Metamorfoses do Eu
na poesia de Leminski
*

Ruy Perini **


“Narciso morre de sede, ao beber sua imagem”
(Paulo Leminski)

 

1. INTRODUÇÃO


Partimos do mito de Narciso descrito em Ovídio nas Metamorfoses, e por Leminski em sua Metaformoses. No poema “contranarciso” Leminski desenvolve de forma poética o conceito psicanalítico de narcisismo como função essencial na formação do Eu. Cotejando principalmente a produção poética de Leminski com Lacan, Antonio Cândido e Harold Bloom, trabalhamos este e outros temas psicanalíticos e de análise literária como o conceito de “Angústia da Influência” em Bloom. Tentamos traçar um paideuma, embora incompleto, de Leminski, analisando a influência de alguns autores a partir da modernidade, e que julgamos canônicos para ele, como o poeta britânico Wordsworth e Joyce, e a possível influência que exerceu nele a psicanálise através da estreita relação dessa com a mitologia. Não abordamos a possibilidade de ele ter um conhecimento maior da literatura psicanalítica, mas a peculiar escrita do poeta, cheia de figuras de linguagem que possibilitam uma escrita concisa e surpreendente, é analisada como instrumento de efeitos inconscientes próprios do campo psicanalítico, incidindo tanto sobre o autor como sobre o leitor. A formação em culturas orientais é citada como uma também possível influência na sua obra. Criadora, é claro.

 

2. “LACANMINSKIANAS”: O EU E O OUTRO


Leminski faz no opúsculo “Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego”, uma leitura pós-moderna e concisa do clássico “Metamorfoses” de Ovídio. Reconstrói ali grande parte dos mitos descritos no clássico, sem se ater às divisões temáticas e ao rigor estilístico do texto ovidiano. Chega mesmo a cruzar alguns personagens dando-nos uma panorâmica talvez mais coerente com o amplo escopo do que se agrupa hoje em uma denominada mitologia grega.

Essa pequena digressão pelas “metaformoses” leminskianas é para situar o mito de Narciso na sua obra, e que está sintetizado na frase aqui em epígrafe e que termina o livro citado. Leminski tem arguta percepção do papel da mitologia no estudo da condição humana, e no poema “contranarciso” parece mostrar, por uma inversão do mito, sua necessidade de constantemente beber em outros lagos, mesmo tendo que viver a angústia de não beber em si mesmo. Eis o poema:

contranarciso
		  
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós [1]


“em mim eu vejo o outro/ e outro/ e outro” é uma construção poética do fenômeno de identificação imaginária descrito inicialmente por Freud que usou bastante a mitologia, principalmente a grega, para mostrar a sua teoria do Inconsciente. Alguns seguidores abusaram da mesma fonte. Quem mais claramente desenvolveu uma teoria a respeito de Sujeito, Inconsciente e Eu foi Lacan no “Estádio do espelho como formador da função do eu”, em vários outros textos escritos e em seminários. A má resolução ou mesmo o aprisionamento do Eu nessa imagem especular trará conseqüências trágicas, senão funestas, ao Eu que não estaria assim sujeito à jubilação do outro, passo para a constituição do “Outro”, conforme formulado por Lacan para dar conta desse assujeitamento (“assujettissement”) na formação do homem civil. Rousseau, que já formulara este conceito do homem civil em contraposição ao homem natural, “observa que ninguém pode desfrutar plenamente de seu próprio eu sem a ajuda de outros”. [2]

“o outro/ que há em mim/ é você/ você/ e você”. “eu é um outro” dizia Rimbaud. Ambos aspiram a uma imagem ideal, o “eu ideal”, por trás da qual o sujeito precisa reconhecer a imagem original do duplo. Assim, o eu especular formado na imagem do outro dá origem ao drama humano da repetição incansável na busca da sua identidade.

“de dentro do meu centro/ este poema me olha” [3], diz Leminski em outro poema, sem título, no mesmo livro. Narciso dirá à imagem refletida na superfície do lago que, assim como ele, jamais foi tocado por qualquer ser: “Somos o mesmo!” [4] (no original: “Iste ego sum!”, isto é, “este sou eu!”) [5]. Ao identificar-se à imagem especular negando a identificação mediada pelo Outro, Narciso condena-se à morte. Morte real [6] desse eu não acabado, não sujeito, que só pode ver a si mesmo quando olha o outro. O contranarciso Leminski, diferentemente do herói mitológico, responde à Eco, a ninfa que chama inutilmente, tentando salvar Narciso dessa alienação imaginária em si mesmo. Precisa mesmo multiplicar a resposta em “... dezenas/ trens passando/vagões cheios de gente/ centenas”.

E “assim como/ eu estou em você/ eu estou nele”, nada mais preciso do que o verso seguinte introduzindo a primeira pessoa do plural, pró-nome da comunhão: “em nós”. E, com uma brilhante conclusão que em Lacan necessitaria muitas páginas de esclarecedor, mas hermético texto, Leminski com sua concisão poética “ensina” em poucas palavras: “e só quando/ estamos em nós/ estamos em paz/ mesmo que estejamos a sós”. Claro: qual a alternativa para a pacífica identificação do sujeito no Outro? Só o tormento da arrasadora e mortal paixão alienante por si mesmo. Paixão narcísica que não dá ouvidos ao eco: Eco/ninfa/voz do Outro que pela convocação sedutora proporciona a identificação simbólica pelo acesso ao Outro da linguagem. Ao não escutar o Outro, esse sujeito não barrado não pode mais se livrar do espelho, não pode comparecer para além da imagem de si mesmo.

 

3. A METAPOESIA DE LEMINSKI

La verité est trop nue, elle n’excite pas les hommes.
(COCTEAU. “Le coq et l’Arlequin”)


A poesia não obedece a uma sintaxe rígida, dando privilégio ao léxico. Cria-se assim um campo semântico que repousa muito mais na estrutura paradigmática do que na estrutura sintagmática. Na poesia moderna e especialmente com Leminski, que estamos situando aqui dentro de uma visão pós-moderna - isto é, a modernidade revisitada e revisada - essa liberdade é levada a um alto expoente, uma vez que as amarras lexicais também estão frouxas. Para ilustrar citamos o náufrago literário que aparece na poetisa portuguesa Salette Tavares:

Náufragos no canto da manhã
abraçamos a água que nos mata
bebemos as rosas orvalhadas do silêncio
na Palavra. [7]


Náufrago que em Leminski mergulha de vez na língua para ressurgir com o neologismo “náugrafo”:

O NÁUFRAGO NÁUGRAFO

   a  letra A a
funda no A
   tlântico
e pacífico com
   templo a luta
entre a rápida letra
   e o oceano
lento

   assim
fundo e me afundo
   de todos os náufragos
náugrafo
   o náufrago
mais
   profundo [8]
Sendo um apaixonado pela poesia e pela vida, deixa as pegadas do seu paideuma, que uma leitura mais atenta pode seguir. Mas Leminski nietzschianamente não facilita as coisas, sendo necessárias várias leituras para identificar por onde passa o seu percurso. Seguindo com uma visão de Nietzsche, poderíamos identificar em Leminski a inteligência que “aceita as graças espontâneas” [9], termo com que Valéry se refere ao “Nietzsche filósofo não profissional dos livros em que ensina a dançar” [10]:

Há escritores que, pelo fato de representarem o impossível como possível, e falarem do que é moral e genial como se ambos não passassem de fantasia, capricho, provocam um sentimento de alegre liberdade, como se o homem se pusesse sobre a ponta dos pés e, graças a um júbilo interior, fosse obrigado literalmente a dançar. (NIETZSCHE, Humano, Demasiado Humano). [11]

Leminski mostra um caminho desse paideuma na poesia transcrita a seguir. A metalingüística também pode ser metapoesia:

LIMITES AO LÉU

POESIA: “Words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e
medulas” (Ezra Pound), “a fala do
infalível” (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jákobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Valéry), “fundação do
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranqüilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com idéias” (Mallarmé),
“música que se faz com idéias”
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticism of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
imposible hecho posible” (García
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução” (Robert Frost), “a liberdade
na minha linguagem” (Paulo Leminski)... [12]


Harold Bloom em seu imprescindível “Angústia da Influência” esclarece:

Assim como jamais podemos abraçar (sexualmente ou de outro modo) uma pessoa individual, mas sim todo o romance familiar dela ou de sua família, também jamais podemos ler um poeta sem ler todo o seu romance familiar como poeta. (...) O significado de um poema só pode ser outro poema. [13]

O parágrafo seguinte Bloom começa assim: “Resumo - Todo poema é uma interpretação distorcida de um poema pai. Um poema não é uma superação de angústia, mas é essa angústia” [14]. E mais adiante (vale reproduzir um parágrafo e parte do seguinte):

Quando dizemos que o significado de um poema só pode ser outro poema, talvez queiramos dizer uma gama de poemas:
O poema ou poemas precursores.
O poema que escrevemos como nossa leitura.
Um poema rival, filho ou neto do mesmo precursor.
Um poema que jamais chegou a ser escrito - quer dizer - 
O poema que devia ter sido escrito pelo poeta em questão.
Um poema compósito, composto de alguma combinação desses.


O poema é a melancolia do poeta por sua falta de prioridade. O não nos termos gerado não é a causa do poema, pois os poemas surgem da ilusão de liberdade, de que é possível um senso de prioridade. Mas o poema - ao contrário da mente na criação - é uma coisa feita, e como tal, angústia realizada. [15]

Seguindo a teoria de Bloom de que nem todo escritor lida bem com a influência recebida, acredito não ser este o caso de Leminski. Ele não só assimila bem o banquete literário do qual se serve, como mostra didaticamente no poema “Limites ao léu”, transcrito acima, a sua influência. A sua quase contemporânea Ana Cristina César parece ter também assimilado bem as influências que recebeu, até pelo convívio precoce com grandes nomes da poesia brasileira, mas parece sucumbir frente à árdua tarefa de elaborar a angústia da apropriação intertextual com que constrói a sua obra. Em um de seus últimos poemas, que transcrevemos a seguir, identificamos a sua angústia em forma pura, não elaborada. Bloom lembra que o conceito de sublimação em Freud faz supor a dessexualização do impulso libidinal original, preferindo a formulação de Victor Tausk, o melancólico discípulo de Freud que foi recusado por este como analisante e suicidou-se. Tausk propõe o termo “elaboração”, já que a sublimação seria a auto-realização. “Elaborando-nos a nós mesmos, tornamo-nos ao mesmo tempo Prometeu e Narciso; ou melhor, só o poeta realmente forte pode seguir sendo os dois, fazendo sua cultura e extaticamente contemplando seu lugar central nela”. [16]

Vamos então ao poema da Ana Cristina:

pedra lume
pedra lume
pedra
esta pedra no meio do
caminho
ele já não disse tudo,
então? [17]
A angústia aparece pela impressão de “tudo dito”: “déja vu/déja dit”. Escrever um poema é realizar um passe. Algo será desvelado. Ana Cristina, ao se lançar no vazio para a morte, faz uma passagem ao ato, como se a sua belíssima escrita estivesse esgotada. Tudo já não foi dito? é a pergunta que ela deixa no ar.

Ao lermos algo que realmente nos interessa, que nos dá gozo e prazer, é comum termos a sensação de que nos roubaram uma idéia. Bloom logo a seguir à citação indicada na nota 14, cita Emerson: “Em toda obra de gênio reconhecemos nossos próprios pensamentos rejeitados - voltam-nos com uma certa majestade alienada.” [18] O autor, na “orelha” do livro, explica este capítulo - “Intercapítulo: Manifesto pela Crítica Antitética” - como o melhor exemplo de uma crítica antitética, uma resposta, no terreno da crítica, ao “impasse da crítica formalista, a estéril moralização que veio a ser a crítica arquetípica, (...)”. Em “Um Mapa da Desleitura”, Bloom afirma continuar “não” usando o termo influência poética como “a passagem de imagens e idéias de poetas para seus sucessores. A influência, como a concebo, significa que não existem textos, apenas relações entre textos” [19]. Não se trata, pois, de uma superação da angústia da influência recebida, mas da própria angústia contextualizada. Seja freudianamente sublimada ou tauskianamente elaborada.

 

4. O “EU” NA POESIA DE LEMINSKI - CONCLUSÃO

Une chose permise ne peut pas être pure.
(COCTEAU. “Essai de critique indirecte”)
OTHERS WORDS’ WORTH

words, words, words’
                    worth
cada palavra tem o seu
                    valor
na outra, na outra, nas outras
                    palavras
não vejo outra forma de
                    valer
ser isso, ser outro
um outro, no outro
uma outra coisa 
                    qualquer [20]


No ciclo de debates “Os Sentidos da Paixão”, promovido pela FUNARTE em 1986, e editado em livro com o mesmo nome pela Funarte/Companhia das Letras, Paulo Leminski faz uma comunicação à qual dá o nome “Poesia: a Paixão da Linguagem”. Afirma ali:

A atividade poética é uma coisa voltada para a palavra enquanto materialidade, a palavra enquanto uma coisa do mundo. O poeta é, na sua óbvia paixão pela linguagem, porque um poema propriamente não tem um significado, ele é o seu próprio significado. Por isso os poetas são intraduzíveis. (...) Essa paixão assumiria, em primeiro momento, uma forma masoquista. O poeta seria uma vítima da linguagem, a linguagem exerce uma violência sobre ele e ele sofre essa violência. Num outro momento, no momento sádico do processo, o poeta, o artista, o escritor, o criador, passaria a ser o algoz, a ser o carrasco da linguagem, e daí a inverter o jogo. [21]

Dissemos na página 4 que o campo semântico da poesia repousa mais na estrutura paradigmática do que na estrutura sintagmática, entretanto podemos identificar a poética de Leminski, embora formalmente muito livre, como predominantemente metonímica. Constrói com maestria uma língua poética própria, utilizando-se livremente da formação e da combinação das palavras, numa relação mais de contigüidade do que por similaridade. Bloom considera Wordsworth o inventor da poesia moderna. Para Alfredo Bosi a grande clivagem se dá na passagem do Neoclassicismo para o Romantismo, e cita Schiller, na Alemanha e Leopardi, na Itália, que denunciavam entre os séculos XVIII e XIX a nova poesia ocupando o lugar da “poesia ingênua ou poesia da natureza”, praticada pelos antigos e revitalizada na Renascença.

“A nova poesia se dava como interpretação do sujeito em vez de figuração da beleza cósmica ou canto dos destinos dos povos; poesia sentimental, isto é, psicológica no dizer de Schiller; poesia metafísica, segundo Leopardi. E ambos temiam que o progresso da auto-análise levasse ao afrouxamento dos laços milenares entre o homem e o divino, o homem e a natureza, o homem e a sua comunidade, e daí à formação de uma literatura toda voltada para o seu próprio emissor, saturada de intenções psicológicas e intrusões metalingüísticas”. [22]

Para Leminski Wordsworth é “emoção relembrada na tranqüilidade” (Cf. “Limites ao Léu”, transcrita na p. 6). Em Bloom:

Wordswoth, cuja arte depende de convencer o leitor de que ainda é possível a relação com eus e paisagens externos, é um imenso mestre em alienar outros eus e toda paisagem de si mesmo. Esse curandeiro cura apenas os ferimentos que ele próprio inflige. [23]

Leminski inova de muitas e múltiplas formas. São muitos os ferimentos que provoca. Esgrime seus versos com golpes precisos, atualizando em si e para si, bem como nos leitores e para os leitores, as feridas narcísicas da humanidade moderna. Em sua poesia não há o excesso de subjetividade que temiam Schiller e Leopardi na criação de uma nova linguagem poética. Sua rica formação oriental, que incluiu o judô, está presente em sua técnica precisa de dizer o máximo com o mínimo. Usa à vontade figuras de linguagem e de estilo: palavras-valise, neologismos diversos e oximoros como no poema “Invernáculo”, que achamos interessante reproduzir:

INVERNÁCULO
         (3)

  Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
  Quando o sentido caminha,
a palavra permanece.
  Quem sabe mal digo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
  Assim me falo, eu mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
  Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
  uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
  O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
  eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase. [24]


A decomposição de palavras dando-lhes novos e múltiplos sentidos é outro recurso bem utilizado e que parece uma armadilha bem montada para o leitor. O leitor de primeira viagem pode assustar-se e criar uma resistência, mas em se gostando de poesia não há como não se apaixonar pela poesia de Leminski. O aparente não sentido é muito mais que o “nonsense”. Lacan aproveita bem a senda aberta por Freud e faz um importante estudo sobre o mecanismo dos chistes, em seu seminário “As formações do inconsciente” de 1957-58. O capítulo V da versão escrita do seminário tem como título “Le peu-de-sens et le pas-de-sens”. Ou seja “o pouco sentido e o passo de sentido”. Há ambigüidade e ambivalência no “pas-de-sens”, que pode ser o “passo de sentido”, ou o “sem sentido”, mas é do passo de sentido que ele quer falar. Há um evidente ganho de prazer pela passagem desse pouco sentido ao sentido desvelado. Dentro da teoria econômica freudiana haveria um alívio de tensão, pelo relaxamento da censura. Há vida na obra de Leminski como na de Wordsworth. Ambos descobriram novos usos para as palavras. Se Wordsworth construiu uma poética proustiana, com um discurso paradigmático minucioso, Leminski mostra também a sua angústia e a sua influência, em textos curtos e concisos, mas cheios de sentido em seu aparente sem (ou pouco) sentido. O valor das palavras está no uso que se faz delas, no sentido que se lhes dá. Está no prazer que esse uso pode nos proporcionar. Evocamos, novamente com Bloom, o termo tessera, para analisar a influência recebida por Leminski. Esse termo foi usado por Lacan em seu “Discurso de Roma” citando uma observação de Mallarmé, que “compara o uso comum da língua à troca de uma moeda cujo verso e reverso trazem apenas efígies gastas, e que as pessoas passam de mão em mão ‘em silêncio’” [25]. A tessera era uma pequena peça de cerâmica quebrada em duas partes e que servia de senha de reconhecimento para os iniciados nas primeiras religiões de mistério. Diz Lacan em seu discurso: “Essa metáfora basta para lembrar-nos que a Palavra, mesmo quando completamente gasta, retém seu valor como tessera[26]. A relação de Lacan com a obra de Freud é uma releitura revisionista e de resgate da construção teórica freudiana que em grande parte se perdera com os pós-freudianos, e dentro desse cenário pode ser vista como um exemplo de tessera Em “A Coisa freudiana” Lacan, nessa tentativa de resgate de Freud, utiliza a frase Adaequatio rei et intellectus (a adequação dos bens e do pensamento). Res-rei em latim tem o sentido de coisa possuída. Está implícito aí o sentido de valor, sendo o genitivo rei o mesmo genitivo da palavra reus, cada uma das partes litigantes em um julgamento, em especial o acusado (causador), aquele que está em dívida por alguma coisa. Por extensão, nas línguas latinas, a causa (causa-ae) jurídica, geralmente associada à palavra res-rei, dá origem às palavras causa e coisa (cause e chose, em francês). Lacan quer falar aqui da “dívida simbólica pela qual o sujeito é responsável como sujeito da fala” [27], isto é, como cativo e usuário da língua.

“La vie en close/ c’est une autre chose...”, livro-poema de Leminski, ou: “de perto ninguém é normal” como canta Caetano Veloso. A coisa leminskiana causa valores inestimáveis em seu percurso. Do “Catatau”, romance joyceano inaugural, aos Hai-Kais que sintetizam muito desse percurso, Leminski é o diabo no livro, no meio do redemoinho das letras [28], principalmente na poesia, brasileiras. Dá conta da dívida simbólica que tem com as palavras (les mots) e com a fala (la parole), e da angústia que acompanha a influência recebida, sem acomodar-se ao legado. Como Bashô, não segue os mestres, mas procura o que eles procuraram, fazendo saltar o sapo para agitar as águas tranqüilas e às vezes estagnadas do velho poço da literatura.

...para que certos princípios, como a justiça e a bondade, possam atuar e enriquecer, é preciso que surjam como algo que obtivemos ativamente a partir da superação dos dados. “Obtém a ti mesmo” - é o conselho nietzschiano que o velho Egeu dá ao filho, no Teseu, de Gide. Para essa conquista das mais lídimas virtualidades do ser é que Nietzsche ensina a combater a complacência, a mornidão das posições adquiridas, que o comodismo intitula moral, ou outra coisa bem soante. Na sua concepção há uma luta permanente entre a vida que se afirma e que vegeta; parecia-lhe que esta era acoroçoada pelos valores rotinizados da civilização cristã e burguesa. [29]

Mas o sentido abre sempre e indefinidamente para outro(s) sentido(s). Em todo escrito há sempre a tentativa de mostrar que o sentido que eu lhes dou na verdade não está em mim, está sempre em algum Outro lugar. Leminski desconstrói uma poética da época, e constrói o seu espaço com brilhante arquitetura:

arte que te abriga arte que te habita
arte que te falta arte que te imita
arte que te modela arte que te medita
arte que te mora arte que te mura
arte que te todo arte que te parte
arte que te torto ARTE QUE TE TURA [30]


O título colocado no final e inserido no poema dá um exemplo da sua técnica pouco rígida mas precisa. “Escrever, como navegar, é preciso”. Assim a viagem com Leminski é garantida e segura porque sempre belíssima. O roteiro não é rígido; depende muito do leitor. Em “Anseios crípticos” volta à materialidade das palavras e da fala: “Poesia é uma coisa muito material, afinal, o espírito da matéria, aquele espírito que, no fundo, a matéria é, ou não?” [31]. E a sua poesia é isso. A materialidade das palavras com múltiplos sentidos, e a sintaxe livre mesmo das normas mais frouxas da poesia, garantem uma leitura prazerosa e renovada a cada vez. Uma leitura rica pela forma leve de mostrar a sua erudição. O eu lírico construído por Leminski não tem a subjetividade radical das poesias romântica, parnasiana e mesmo simbolista. Bebe das fontes modernista, surrealista, concretista e psicanalítica, mas não se prende a um cânone específico. Não há a frieza calculada das palavras dos versos cabralinos, nem a fanopéia rica da linguagem metafórica da poesia novecentista brasileira. Muito mais para o movimento modernista de Oswald de Andrade, a logopéia e a melopéia nos seus poemas é prazerosa, mas não garante prazer fácil. Como na música atonal, é preciso habituar os ouvidos na leitura - mesmo silenciosa - dos seus versos. Em entrevista concedida em 1976 a Régis Bonvicino falando sobre o “Catatau”, Leminski diz que o encontro entre a “Poesia Concreta paulista e a Tropicália baiana”, encontro a que chamou “pororoca”, “é o mais importante acontecimento da cultura brasileira dos últimos 10 anos” [32]. Para Fabrício Marques, analisando esta fala na biografia “Aço em flor” (nome de um poema de Leminski), “O encontro dessas duas margens geraria uma terceira, construtivo-tropical, que poderia definir a linguagem poética de Leminski”. [33]

A passagem para o sentido com simultâneo ganho de prazer requer uma iniciação. Adquirida a senha com o código leminskiano, onde o menos vale mais, está estabelecida a (re)ligação (sentido original da palavra religião). A tessera dá acesso ao campo semântico inusitado, com efeitos de sentido surpreendentes, podendo sugerir importantes aproximações com a psicanálise. O autor, através da escrita aparentemente livre mas altamente elaborada, provoca importantes efeitos na formação do leitor. Wordsworth livrou-se do positivismo do século XVIII para criar a sua modernidade. Leminski se livra do positivismo militar ditatorial da época, como muitos outros o fizeram, também através da poesia, mas construindo um caminho próprio, dificilmente classificado dentro de um gênero, uma escola ou um grupo qualquer. O seu eu poético não está preso a subjetividades ditadas por padrões de consumo. Ao falar do sujeito comum de forma inusitada, quase criptográfica, ganha o seu lugar de oráculo em que se busca não só a palavra dita, mas também o lugar de escuta capaz de receber o que o leitor tem a dizer.

 

Ruy Perini

 

5. REFERÊNCIAS:

 

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Rio de Janeiro, Imago Editora, 2002.
______, Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro, Imago Editora, Ltda., 1995.

BOSI, Alfredo. Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões. In ______ (org.). Leitura de poesia. São Paulo, editora Ática, 1996.

CESAR, Ana Cristina. Inéditos e Dispersos. São Paulo, Brasiliense, 1991.

DUFRENNE, Mikel. O Poético. Porto Alegre, Editora Globo, 1969.

LACAN, Jacques. (1966). Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda., 1998.

LEMINSKI, Paulo. Caprichos e Relaxos. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.
______. Uma carta uma brasa através. São Paulo, Iluminuras, 1992.
______ et alli. (1987). Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
______. Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo, Editora Iluminuras, 1994.
______. O Ex-estranho. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba; São Paulo, Iluminuras, 1996.
______. (1987). Distraídos Venceremos. São Paulo, editora brasiliense s.a., 1998.
______.(1991). La vie em close... São Paulo, editora brasiliense s.a., 2000.
______. Anseios crípticos 2. Curitiba, Criar Edições Ltda., 2001.

MARQUES, Fabrício. Aço em flor. Belo Horizonte, Autêntica, 2001.

MELLO E SOUZA, Antonio Candido (1946). O Portador - Posfácio ao volume dedicado a Nietzsche da coleção “Os Pensadores”. São Paulo, Nova Cultural, 1987.

NASÃO, Publio Ovídio. As Metamorfoses. Rio de Janeiro, Editora Tecnoprint, 1983.

 

NOTAS

 

[1] LEMINSKI, 1983. P. 12.
[2] ROUSSEAU, apud BLOOM, 2002. P. 117.
[3] LEMINSKI, 1983. P. 15.
[4] NASÃO, 1983. P. 61.
[5] Id. P. 67.
[6] “O que não aparece no simbólico surge no real”, como ensina Lacan.
[7] TAVARES, Salette, Espelho lego. P. 39. Apud Dufrenne, 1969. P. 54.
[8] LEMINSKI, Paulo (1987). 1998. P.43.
[9] VALÉRY, apud MELLO E SOUZA, (1946), 1987. P.7
[10] MELLO E SOUZA, (1946), 1987. P.7
[11] NIETZSCHE, apud MELLO E SOUZA, 1987. P.7.
[12] LEMINSKI, 2000. P. 10.
[13] BLOOM, 2002. P. 142.
[14] Id. Ibid.
[15] Id. P. 143-4.
[16] Id. P.167.
[17] CESAR, 1991. P.193.
[18] EMERSON, apud BLOOM, 2002. P. 144.
[19] BLOOM, 1995. P. 15. As palavras aparecem grifadas no próprio texto citado.
[20] PERINI, Ruy. Inédito, escrito para o presente trabalho.
[21] LEMINSKI, 1993. p. 285.
[22] BOSI, 1996. P. 11.
[23] BLOOM, 2002. P. 175.
[24] LEMINSKI, 1996. p.21.
[25] MALLARMÉ, apud BLOOM, 2002. P. 114.
[26] LACAN, apud BLOOM, 2002. P. 114
[27] LACAN, 1998. P. 436.
[28] Imagem inspirada em Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
[29] MELLO E SOUZA, 1987. P. 3.
[30] LEMINSKI, 1996. p.55.
[31] LEMINSKI, 2001. P. 56.
[32] LEMINSKI, 1992. p. 174.
[33] MARQUES, 2001. P. 31.

 

 

*OBS.: Publicado originalmente em Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid numero 32.

 

**Ruy Perini é Médico, psiquiatra e psicanalista. Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES - BRASIL. E-mail: ruyperini@yahoo.com.br

 

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