Torquato e Leminski*

Tida Carvalho


Entre esses dois “marginais”, dois poetas, não só da linguagem escrita, mas da linguagem vida/experiência, pois, como quer Torquato, “o poeta não se faz com versos...” muitas efervescências fervem na cabeça de quem sabe (ou desconfia) dos dramas que se apresentam em momentos e pessoas que se insta­lam na perplexidade, no lance das hipóteses: que destino esperam os que enfrentam o desconhecido? (Catatau, p. 149).
Leminski e Torquato, bárbaros/selvagens, poetas em tempo de prosa, suicidados da sociedade, possuídos por uma loucura/paixão que era o excesso de consciência da linguagem. Nas palavras de Leminski:
Sou uma espécie de pensador selvagem, assim no sentido que se fala em capitalismo selvagem. Vou lá, ataco um lado, ataco o outro lado, meu pensamento é um pensamento assistemático, como, aliás, eu acho, é o pensamento criador.
Chego, às vezes, a suspeitar que os poetas, os verdadeiros poetas, são uma espécie de erro na programação genética. Aquele produto que saiu com falha, assim, entre dez mil sapatos um sapato saiu meio torto. É aquele sapato que tem consciência da linguagem, porque só o torto é que sabe o que é o direito. Então, o poeta seria, mais ou menos, um ser dotado de erro, e daí essa tradição de margi­nalidade, essa tra-dição, moderna, romântica, do sé­culo XIX pra cá, do poeta como marginal, do poeta como bandido, do poeta como banido, perseguido, enfim, em condições, diga­mos, socialmente adversas, negativas
(Leminski, “poesia, paixão da lingua­gem”. In: Os sentidos da paixão. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Cia das Letras, 1986, p. 284-5).

E Torquato:

Quando eu nasci/ um anjo louco muito louco/ veio ler a minha mão/ não era um anjo barroco/ era um anjo muito louco, torto/ com asas de avião/ eis que esse anjo me disse/ apertando a minha mão/ com um sorriso entre dentes/ vai bicho desafinar/ o coro dos contentes/ vai bicho desafinar/ o coro dos contentes.
A persona de um anjo desafinado que se queria ainda mais gauche do que o anjo gauche de Drummond, segundo Waly.
E continuando nesse clima de paixão, pois é por aí que eu os quero congregar, o poeta teria, em relação à linguagem, uma transa apaixonada, e essa relação poderia se manifestar de duas formas: uma forma masoquista e outra sádica. Na forma masoquista, o poeta seria uma vítima da linguagem (em Torquato, é o corpo que faz do poeta o poema), a linguagem exerce uma violência sobre ele e ele sofre essa violência. Num outro instante, no momento sádico do processo, o poeta, o artista, o escritor, o criador, passaria a ser algoz, a ser carrasco da linguagem, e daí a inverter o jogo (estrita relação entre a experiência vivida e a produção textual). E essa atitude estaria ligada, mais ou menos, à idéia de experimental, de invenção ou de vanguarda. Esses modos seriam subversores, modos nos quais os erros, por exemplo, passam a ser incluídos e englobados como fator de criação. Daí o amor entre o poeta e a língua. As línguas amam seus poetas porque, nos poetas, se realizam os seus possíveis. Por isso Leminski e Torquato acham que a paixão do poeta pela linguagem, da linguagem pelo poeta, é coisa que tem amplas implicações sociológicas, históricas, transcendentais. Ambos, na geléia geral brasileira, na antropofagia contracultural anos 60, reificaram-se autofagicamente como bárbaros tecnizados, consumidos na agoridade, no acontecer.
De certa forma, as pessoas não se matam a não ser que acreditem no que deveriam ser, no que poderiam ter sido, no que desejariam que acontecesse. Leminski, dilacerado pela morte do filho, numa correlação tensionada entre existência e poesia, sobreviveria a si mesmo. Morreu relativamente jovem, aos 44 anos, em 1989. Torquato suicidou-se na madrugada do dia 10 de novembro de 1972, depois da festa de aniversário dos seus 28 anos. Segundo Waly Salomão “é impossível ler uma linha de Torquato sem pensar que ele se matou” (Cf. André Monteiro, A ruptura do escorpião. Ensaio sobre Torquato Neto e o mito da marginalidade. São Paulo: Grupo Editorial Cone Sul, 1999, p. 24).
Entre as paixões modernas, uma esclarece, na sua expressão radical, um conteúdo de transitoriedade. É a paixão própria da modernidade: o suicídio. “A modernidade”, escreve Walter Benjamin, “deve estar sob o signo do suicídio, que sela um querer heróico que não faz concessões à atitude que lhe é hostil. Tal suicídio não é desistência, mas heróica paixão. É a conquista da modernidade no âmbito das paixões.” (Walter Benjamin, A Paris do Segundo Império em Baudelaire).
Nesse eterno advento do novo, o que se pode esperar como novo se revelará como sendo uma realidade já desde sempre presente. E foi nessa urgência que se construiu e se destruiu o mito marginal Torquato, que dizia, nas suas ‘cordiais saudações’, em sua coluna ‘geléia geral’, sobre Caetano algo que quero falar para quem me tiver lendo/ouvindo:

... estar vivo significa estar tentando sempre, estar caminhando entre as dificuldades, estar fazendo as coisas, e sem a menor inocência. Os inocentes estão esperando enquanto aproveitam para curtir bastante conformismo disfarçado em lamúrias, ataques apocalípticos e desespero sem fim. (In: Os últimos dias de paupéria, p. 24).
E ainda:


Sou feiticeiro de nascença/ trago o meu peito cruzado
A morte não é vingança/ orgulho não vale nada.
E atrás dessa reticência 
Nada, ri-go-ro-sa-men-te nada
Boca calada, moscas voando, e tudo somente enquanto
Eu deixar. Enquanto eu estiver atento nada me acontecerá.
Um painel depois do outro e um sorriso de vampiro;
Eu me viro/como/posso me virar.
E agora corta essa — só quero saber do que pode dar certo
Mas hoje tenho muita pressa. Pressa. Pressa! A gente se vê, 
Na certa.”

Assim mesmo, entre paradoxos e redirecionamentos da antena sensível para saber que cultura não é só vanguarda, há um diálogo entre as formas já aceitas e as novas formas. Isso recupera o passado, pois o futuro tem isso de maravilhoso, ele recupera o passado. Por isso o abraço que Leminski manda para todos aqueles que não mudam, que teimam numa nota só, que batem sempre na mesma tecla, que usam sempre a mesma palavra, que pensam sempre a mesma coisa (...), pois ninguém consegue aprimorar a forma do ovo. (Cf. Anseios crípticos, p. 84).
E para despedir, a urgência de lembrar, de atar as várias pontas deixadas por esses dois: o signo é nosso destino/ nossa desgraça e nossa glória/ uma aranha sempre sabe (e o escorpião também)/ depois desta teia/ virá outra teia e outra teia e outra/ uma aranha não duvida (nem tampouco o escorpião), que todo dia é dia d.
Entre dia e noite, sim e não, loucura e sanidade, norma e infração da norma, a tentativa de provar um amor à prova de morte (sem essa de louvor só depois da morte): Não mais ser classe para si, mas ser para si, que é ser pro todo. Responder à altura já era, — responda nas alturas. A Recherche du temps perdu já era. O vir a ser já era. Não há mais espera possível. (Os últimos dias de paupéria, p. 44).
Nesses possíveis inverossímeis, nessa espera que não é mais possível, a saudade desses dois loucos: dois loucos no bairro/ um passa os dias/ chutando postes para ver se acendem/ o outro as noites/ apagando palavras/ contra um papel branco/ todo bairro tem um louco/ que o bairro trata bem/ só falta mais um pouco/ para eu ser tratado também” (Em Caprixos & relaxos). Já não falta mais nem um pouco.

 

Tida Carvalho

 

*OBS.: Texto originalmente publicado no site Universo Editorial.

Copyright © by Tida Carvalho

 

Û Ý pop
box
´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes