A nova ruína

Paulo Leminski




Pareceu-me divertida a idéia de uma contra-engenharia,uma anti-arquitetura, onde se fosse da frente para trás, uma arquitetura onde o andaime fosse o fim, e o resto, vão parnasianismo de consumo fácil, uma engenharia onde o objeto arquitetural já fosse direto para seu estado último.
Assim, o nome desta reflexão (odeio a palavra “crônica”, com que alguns costumam designar meus “textos-ninja”) era para ser “instruções para a construção de uma ruína”.
A ruína é o maior abandonado no meio dos edifícios. Cabanas, palafitas, vilas, mansões, castelos, palácios, palacetes, apartamentos, kitchenettes, privadas de quintal, quartos de empregada, qualquer caverna habitável tem tido mais atenção do que as ruínas.
E, no entanto, a ruína é o sentido de final de tudo, o significado dos quartos de empregada, das privadas de quintal, kitchenettes, apartamentos, palacetes, palácios, castelos, mansões, vilas, palafitas e cabanas.
Foi em Brasília que tive essa intuição.
A primeira vez que estive lá, fui ciceroneado pelo poeta Nicolas Behr, que me mostrou as belezas da arquitetura de Niemeyer, aqueles maravilhosos caixotes de cimento que o tempo, com sua habitual perícia e pontualidade, já está carcomendo e encardindo.
Mas de tudo o que vi lá o que mais me impressionou foi o primeiro andar de um edifício interrompido, um começo de prédio com a ferragem interna aparecendo, saindo de dentro do cimento armado, como as tripas de um aborto ou a primeira quadra de um soneto inacabado.
— Uma ruína? Aqui? Neste monumento futurista?
Behr, que ama Brasília até a insensatez, me tirou do pasmo, explicando que realmente era um prédio interrompido, que assim foi deixado para dar um toque humano àquela paisagem sublunar de ficção científica.
Arrebatado pela musa, ali mesmo desovei no ato um poema de dezoito andares chamado “Claro Calar Sobre uma Cidade sem Ruínas”.
Desde então a idéia da construção de ruínas me persegue como uma obsessão.
Dia desses, lembrei que já tinha tido essa idéia, quando garoto. Mais. Que eu já tinha construído, uma vez, uma ruína. Era num mato perto da minha casa, atrás do velho internato dos irmãos maristas, onde eu estudava. No meio desse mato, havia um resto de um velho poço, coberto por uma torre de tijolos. Eu gostava de vir ali de tarde e ficar lendo Deuses, Túmulos e Sábios, o livro que mais me marcou na vida. E no meu desvario de arqueólogo aprendiz, eu gostava de fantasiar que aquele resto de poço pertencia a uma civilização desaparecida, e tentava imaginar como aquele povo vivia, que técnicas conhecia, que língua falava.
Um dia, caí em mim e me rebelei contra aquela ficção.E resolvi construir eu mesmo a minha própria ruína. Fabriquei tijolos de barro no riacho mais próximo, que eu enchi de inscrições ilegíveis, mesmo para o lingüista hábil que eu já era aos onze anos. Com os tijolos, fui construindo dia após dia minha própria torre de Babel, fadada ao fracasso desde o nascimento. Abandonei a construção, quando ela já estava quase da minha altura, pois descobri que aquele povo sacrificava aos seus deuses sanguinários os arquitetos com mais de onze anos.
Durante anos, meu amor pelas ruínas me levou ao ódio pela arquitetura.
Eu queria ser um anarquiteto de desengenharias.
Ainda hoje, quando vejo um belo caixote de vidro e cimento na avenida Paulista, ainda me consola pensar:
— Calma, calma, rapaz. Imagine que bela ruína isto vai dar um dia.
Mas eu não sou desses que acreditam em idéias individuais.
Tenho certeza que essa minha obsessão deve estar presente em muita gente, neste país onde os projetos já nascem mortos, que é um projeto irrealizado senão uma ruína novinha em folha?
Proponho, portanto, a introdução de uma nova cadeira em nossas escolas de Engenharia e Arquitetura, a de construção de ruínas.
Só construindo suas próprias ruínas, lúcida e conscientemente, o Brasil poderá readquirir o prestígio arquitetônico que teve nos tempos de JK, aquela ruína do sonho de um país em desenvolvimento.

 

in ENSAIOS E ANSEIOS CRÍPTICOS, Pólo Editorial, 1997.
reproduzido em REVISTA NOZ nº 3, PUC-RIO, 2009, p. 6-7

 

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