o inventor da prosódia
bop espontânea



Ele, Ginsberg e outros semearam o solo para a contracultura dos anos 60 e 70

Quando os beats tomaram de assalto a cena cultural e literária norte-americana, pregando a retomada de uma tradição visionária e dionisíaca, vivia-se a paranóia da Guerra Fria e a institucionalização do “american way of life”. Eram os “tranqüilizantes anos 50”. A poesia estava dominada pelos parâmetros conservadores da Nova Crítica ou por poetas apoiados por ela (Schwartz, Elizabeth Bishop, Jarrell, Tate e Lowell) e que tinham em Eliot nada menos do que a reencarnação de Deus.
As palavras de ordem eram “rigor”, “impessoalismo” e “artesanato”. Essa poesia de luvas brancas, acadêmica e formalista, enfatizava a técnica pela técnica e um retorno às convenções poéticas, num tom “elevado” e conformista (mais ou menos como ocorre hoje com a “poesia oficial” escrita no Brasil e seus poetas de terno e celular).
Ginsberg, Burroughs, Ferlinghetti, Snyder, Kerouac e a “beat generation” (termo que ele cunhou) vieram definitivamente para desafinar o coro dos contentes, provocando não só o maior fenômeno literário e cultural da segunda metade do século em todo o mundo, mas semeando o solo para a contracultura dos anos 60 e início dos 70.
A mídia não perdeu tempo, transformando os beats em fenômeno pop da noite para o dia, com repercussões imediatas no comportamento, no cinema e na TV. A fama instantânea provocada por On the Road (livro que amargou anos de recusas até ser publicado em 1957 e virar best seller) veio acompanhada de uma recepção crítica feroz aos beats mas principalmente a Kerouac. O “Rei dos Beats”, por sua vez, iria se arrepender da lenda que ele mesmo ajudou a construir. Biógrafos apontam a fama imediata e a recepção crítica negativa a seus livros como responsáveis por efeitos devastadores sobre Kerouac, que a partir de então iria se afastar das estradas que o celebrizaram, se enfurnando no quarto da casa de sua mãe e se encharcando de vinho barato.
Sua primeira biógrafa, Ann Charters, conta que, ao visitá-lo, em 1966, tomou o homem que abriu a porta pelo pai de Kerouac. Quando deu entrada num hospital da Flórida para morrer, em 21 de outubro de 1969, Kerouac tinha 47 anos. O laudo médico atestava “hemorragia gastro-instestinal massiva”. Kerouac foi enterrado a 24 de outubro em Lowell, Massachussets, sua cidade natal.

Bagagem literária


Os estereótipos criados ao redor dos beats pela imprensa e pela crítica da época, enfatizando mais seus estilos de vida “porra-louca” do que suas obras, acabaram prejudicando a recepção crítica da contribuição beat. Críticos se recusavam a encará-los com seriedade enquanto criadores de uma nova poética, esquecendo-se de que os principais beats eram figuras com uma bagagem literária respeitável.
Entre as várias contribuições de Kerouac, Ginsberg, Snyder, McClure e os beats podemos mencionar: a revalorização de uma tradição visionária da poesia, então negligenciada pelo cânone formalista da Nova Crítica e a influência de Eliot, redespertando nos EUA o interesse por Whitman, Thoreau, Rimbaud, D.H. Lawrence e Blake; a abertura para outras culturas, a introdução do zen e do budismo e o resgate dos mitos indígenas norte-americanos; a recuperação da tradição oral da poesia, fazendo-a saltar da página impressa para a fala, em recitais pioneiros que fundiam poesia e jazz (foi exatamente no famoso recital da Six Gallery, em San Francisco, 1955, que o movimento beat teve início); o aguçamento da consciência política, racial e ecológica (com exceção de Kerouac, que odiava os hippies e chegou a apoiar a Guerra do Vietnã).
Mais lembrado pelos aspectos autobiográficos de sua obra, a grande contribuição de Kerouac para a literatura americana é o que ele chamou de “prosódia bop espontânea”, um estilo estimulado não por modelos literários, mas musicais: o jazz de Thelonious Monk, Dizzy Gillespie e, principalmente, Charlie Parker.
Kerouac explicava assim seu método de composição, que tomava como base a respiração e a improvisação do bebop: “Jazz e bop, no sentido de um saxofonista tomando fôlego e soprando uma frase em seu sax, até ficar sem ar novamente e, quando isso acontece, sua frase, sua declaração foi feita... É assim que separo minhas frases, como separações respirantes da mente.”
O ritmo sincopado e vertiginoso de sua prosa, com suas fusões e alterações no tempo, com seus catálogos de sensações e visões, previram, por exemplo, a poética da fala rítmica que se observa hoje no rap (que nada mais é do que a sigla de “rhythm and poetry”).

Prosa “delírica”


Se a linguagem é algo inseparável do mundo, se é nela e através dela que o mundo se constitui, pode-se dizer que poucos escritores norte-americanos levaram esse fato a tal extremo quanto Kerouac. Seu modelo “espontâneo” e não linear de escrita, no entanto, foi burilado por anos de leituras, tentativas, experimentos e depois de ter dominado as convenções narrativas (como ocorre em The Town and the City). Bem ao contrário do que pensavam os críticos, para quem seu estilo era pura irresponsabilidade formal (o escritor Truman Capote chegou a dizer que o que Kerouac fazia não era literatura e sim “datilografia”).
Kerouac queria sua linguagem capturando o pensamento em movimento com o máximo de fidelidade à sua ocorrência (“first thought, best thought”), com uma atenção mais dirigida ao som da linguagem, livre das convenções narrativas e das amarras da gramática e sintaxe. É na prosa experimental e “delírica” de Visions of Cody (1951-52, publicado em 1974) que a “prosódia bop” se concretiza.
Embora sua obra continue menosprezada pela crítica, poetas das novas gerações têm sido capazes de reconhecer a impotância de Kerouac para o desenvolvimento da literatura norte-americana. Como comenta Charles Bernstein em Vozes e Visões: “Visions of Cody é um trabalho poético tanto em sua concepção quanto em sua execução. Aquelas frases extensas e intermináveis são similares à idéia de Charles Olson de uma idéia que continua e nunca pára, de uma percepção se movendo instantaneamente de um ponto a outro, fruto de um processo perceptivo. A prosódia bop espontânea de Kerouac foi uma intervencão muito importante, pois permitiu que os ritmos musicais de um free jazz, da improvisação, do fluir, passassem a ser o impulso determinante da escrita.”
A contribuição de Kerouac e os beats foi ter aberto as portas da poesia para tudo o que até então não era considerado “poético”. Sobretudo, a geração beat gerou textos fundamentais da literatura americana contemporânea como Howl, Naked Lunch, Riprap, Visions of Cody, Kaddish, A Coney Island of the Mind e o maravilhoso Mexico City Blues. A razão de seu sucesso foi ter mostrado que há mais poesia entre o céu e a Terra do que poderia supor nossa vã literachatice.

RODRIGO GARCIA LOPES
in Caderno 2, Jornal O Estado de S. Paulo, 23 de outubro de 1999

(matéria gentilmente cedida pelo autor para Pop Box)


Rodrigo Garcia Lopes é autor de "Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-americanas Hoje" (Iluminuras, 1996), "Solarium" (Iluminuras, 1994), "visibilia" (Sette Letras, 1997) e Mestre em Artes pela Arizona State University com tese sobre a obra de William Burroughs.

 

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