs também não lhe são estranhos. Este último deu em nossa
literatura as abstrusas composições burlescas da "Macarrônea
Latino-Portuguesa", à imitação do beneditino Folengo. Sobretudo,
porém, me parece presente, na prosa travada de armadilhas de Leminski,
um livro inseminador, a "Feira dos Anexins", do seiscentista
d. Francisco Manoel de Melo. Essa obra, Alexandre Herculano reputava-a
um verdadeiro manual para os escritores do "gênero cômico".
Trata-se de um fascinante repertório de metáforas e locuções populares.
Dividido em três seções, com subtítulos como "Em metáfora de
cabelos", "de texta", "de olhos" etc.,
tem coisas desabusadas como esta: "Isso de olho trazeiro, não
me cheira; porque os malvistos tem cinco olhos: e os que enxergam
bem, como os olhos que tem na cara, terão três: mas ter no traseiro
um olho, e outro no rosto, é ser Polifemo a torto e a direito."
A função do provérbio, como o principal recurso de engendramento
e articulação do livro, já foi aliás salientada por Régis Bonvincino
("Com quantos paus se faz um 'Catatau' ",artigo de 1979).
Uma
coisa, porém, é certa. Quaisquer que sejam as extravagâncias, anomalias
ou disrupções do projeto leminskiano, trata-se, fundamentalmente
de um projeto de prosa. Um projeto ambicioso, levado minuciosamente
à consecução, no qual a poesia (para falar como Walter Benjamin)
é apenas o método (não-cartesiano) da prosa. Uma prosa que pende
mais para o significante do que para o significado, mas que regurgita
de vontade fabuladora, de apetência épica, de estratagemas retóricos
de dilação narrativa. A poesia, ao contrário, ainda quando se sirva
da prosa como "excipiente", parece dar-se melhor com a
imagem, com a visão, com o epifânico. É uma distinção tendêcial,
ressalve-se, não categórica. As fronteiras são móveis, podendo tornar-se
mais e mais rarefeitas.
O bardo Ubaldo e o rapsodo Leminski
Escrevendo
sobre o "Catatau", me veio à mente um paralelo que poderá
parecer surpreendente para alguns, mas que, para mim, se impõe.
Trata-se de "Viva o Povo Brasileiro" (1984), de João Ubaldo.
Obras que não tem nada a ver uma com a outra e tem tudo. Não falo
aqui de influências (nem caberia). Tudo as separa e tudo as aproxima.
O compacto, complexo, às vezes tautológico livro-limite de Leminski
e o desmedido, exorbitante, caudaloso romance-rio de Ubaldo. O sucesso
de estima de um. O sucesso de público de outro. O significado, a
mensagem prometida e sonegada pelo enigmático exegeta Artyschewsky,
é a vocação latente de Paulo Leminski, ostensivo romancista do significante,
da materialidade do signo. O significante, a elaboração verbal,
o gozo da palavra, o "prazer do texto", eis, talvez a
mais profunda pulsão escritural de João Ubaldo, fabulista do significado,
atento, por um lado, à intriga, à função narratológica (da qual
Jorge Amado, o contador de mil-e-uma histórias, é manipulador exímio);
por outro, propenso a interrogar o "quem" da linguagem,
como o Rosa da prosa ensinou. Veja-se, por exemplo, o esplendido
capítulo 14 da gesta ubáldica. Datado do "Acampamento de Tuiuti,
24 de maio de 1866", nele se relata o embate entre os soldados
brasileiros e o exército paraguaio, narrado agora em termos de refrega
homérica, com apurados giros estilísticos, substituindo-se os deuses
do panteão grego pelas divindades do céu iorubá, com seus vistosos
atributos e nomes sonoros. Mas, sobretudo, considere-se o começo
cinematográfico de "Viva o Povo", quando a "primeira
encarnação" do Alferes José Francisco Brandão Galvão, em pé,
na brisa da Ponta das Baleias, está prestes a receber contra o peito
e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas
da frota portuguesa, quase entrada na Baía de Todos os Santos. Coteje-se
esse início com outro lance panorâmico, este racontado em primeira
pessoa pelo Descartes tropicalista do "Catatau": "Ergo
sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente,
neste labirinto de enganos deleitáveis, - vejo o mar, vejo a baia
e vejo as naus. Vejo mais (...) Do parque do príncipe, a lentes
de luneta, CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS
E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA." Destaque-se, agora, o final, soberbo,
de "Viva o Povo". O alegórico "Poleiro das Almas",
suspenso no espaço cósmico, "vibrando de tantas asas agitadas
e tantos sonhos brandidos ao vento indiferente do Universo";
as "alminhas brasileirinhas, tão pequetitinhas que faziam pena",
decididas a descer, lutar de novo, enquanto o sudeste bate, cai
a chuva "em bagas grossas e ritmadas" e, como ninguém
olha para cima, ninguém vê "o Espírito do Homem, erradio mas
cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía."
Compare-se esse final com aquele outro, intensíssimo, do "Catatau"
(onde ecoa o apelo extremo de Joyce ao leitor, no "Finnegans":
"...torturas tântalas, e há alguém que me entenda?"):
"É esta terra: é um descuido, um acerca, um engano da natura,
um desvario, um desvio que só não vendo. Doença do mundo. E a doença
doendo, eu aqui com lentes, esperando e aspirando. Vai me ver com
outros olhos ou com os olhos dos outros? AUMENTO o telescópio: na
subida, lá vem. E como ARTYSCHEWSKY / Sãojoãobatavista / Vêm bêbado,
Artyshewsky bêbado... Bêbado como polaco que é. Bêbado, quem me
compreenderá?".
Não por acaso, nos dois livros, a antropofagia é tematizada como processo
simbólico. Na irreverente devoração canibal, a História Brasílica
(num caso), senão o próprio "logos" do Ocidente para aqui
transplantado (no outro), são objeto de trituração. Digesto indigesto.
Por um lado, o "caboco" Capiroba, guloso da carne macia
e branquinha dos holandeses, criação rabelaisiana do bardo Ubaldo.
Por outro, o monstro Occam, ogre filológico, mastigador de textos,
papaletras e papa-línguas, fantamasgoria sígnica do rapsodo Leminski.
Por cima das muitas diferenças de concepção e de fatura, esse vínculo
vogaríamos é mais um elo emblemático que os liga.
Haroldo de Campos
*OBS.: Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, caderno Letras, p. G4, 2 de setembro de 1989.
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