O Ex-Estranho explora presença e ausência
O livro do poeta Paulo Leminski, lançado recentemente, é um paradoxo em si *

Rodrigo Garcia Lopes


A energia vital do poeta Paulo Leminski (1945-1989) volta e meia volta a circular entre nós. Hoje é inegável sua contribuição para a definição de novos rumos para a literatura brasileira. Porém, boa parte da crítica e do jornalismo cultural, como apontou Flora Süssekind numa recente entrevista, sofre de incompetência crônica para perceber o que lhe é contemporâneo, ao que está na esquina. Do mesmo modo, são raros os estudos e resenhas sobre o autor de Catatau. Chega mesmo a ser tediosa a insistência com que sua obra inovadora e abridora de caminhos, múltipla e totalmente outra em sua formulação, costuma ser reduzida a um mero apêndice "zen- caboclo" do concretismo ou uma sombra da tropicália e da poesia marginal. Com isso, claro, vende-se a idéia de Leminski como um autor "menor". Um sintoma desse silêncio ocorreu com a recepção nula dos últimos livros do autor, como Descartes com Lentes (1993), Metaformose (1994) e Winterverno (1994). Agora, com o lançamento de seu último livro de poemas, O Ex-Estranho (Fundação Cultural de Curitiba/Editora Iluminuras, organizado pela poeta Alice Ruiz e por Áurea Leminski), temos chance de investigar um pouco mais as pegadas desse poeta que, apesar de conhecido, ainda falta ser reconhecido.
A primeira sensação após a primeira leitura de O Ex-Estranho é o de um abismo se formando a nossos pés, além de outras indicadas no preciso roteiro de viagem deixado pelo autor: esse livro expressa, na maior parte de seus poemas, uma vivência de despaisamento, o desconforto do not belonging, o mal-estar do fora de foco, os mais modernos dos sentimentos. Nisso, cifra-se, talvez, sua "única modernidade". Os poemas confirmam isso, pois estão marcados pela contradição, por uma incerteza fin-de-siecle: "Nunca sei ao certo/se sou um menino de dúvidas/ou um homem de fé/certezas o vento leva/só dúvidas continuam de pé." O próprio título indica esse jogo de presença e ausência pretendido no livro, pois o ex-estranho é um paradoxo em si. Seria alguém que foi um estranho em vida, alguém que não está mais? Ou alguém que, por sua presença escrita, agora nos é familiar? Desse ser restam fragmentos, takes que registram o espanto diante da experiência estética do mundo: "Foi tudo muito súbito/tudo muito susto/tudo assim como a resposta/fica quando chega a pergunta/esse isso meio assunto/que é quando a gente está longe/e continua junto." Há um certo tom de despedida e desencanto. No entanto, a vida é que é afirmada em pelo menos um terço do livro.
Fantasma na multidão, o ex-estranho reage à velocidade da modernidade e das metamorfoses à sua volta com um misto de surpresa e horror: "Acordei e me olhei no espelho/ainda a tempo de ver/meu sonho virar pesadelo." Ele é também o outro, o que se sente um estranho no próprio país, na própria língua, destinado a falar numa espécie de língua estrangeira. Como escreveu o autor de Anseios Crípticos: "Em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa. A língua portuguesa é um desterro, um exílio, um confinamento." Ao mesmo tempo, talvez fosse possível completar e dizer que, por isso mesmo, esse desterro possibilita a descoberta de novos territórios e contatos imediatos. Esse é o tema de Invernáculo, que abre o livro: "Esta língua não é minha,/qualquer um percebe./Quando o sentido caminha,/a palavra permanece (...)/Esta língua não é minha língua./A língua que eu falo trava/ uma canção longínqua,/a voz, além, nem palavra./O dialeto que se usa/à margem esquerda da frase,/ eis a fala que me lusa,/eu, meio, eu, dentro, eu, quase."
O mais curioso no volume é que esse estranhamento é expresso, na linguagem dos poemas, por um irônico e insistente uso de recursos familiares ao repertório poético do século passado, principalmente do simbolismo, parnasianismo e do século 17 (barroco). Leminski parece se divertir de subverter e transformar em novos significados figuras de linguagem como a antítese. Não faltam também um certo gosto parnasiano pelo artifício e outros recursos que correriam o risco de virar clichê nas mãos de poetas menos talentosos: "O que o amanhã não sabe/o ontem não soube/nada que não seja o hoje/jamais houve." A atmosfera barroca percorre o livro por meio do jogo de tensões, dos trocadilhos de idéias, da dramatização da fala e do tema da fugacidade da vida. Já o parnasianismo fica evidente no tratamento formal dos poemas e do conceito de poesia como "inutensílio", não sem ironia: "Passarinho parnasiano/nunca rimo tanto com faz./Rimo logo ando com quando (...)/Rimar é parar, parar para ver e escutar/Remexer lá no fundo do búzio/aquele murmúrio inconcluso,/Pompéia, idéia, Vesúvio,/o mar que fala do mar. Para fechar, no melhor estilo da Academia dos Esquecidos: "Vida, coisa pra ser dita,/como é dita este fado que me mata,/Mal o digo e já meu fado se conflita/com toda a cisma que, maldita, me maltrata."
Os 44 textos de O Ex-Estranho são uma boa amostra do processo criativo do último Leminski, no que tem de "rigor" e "desleixo", dando uma lição aos poetas de agora: de que mesmo em tempos em que "tudo já foi dito", Internets e modismos, é possível dizer novamente, mas de outro jeito, tornando o lugar-comum incomum. Leminski habitava a linguagem, que ele não via como algo separado da vida. Seus poemas surgem como não-lugares, espaços do prazer e do desvio, do encontro com o "outro": "Me transformar em outro/ou em outro transformar-me/quem sabe obra de arte,/talvez, sei lá, falso alarme,/grito caindo no poço." O que surge de modo claro nesse O Ex-Estranho é o mergulho na idéia de escrever como uma forma estética de pensar e de sentir ("Meus poemas são idéias"). Poucos poetas brasileiros como Leminski souberam unir vida e poesia com tanta intensidade e lucidez, estabelecendo um delicado equilíbrio entre relaxo e capricho. Não há dúvida de que sua obra, irregular e múltipla, vai permanecer, pois soube superar toda uma tradição, por meio do atrevimento, da experimentação. Quem sabe seu caminhar, agora, seja um lugar.

 

Rodrigo Garcia Lopes é autor de Solarium (1994) e Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje (Iluminuras, 1996).

 

OBS.: texto publicado originalmente no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo, 21/6/1996.

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