Um catatau. Felizmente.*

Leo Gilson Ribeiro


Catatau é um livro divisor de águas, aparentado ao avesso com a criação de Guimarães Rosa pela detonação atômica da linguagem e pelas toneladas de erudição explosiva que traz a uma cultura raquítica, feita de livros "nhemnhemnhem" na sua esmagadora maioria.
Catatau não fornece pistas nem mapas, entrega o leitor à selva das palavras, dos conceitos, da mistura admirável de idiomas, das ironias sutis como um cristal límpido. Catatau está aparentado também com as mais abissais renovações no terreno da lingüística que textos literários de Pound, de Joyce, de Beckett, de Guimarães Rosa, de Hilda Hilst já trouxeram para o magro almoxarifado onde acumu1am pó os conceitos, preconceitos e fórmulas literárias, arrumadinhas como receitas de bolo.
Sem compromissos quaisquer, nem com ganhar a vida, Paulo Leminski, ex-seminarista, desvenda para o leitor que se dispuser a interpretar sua subversão mágica do mundo e do mundo refletido na lagoa das palavras moventes, estruturas coruscantes de reflexões sardônicas, de pensamentos inéditos, de graça, de leveza, de um sentido lúdico de armar jogos admiráveis nessa literatura aberta que ele compartilha com o leitor.
Irreverente, espirituoso, Paulo Leminski não tem receio de condenar as duas imbecilidades: de um lado a do grande público burguês-conformista, que só quer literatura do tipo bem comportada, bem pré-digerida; de outro, a dos críticos marxistas, que ele chama de "esquerdofrênicos", afirmando que "no sentido original do termo, a vanguarda, antes de ser estética, já é política". Posição que deve desagradar profundamente aos stalinistas que lamentam que o gênio místico de Dostoievski seja um sintoma burguês-decadente... da epilepsia de que sofria o maravilhoso autor de Crime e Castigo. Como no Macunaíma de Mário de Andrade, entrelaçam-se falas do tupi-guarani, lendas, imagens da selva tropical. Como em Grande Sertão: Veredas entremeia-se o linguajar caipira com citações em latim, retiradas dos Evangelhos, ou palavras do francês, frases inteiras em holandês, neologismos saborosos como frutos tropicais que esperam para dar o bote em cada página.
Não há o que contar. Tudo acontece no nível da linguagem, e Catatau, é fácil prever, será um material riquíssimo para os estudiosos da lingüística, da semiologia, da semântica, da filosofia veiculada pelo texto escrito. Desde Esperando Godot, sinceramente, não se via urna espera tão extasiante e tão autojustificada por si mesma.
Mas se Paulo Leminski realmente baliza um veículo quase totalmente inédito na literatura brasileira, essa baliza nada tem de estacionária. Seu livro é um perigoso desafio para a inteligência, e argúcia, a decifração intelectual e intuitiva, a simbiose afetiva e mental com o texto.
Décadas se passarão até que o Brasil reconheça neste esplêndido, profundo, perene Catatau urna de suas imagens tão radicais e tão perfeitas quanto as transmitidas por Os Sertões, Grande Sertão: Veredas, Fluxofloema, Serafim Ponte Grande e pouquíssimos outros trechos de prosa poética e revolucionária criatividade, equivalentes, em suas devidas proporções, à fundamental tomada de posição de um Joyce, de urna Virginia Woolf, de um Raymond Queneau, de um Céline, a urna forma de ser e de dizer já pretéritas e que só se enfrentam com o "Não" rebelde de urna forma nova, insólita, ousada de dizer esse ser.
Catatau já é uma das obras-primas da língua portuguesa, é uma espécie de Pedra de Roseta à espera de pacientes Champollions. Estudá-lo é urna delicia que compensa. Por ele não se decifra a antiga civilização egípcia mas o próprio Brasil e suas estruturas híbridas, perpetuamente em repouso, venham quaisquer colonizadores que vierem, outras ramificações da sua forma nacional de ser em perpétua mutação heraclitiana.
Ler Catatau é para os — como dizer? — esforçados, diligentes, libertos de vícios de postura diante da literatura mastigada e que não faz mal ao leitor. E o livro do ano e é, em todas as acepções do termo, um Catatau: coisa volumosa, zoada ou falatória.
Mas sobretudo é, no primeiro significado de catatau, uma pancada violenta. Neste caso, em toda a antiliteratura postiça, nati-podre, que se cultiva no Brasil; por isso é um antibiótico potentíssimo contra o bem-dizer, o bem-pensar, o bem-escrever. E um dos capítulos do Novo Evangelho, do Novo Testamento que a literatura brasileira vem penosamente, afanosamente, pacientemente, coligindo desde Gregório de Matos Guerra. E Paulo Leminski é um de seus supremos profetas, o que traz um Eclesiastes para a literatura morta e uma afirmação cabal para tudo que nunca foi dito e que aqui é expresso de forma indelével, de difícil decifração mas, uma vez captado, alquímico, mágico, capaz de transformar o dizer em algo transcendente e duradouro, que vinca a sensibilidade do leitor e fica uma forma admirável, plural, de escrita nestes trópicos, agora mais desvendados em sua riqueza fabulosa, codificada nesta, para usar urna redundância, fabulação espantosa.

 

Leo Gilson Ribeiro

 

 

 

*OBS.: Publicado originalmente em Jornal da Tarde, São Paulo, SP, 3/04/1976.

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