O PRIMEIRO ANO DE NICOLAU:
"NÓS DO PARANÁ"


Eduard Marquardt1

Sob patrocínio do Governo do Estado do Paraná e responsabilidade da Imprensa Oficial, lança-se em Curitiba, julho de 1987, o primeiro número de Nicolau, publicação cultural sob coordenação de Wilson Bueno, com o objetivo de suprir algumas lacunas regionais: a necessidade de a produção literária recente divulgar seus textos, bem como registrar a história do Estado e de suas gentes e personalidades, sob a marca da "pluralidade de pensamento".

Com uma tiragem bastante elevada, que ultrapassa os 150 mil exemplares, Nicolau (nome familiar aos extratos emigrantes da região, representando o "Papai-Noel") passa a circular mensal e gratuitamente, quer seja como anexo aos jornais paranaenses, quer seja via correio para as outras localidades. Com invariáveis 28 páginas, a distribuição de espaços é fixa, correspondendo mais ou menos aos seguintes percentuais: 16% para a reportagem, 14% para a ficção (contos e crônicas), 13% para a produção poética, 13% para depoimentos, 13% para resenhas, ficando os 31% restantes para entrevistas, HQs, ensaios fotográficos, cartas do leitor e informes locais. Assim sendo, o leitor do jornal estaria em contato, em doses homeopáticas, com toda a cultura produzida no Estado.

Pormenorizando alguns desses dados, nas reportagens encontram-se levantamentos sobre as paisagens do Paraná (a Ilha do Mel, a Estrada do Colono, o Parque Nacional Iguaçu, etc.), textos nos quais o repórter figura como desbravador do cenário desconhecido, apresentando depoimentos de moradores locais ou autoridades sobre a necessidade de preservação dessas áreas. Não raro, parece ser a intenção destes textos catalogar a origem do emigrante e descrever seus costumes. No mesmo sentido, procura-se resgatar a escultura do interior do Estado, na procura de artistas (santeiros, na verdade), marginalizados pelo moralismo cristão2, ou retratar a condição subalterna dos índios e das comunidades africanas do Paraná. Também há destaque para as datas históricas, como a Revolução de 1924, ou a Guerra do Paraguai, sendo breves textos descritivos sobre as batalhas travadas, procurando mapear as regiões, ou registrar os conflitos atuais (a eclosão do movimento dos sem-terra).3 São repórteres mais freqüentes Adélia Lopes, Rosse Marye Bernardi, Geraldo Leão, Denise Guimarães. Vale ainda lembrar, no campo da reportagem, a colaboração do jornalista e escritor paulista João Antônio, autor de Lambões de Caçarola, que escreve sobre a censura comandada por Armando Falcão, resgatando textos que ficaram retidos devido à vigência do AI-5, ou denunciando a falta de atenção por parte da crítica para com autores fora do eixo RJ-SP. Em Nicolau, no espaço reservado para a literatura, a preferência, como não poderia deixar de ser, está para os autores do Estado, carentes de espaço, editoras e, mais ainda, de leitores. São cerca de dois a três poemas por número, e uma ou duas crônicas, ou contos, sempre ocupando páginas inteiras, auxiliados por vinhetas ilustrativas ou experimentações gráficas que ressaltam na forma. Na verdade, parece estar mais em jogo o acabamento gráfico desses trabalhos do que o discurso que veiculam.4 Os poetas são Jamil Snege, Sérgio Rubens Sossélla, Helena Kolody, sendo que, dos vários nomes divulgados, Paulo Leminski e Alice Ruiz seriam os que de alguma forma já gozavam de certo respaldo fora do periódico (como na revista Código, p. ex.); dos ficcionistas, Domingos Pellegrini, Valêncio Xavier, Nilson Monteiro, entre outros que, de uma ou de outra forma, vão compondo a cena literária paranaense. Mas parece interessante observar que tanto a poesia quanto a ficção de Nicolau, em sua massa de textos, constituem produtos de autores que ora aparecem publicando poemas, ora resenhas, ora dando depoimentos. É também o caso do editor Wilson Bueno, da editora-assistente (a partir do n. 4) Josely Biscaia Vianna Baptista5, do cineasta Sylvio Back, do professor Alberto Puppi, entre outros, formando um círculo que, aos poucos, se auto-legitima.

Também se encontram nas páginas de Nicolau curiosas colaborações no campo da poesia e da ficção, algumas vezes com apresentações elogiosas, outras sem qualquer nota, como as de Rubem Braga, Fernando Sabino, Ferreira Gullar, Nélida Piñon, José J. Veiga, caracterizando uma seção, não explícita, de "personalidades da literatura brasileira". Pode-se ler nessas publicações, uma possível estratégia, ao mesmo tempo, de legitimação para o jornal e de consagração para os escritores, uma vez que são autores populares e já abonados pelo mercado editorial. Nesse sentido, vale registrar que Nicolau celebra a estréia de Arnaldo Antunes como poeta, hoje o maior representante pop do concretismo.

Para o depoimento também é reservada boa parte do espaço do jornal. Falo da seção "Nós (...)", ou "Aspectos da experiência paranaense", que firma a tendência regionalista de Nicolau. Mais uma vez se busca mapear as regiões interioranas do Estado, divulgando suas qualidades e necessidades (como, p. ex., ampliar a rede elétrica nas áreas agrícolas), ou registrar fatos julgados fundamentais para a memória local (a universidade mais antiga do país; a tomada da reitoria da UFPR pelos estudantes, quando da ameaça de privatização). A seção ainda busca veicular depoimentos de personalidades que já não residem no Estado, mas que escrevem para enaltecer sua qualidade de paranaenses nativos. É o caso de Hélio Teixeira (jornalista, na época assessor dos senadores José Richa e Mário Covas), que compara o tédio de Brasília à efervescência da capital paranaense, assinalando a ascensão do Paraná na representatividade da política nacional; ou ainda do poeta José Paulo Paes, que relembra a década de 40, época "modernista" de Curitiba, registrando os movimentos literários e suas revistas. Aliás, as revistas literárias paranaenses aparecem enfocadas duas vezes ao longo do primeiro ano de circulação de Nicolau. A primeira no n. 6, no artigo "Os rapazes de 40 e suas revistas" (p. 22-23) por Cassiana Lacerda Carollo, que faz um levantamento geral dos títulos (Tingüí, A Ilustração, Moços, O Livro, A Idéia, Joaquim (coordenada por Dalton Trevisan) e Guaíra); a segunda por este artigo de José Paulo Paes, "Nós num começo de vida' (n. 12, p. 5), no qual Paes relembra o trabalho dos grupos literários curitibanos, entre os quais figuravam Colombo de Sousa, Armando Ribeiro Pinto, Glauco Flores de Sá Brito, Dalton Trevisan, Samuel Guimarães da Costa e o próprio escritor. Em resumo, trata-se de um espaço em aberto, mas que prestigia o profissional liberal, fundamentando um discurso marcado pelo populismo.

No entanto, é nessa seção de depoimentos que surge uma polêmica que altera a rotina do jornal, e que parece expor o que se poderia chamar de "Projeto Nicolau". Trata-se do artigo "Nós da estrada" (n. 3, p. 5), de Otávio Duarte (paranaense, na época editor de jornalismo da Rede Globo em São Paulo), no qual o jornalista questiona o ufanismo do Estado e a qualidade da produção literária local. Não se trata de reafirmar as palavras de Duarte, mas parece interessante registrar algumas passagens:
é sempre assim: Paraná? Dalton Trevisan, Paulo Leminski. Um Joaquim, outro ante-Nicolau (...) na literatura que não existe, a brasileira, muitos batem no peito. Mas quem pode dizer que chega perto sequer de Guimarães Rosa? Qual é o grande romancista, poeta? No entanto, habemus Valêncio Xavier. Ironicamente, já objeto de estudos em academias, as produtivas fábricas de semióticos e outros caolhos. Nós, que estamos na estrada, sabemos o que o Valêncio vale (...) Qualquer guri que já leu meia dúzia de opúsculos e segue atentamente os cadernos ilustrados dos jornais arrota grosso e se dedica aos recitais poéticos. Outros acreditam ser os cronistas de suas gerações, com a grossura e a falta de talento substituindo o que acham ser irreverência. É a epidemia de hai-kais, moderno gonococus. Mas há quem tanto se elogie que acabe arrumando seguidores. E a Bahia de Todos os Santos, por exemplo, exporta pouca economia e saúde, mas tem seu lobby, o marketing das turmas: Caetano que ama Gil que ama Gal que ama Betânia que ama Risério que ama a si mesmo e a todos eles. No Rio, o besteirol. Mas fora a bossa nova, o jazz que virou samba, já existiu alguma coisa? O cinema era novo?
No número seguinte, Paulo Leminski responde ao jornalista, questionando as ofensivas de seu interlocutor:
Paraná é Estado recente. Estamos fundando uma tradição, um passado, um repertório coletivo (...) Quanto a ninguém chegar perto sequer de um Guimarães Rosa, quem, em qualquer lugar do Brasil (ou do mundo) atualmente chega? Otávio Duarte, por acaso? (...) Ora, a prática do hai-kai está tendo efeito muito salutar sobre a derramada verborragia brasileira de tantos Poemas Sujos por aí, afluentes adiposos de Nerudas e de toda uma empolada retórica "latino-A-mérica", de que não precisamos (temos a linhagem Oswald, Bandeira, Cabral e os concretos, enxuta, concisa, essencial, só nervos e osso). Emitir juízos à distância é fácil. Faça. Depois abra a boca.
Parecem se localizar nas entrelinhas dessa discussão vários dados fundamentais para a leitura do jornal. A princípio, está em questão a finalidade de Nicolau enquanto instrumento de divulgação da cultural local, buscando a inserção dessa cultura específica num contexto maior, nacional. Segundo Leminski, Nicolau faz parte de um projeto que busca fundar uma tradição, ou seja, um projeto iluminista que visa, na divulgação da cultura local, em seus vários setores, encontrar o caminho para o desenvolvimento interno. Desse modo, Nicolau começa a se firmar como um instrumento de estratégia política governamental, estando a serviço de um claro processo de valorização e auto-estima com relação ao que é do Estado, ao ser do Estado, ao estar no Estado, e com outras variações possíveis, desde que de alguma forma relacionadas com o Paraná. Daí, p. ex., a importância da divulgação da paisagem, semeando assim uma provável campanha turística, ou da formação de uma memóría coletiva dos grandes feitos e personalidades do Estado, ou mesmo da tendência antiacadêmica do jornal em seu tom de divulgação (divulgar o poeta, o jornalista, o político, o advogado, o cientista, o ator, a professora, a dona-de-casa...) dos vários profissionais da cultura, e em virtude desse tom, o elevado número da tiragem e o próprio título, almejando popularidade.

Por outro lado, a polêmica gerada pelo depoimento de Otávio Duarte (que caracteriza a voz dissonante, ainda que por vezes ingênua ou talvez ressentida) remete à situação da literatura nos anos 80, que anda em círculos, dada a impossibilidade da produção de "obras-primas". No entanto, a discussão pressupõe a ansiedade pelo "novo", pela fabricação da vanguarda e o resultado catastrófico dessa operação, ou seja, o "marketing das turmas", como coloca Duarte, remetendo à associação Tropicalismo-Concretismo, movimento este com que Paulo Leminski se relaciona, e o qual recebe gradativa simpatia e espaço nas páginas de Nicolau.6 Valeria mencionar ainda o caso do escritor Dalton Trevisan, autor mais citado pelos artigos do jornal neste primeiro ano, o que, de certa forma, efetiva a premissa de Otávio Duarte, indicando a formação do cânone local, que inclui Dario Vellozo, Helena Kolody, e o próprio Leminski.

Por ora, resta dizer que esse panorama – a maneira pela qual Nicolau se estrutura e divide espaços –, de forma genérica, lembra muito a postura adotada pelo que se pode chamar de primeira fase (1977) do Folhetim, da Folha de S. Paulo, no que concerne a um projeto de "catequização da cultura"7, mas que no caso do Nicolau canaliza-se num claro processo de construção de identidade. Nicolau é o Paraná, e justamente essa subserviência a um regionalismo perene, e a uma dita pluralidade, é o que compromete a relevância do discurso do jornal, que não vai muito além dos parâmetros da doxa, e que perdura apenas dentro da redoma que cria para si.

Todavia, esses dados ainda não merecem ser lidos como totalizadores, pois 12 números correspondem a um recorte pequeno, uma vez que Nicolau estendeu-se por praticamente setenta. De qualquer forma, o trabalho está iniciado.

NOTAS:

1 Bolsista de lniciação Científica - CNPq.

2 É o caso de Henrique Aragão, autor de uma estátua de Cristo em bronze, de 4 metros, esculpida para a igreja matriz do município de Aluminosa, mas que foi recusada pelo vigário em virtude de o Cristo estar nu e possuir um pênis proporcional ao tamanho da estátua. (Ver LOPES, Adélia. "Um mundo bizarro longe deste insensato mundo" Nicolau n. 4, p. 22-23.)

3 É interessante observar que este assunto, o das batalhas paranaenses e fronteiras, constitui material para os cineastas do Estado, como Sylvio Back (Guerra do Brasil), Sérgio Sanderson (1924: Bendita Revolução) e Berenice Mendes (A classe roceira). Os filmes também têm vinculação com o Estado.

4 O aspecto gráfico é um dos pontos altos de Nicolau. Talvez se possa dizer que esse é o trabalho mais requintado do jornal, tornando o processo de leitura "mais leve", e talvez mais atraente, tendo-se em vista atingir um público quantitativamente maior.

5 Josely Baptista é conhecida pelas traduções para o português de Alejo Carpentier e José Lezama Lima. Em Nicolau escreve dois breves textos sobre os autores, revelando certa preocupação com a literatura latino-americana e com a cultura da fronteira, a paraguaia.

6 Nesse sentido, vale registrar, embora fora do recorte aqui feito, que no n. 13 aparece a primeira contribuição de Haroldo de Campos para o jornal, recebido como "mestre Haroldo, precursor dos percursos por campos e campos imantados de invenção e poesia". (Ver nota ao "Pré-haicai". Nicolau n. 13, p. 17.)

7 Cf. CHAGA, Marco Antonio Maschio Cardozo. "O suplementário Folhetim da Folha de S. Paulo" Boletim de Pesquisa – NELIC, n. 1. Ilha de Santa Catarina: fev./1997, p. 10-14.