Alma Fabricada
Quinze anos após sua morte, Paulo Leminski continua sendo
o maior nome entre os poetas da contracultura nacional*

Fernando Savaglia


QUALQUER TENTATIVA DE DEFINIR O ESTILO literário de Paulo Leminski pode passar a anos luz do alvo. O poeta paranaense, que no próximo dia 24 de agosto completaria 60 anos, se deixou seduzir pelo concretismo dos irmãos Campos e Décio Pignatari, pelo irlandês James Joyce (a quem considerava o maior escritor da língua inglesa), Maiakovsky (o poeta da Revolução Russa) e toda a chamada beat generation, e criou um estilo único e inconfundível.
Sua genialidade pode ser encontrada impressa em Catatau, uma fantasia tropicalista na qual Renê Descartes aparece fumando ervas exóticas sob o calor do Nordeste brasileiro, ou na poesia instantânea de Caprichos e Relaxos. Isso sem falar em suas outras dezessete obras salpicadas da mais pura inquietação leminskiana.
Além dos livros de poemas, o escritor paranaense foi autor de quatro biografias e do romance Agora que São Elas, que definiu como “um romance sobre minha impossibilidade de escrever um romance”. Como compositor, Leminski teve algumas de suas canções gravadas por gente como Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Itamar Assumpção, Guilherme Arantes, A Cor do Som e Moraes Moreira, sem contar as mais de 60 compostas em parceria com diversos músicos. O rock´n roll, que lhe despertava grande interesse, certa vez recebeu do poeta a seguinte definição: “o rock é uma música feita pelos incompetentes para os inconformados”.
Engana-se, porém, aquele que acredita que, com tal frase, Leminski tinha como objetivo menosprezar o gênero. No início dos anos 70, ao propor o projeto Em Prol de um Português Elétrico, ele apontava para o que considerava o “calcanhar de Aquiles” da produção roqueira nacional: as letras das canções. “Mesmo antes de se envolver com composição, sendo apenas um expert em linguagem, ele percebia que as pessoas tentavam fazer rock sem trabalhar a plasticidade da língua em favor do estilo”, ressalta Toninho Vaz, autor de O Bandido que Sabia Latim, biografia do poeta lançada em 2002.
Autor de algumas letras consideradas indigestas para um país sob ditadura militar, Leminski driblou com maestria a obtusidade da censura vigente. Exemplo disso era um verso de uma antiga canção gravada pelo grupo curitibano Blindagem, no início dos anos 80, em que a letra original dizia “Todo dia quando chego em casa/ depois de uma batalha danada/ um bafo de birita e o coroa me grita/ garoto, você é um filho da puta”. A censura, vetando o palavrão, acabou liberando a música com a substituição do verso original por um mil vezes mais afrontador (“Todo dia quando chego em casa/ depois de uma batalha danada/ um bafo de birita e o coroa me grita/ garoto, você é o fim da picada”).

UMA COISA MELHOR QUE DEUS
Mesmo tendo a voracidade pelos livros desde muito jovem, Leminski nunca se comportou como um nerd intelectual. Sua sede de cultura e conhecimento serviu para sustentar suas idéias anarquistas. “Os grandes interlocutores do Paulo eram garotos que tivessem alguma coisa na cabeça que apontasse para algum lugar. Ele acompanharia o trajeto desta idéia”, ressalta Vaz.
Na adolescência, sua precoce erudição o levou a estudar no colégio São Bento, em São Paulo, onde travava longos debates justamente com os monges beneditinos mantenedores da escola. Apesar do acesso à fantástica biblioteca do mosteiro e o fascínio exercido por todo aquele conhecimento colocado a seu dispor, o peso das verdades absolutas e inverificáveis – tão características ao cristianismo – não foram capaz de domar seu gênio criativo e inquisidor.
Curiosamente, seu desligamento da instituição se deu pelo mais humano dos motivos. Uma revista com fotos de mulheres seminuas, descoberta em baixo de sua cama, o levaram a retornar a Curitiba em 1959. “Eu descobri a mulher. No mosteiro, sentia umas coisas, uns arrepios que me faziam pensar 'ou é o arcebispo ou é alguém'. Então, tinha coisa melhor que Deus”, declarou Leminski 24 anos após o ocorrido em entrevista ao jornal O Estado do Paraná.
Em 1984, convidado a escrever um ensaio sobre Jesus Cristo para a coleção Encanto Radical (uma série de pequenas biografias de grandes personalidades da história), Leminski deu uma pista de sua relação com as religiões. “As três (islamismo, judaísmo e cristianismo) afirmam, no fundo, os mesmos princípios: o tribal monoteísmo, o moralismo fundado em regras estritas, a tendência ao proselitismo expansionista e a intransigência”.

ADEUS CAVAQUINHO
O poeta curitibano que, certa vez, se definiu como “ministro sem pasta da marginália”, tinha opiniões contundentes quando a tradição se confrontava com a modernidade. Durante o festival da TV Record, quando o samba “Roda Viva”, de Chico Buarque, disputava com “Alegria Alegria”, de Caetano Veloso, a preferência do público, Leminski disparou sua verve com a frase “Nesta polêmica, sou mais o Caetano, colocando o Brasil no mundo eletrônico. Adeus, cavaquinho”.
Fã confesso do Tropicalismo - assim como Gil e Caetano foram seus profundos admiradores -, Leminski se declarava um felizardo por seus ídolos serem seus fãs. Em determinado momento de sua vida, ele acabou se tornando uma espécie de guru da contracultura nacional. “As pessoas saiam do Rio e de São Paulo para encontrá-lo.
Como ele não tinha telefone, elas me procuravam, e eu as levava até ele”, relembra Vaz. Wally Salomão, Caetano Veloso e o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa foram alguns dos que foram a Curitiba conhecer o poeta.
Com olhar atento para as revoluções comportamentais, Leminski descobriu em São Paulo, no início dos anos 80, outro movimento que lhe despertou interesse.
Naquela época, ele freqüentava a casa do artista plástico José Roberto Aguilar (também conhecido por seu bissexto trabalho musical com a Banda Performática) trajando uma inseparável jaqueta de couro e bradando sua admiração pelos Sex Pistols.
“O punk rock estava muito presente em São Paulo naquele momento. Ele não estava se fantasiando... Na verdade, Paulo estava homenageando o movimento”, relembra Vaz. Leminski fez questão de trajar essa mesma jaqueta, emprestada do namorado de sua filha, em que as mangas lhe ficavam na altura dos cotovelos, na única entrevista que deu para o programa Fantástico.
Em 1988, já doente e recém-separado de sua mulher Alice Ruiz, com quem viveu por 20 anos, o poeta passou a residir na capital paulista e teve sua primeira experiência efetiva na televisão, desempenhando a função de redator do Jornal de Vanguarda, produzido pela TV Bandeirantes. Apesar de sua trajetória autodestrutiva – tinha sérios problemas com alcoolismo -, Leminski deu sua contribuição ao programa (apresentado de segunda a sexta, de maio a novembro de 1988) criando textos fantásticos e os famosos “clips-poemas”. Dessa época, encontramos um hai-kai representativo do seu momento na Paulicéia Desvairada (“cinco bares, dez conhaques/ atravesso São Paulo/ dormindo dentro de um táxi”).

EM OUTRA FREQÜÊNCIA
Parceiro de Leminski em canções como “Mãos ao Alto” e “Freguês Distinto”, o cantor Edvaldo Santana o conheceu justamente nesse período. “Encontrei o Paulo quando ele morava na casa da Fortuna (cantora que hoje se dedica às canções de origem judaica). Ele espalhava seus poemas por todos os cômodos, inclusive no banheiro e na cozinha. Quando bati os olhos naqueles textos, pirei. Era uma poesia simples, objetiva e direta. Para mim, ele continua sendo o maior poeta contemporâneo do Brasil”.
Toninho Vaz, a quem Leminski destinava o título de “o último dos beatnicks”, reflete sobre o auto-aniquilamento tão freqüente na trajetória de alguns artistas ligados à contracultura. “Essa autodestruição acontece por causa da liberdade que não te dão fora de você mesmo. Você acaba se imolando por causa disso”.
Leminski morreu em Curitiba em sete de junho de 1989 devido a uma cirrose hepática.
Para o ator Júlio Borges, que encarna o papel do poeta na peça Caos Leminski, o homem que inspirou seu personagem sempre enfrentou o poder da sociedade de frente. “Ele não abriu concessões. Para se ter uma idéia, ele não tinha nem carteira de identidade. Sua sensibilidade era tão à flor da pele que não cabia neste mundo. Ele vivia em outra freqüência”.
Segundo Vaz, o poeta, um estudioso do zen-budismo, sempre se mostrou arredio na hora de opinar sobre questões metafísicas. “Certa vez, me disse que acreditava que, em vida, o ser humano fabricava uma alma. Acredito que o que ele quis dizer é que a obra acaba imortalizando o indivíduo. Ele tinha razão. Quinze anos após sua morte, aqui estamos nós, celebrando sua vida por intermédio de sua obra”.



A PERSONALIDADE DE LEMINSKI ESTÁ NOS LIVROS...
Paulo Leminski: O bandido que sabia latim - de Toninho Vaz (Editora Record)
A Linha que Nunca Termina - Pensando Paulo Leminski - de Fabiano Calixto e André Dick (Editora Lamparina)...

NO TEATRO...
Caos Leminski - texto de Chico Pennafiel, Paulo Venturelli e Companhia Caos e Acaso

...E EM MÚSICAS COMO...
• “Verdura” - Caetano Veloso, em Outras Palavras (81);
• “Mudança de Estação” e “Razão” - A Cor do Som, em Mudança de Estação (81) e Magia Tropical (83), respectivamente;
• “Valeu” e “Se Houver Céu” - Paulinho Boca de Cantor, em Valeu (81) e Prazer de Viver (81), respectivamente;
• “Vamos Nessa”, de Itamar Assumpção, em Sampa Midnight (86);
• “Além Alma”, de Arnaldo Antunes, em Um Som (98);
• “Frevo Palhaço”, de Guilherme Arantes, em Pirlimpimpim 2 (84);
• “Decote Pronunciado”, de Morais Moreira, em Coisa Acesa (82).

MERGULHANDO NO UNIVERSO DE LEMINSKI
| Catatau (1975) | Quarenta Clics em Curitiba (1976) | Polanaises (1980) I Não Fosse Isso e Era Menos, Não Fosse Tanto e Era Quase (1980) | Caprichos e Relaxos (1983) | Cruz e Sousa (1983) | Matsuó Bashô (1983) | Jesus AC (1984) | Agora é que São Elas (1984) | Trotsky - a Paixão Segundo a Revolução (1986) | Anseios Crípticos (1986) | Distraídos Venceremos (1987) | Guerra dentro da gente (1988) | A lua no cinema (1989) | La Vie en Close (1991) | Uma Carta uma Brasa Através (1992) | Winterverno (1994) | O Ex-Estranho (1996) | Metaformose (1994)



Fernando Savaglia

 

*OBS.: Publicado na Revista MOSH nº1, Ed. HMP, São Paulo, agosto de 2004. Texto gentilmente cedido pelo autor para Kamiquase.

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