[4] O SONETO EM PORTUGAL

[4.1] Entre os povos novi-latinos, foi o soneto introduzido por Mellin de Saint-Gelais (1491-1558), na França, por Iñigo López de Mendoza, Marquês de Santillana (1398-1458), na Espanha, e por Francisco de Sá de Miranda (1495-1558), em Portugal, onde tem brilhante história. Esplendeu com alto relevo nas líricas de Camões e Bocage, poetas máximos, respectivamente, dos séculos XVI e XVIII, e atingiu o maior grau na profundeza de pensamento em Antero de Quental, no século XIX. [4.2] Na última fase do período pré-clássico da literatura portuguêsa, que fecha o ciclo dos cancioneiros medievais, dominava a poesia árida e fria, característica dos poetas chamados "palacianos", na qual sobrava artifício e faltava originalidade; toda ela mostrava-se claudicante na língua, na metrificação imperfeita e na retórica insulsa e convencional, em que quase não havia substância poética propriamente dita. [4.3] O predomínio do espírito do Renascimento, que se iniciou no primeiro quartel do século XVI, é assinalado, na poesia lusitana, pela presença de Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, Luís de Camões, Cristóvão Falcão, Antônio Ferreira, Pedro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz. [4.4] Essa renovação artística, emanada da Itália, onde imperava a nova poesia de Dante e Petrarca, sobretudo a deste último, data do regresso de Sá de Miranda a Portugal, em 1526, após seis anos de permanência naquele país, onde assistira aos albores da nova era que se abria para o espírito humano. [4.5] De lá trouxe Sá de Miranda a técnica do soneto. Sobre a introdução deste em Portugal, escreve Fidelino de Figueiredo, firmado na opinião de D. Carolina Michaëles de Vasconcelos: "Posta completamente de parte a hipótese de haver sido o soneto cultivado antes de Sá de Miranda, a este cabe a glória de ter feito o seu primeiro ensaio com as vinte e nove peças desse gênero, que andam nas suas obras. Não foi da antiguidade que Sá de Miranda tomou esta sua inovação, porque a antiguidade o desconheceu; o soneto é um gênero poético moderno." [4.6] "O seu nome proveio da lírica provençal, mas nela com o significado genérico de qualquer peça poética acompanhada de música. Com a estrutura, com que hoje o conhecemos, tornada inalterável pela consagração dos séculos, foi a Sicília, no século XIII, que o produziu e foi Petrarca que o pôs triunfalmente em moda. Dois quartetos e dois tercetos de dez sílabas com as rimas encadeadas segundo as fórmulas ABBA/ABBA-CCD/EDE - ou ABBA/ABBA-CDE/CDE - ou ainda ABAB/BABA-CDC/DCD - tal é a organização do soneto que se fixou, na qual raramente com êxito mão profana ousou introduzir modificações de sua lavra". (1) [4.7] Cabe aqui uma observação, talvez impertinente. Não obstante afirmar Teófilo Braga que do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, são conhecidas apenas umas "coplas" que havia enviado ao poeta castelhano João de Mena, cronista de D. João II, da Espanha, incluídas no "Cancioneiro Geral" de Garcia de Resende, sabemos que o crítico português Francisco Dias Gomes (1745-1795) era de parecer que "o soneto, introduzido em Portugal pelo famoso Infante D. Pedro de Alfarrobeira, poeta insigne (...) foi pelo Sá de Miranda aperfeiçoado e estabelecido de maneira que ao presente o vemos." (2) [4.8] O Infante D. Pedro (1392-1449) foi regente do Reino durante a menoridade de D. Afonso V, seu sobrinho, de 1438 a 1448, e no ano seguinte foi assassinado pelas mesnadas do Duque de Bragança e do Conde de Barcelos, junto ao ribeiro denominado Alfarrobeira, de onde lhe teria vindo a alcunha usada por Dias Gomes. [4.9] No caso de oferecer margem a controvérsia o referido parecer do antigo crítico, seria digno de consideração o seguinte trecho de Teófilo Braga: "Dom Afonso decretou perseguição até ao quarto grau a todos aqueles que acompanharam seu tio o infante D. Pedro; é crível que isto atuasse no desaparecimento das suas obras poéticas." (3) Acrescenta ainda Teófilo Braga que "o conhecimento da poesia castelhana em Portugal no século XV foi introduzido pelo Infante D. Pedro, amigo e admirador de João de Mena, que, com Herman Perez de Gusmán e o Marquês de Santillana, em Castela, no reinado de D. João II, continuando a antiga influência galaico-portuguesa, souberam vivificar as esgotadas formas trobadorescas com a beleza literária suscitada pelo conhecimento do gênio italiano". Por seu turno, Menendez y Pelayo faz alusão ao predomínio, em Castela, das formas alegóricas de Dante, combinadas com reminiscências de Petrarca, especialmente dos "Triunfos". [4.10] Releva também notar que o crítico brasileiro Sotero dos Reis, referindo-se aos iniciadores da poesia quinhentista, assim se exprime: "(...) era muito natural que aparecessem em Portugal os primeiros ensaios da poesia erótica, didática e elegíaca, feitos por Sá de Miranda, a quem alguns com manifesta injustiça dão o pomposo título de pai da nossa poesia, quando foi apenas o introdutor de três gêneros, pois que no erótico moderno, ou poesia dos trovadores aperfeiçoada por Petrarca se podem compreender não só as canções, mas também os sonetos, dos quais já o Infante D. Pedro, irmão de el-rei D. Duarte, havia feito um tal qual tentame". (4) [4.11] Posta de lado a hipótese suscitada por Dias Gomes e Sotero dos Reis, por colidir com a informação de Fidelino de Figueiredo, com base em D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, volvamos ao sonetista Sá de Miranda. [4.12] Esse velho poeta, consoante a observação do citado Fidelino de Figueiredo, não cultivou o soneto amoroso, o soneto à maneira de Petrarca, calcado na filosofia platônica, corrente no tempo, acrescendo que quase sempre a execução, na fatura dos seus poemas desse gênero, é defeituosa e inestética. Além disso, os seus sonetos são triviais e antipáticos à índole do soneto clássico. [4.13] Leiamos um deles, ao menos como homenagem ao introdutor desse poema em Portugal: [original de Sá de Miranda] O sol é grande, caem com a calma as aves Do tempo em tal sazão que sói ser fria: Esta água que do alto cai acordar-me-ia, Do sono não, mas de cuidados graves. Ó coisas todas vãs, todas mudaves, Qual é o coração que em vós confia? Passando um dia vai, passa outro dia Incertos todos mais que ao vento as naves. Eu vi já por aqui sombras e flores, Vi águas e vi fontes, vi verdura, As aves vi cantar todas de amores. Mudo e seco é já tudo, e de mistura, Também fazendo-me eu fui de outras cores, E tudo o mais renova, isto é sem cura. [4.14] São considerados discípulos de Sá de Miranda os sonetistas Antônio Ferreira, Pedro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Frei Agostinho da Cruz, D. Manuel de Portugal e André Falcão de Resende. [4.15] Dentre estes sobressaem Antônio Ferreira e Diogo Bernardes, pelo cunho petrarquiano que souberam imprimir aos seus sonetos, não obstante a dureza da metrificação, as rimas forçadas e a tibieza na construção, a que, aliás, se refere Teófilo Braga ("História dos Quinhentistas"). Leia-se um de Antônio Ferreira: [original de Antônio Ferreira] Aquele claro Sol que me mostrava O caminho do céu mais chão, mais certo. E com seu novo raio ao longe, e ao perto Toda a sombra mortal me afugentava, Deixou a prisão triste, em que cá estava, Eu fiquei cego, e só com passo incerto, Perdido peregrino no deserto, A que faltou a guia que o levava. Assim com espírito triste, o juízo escuro, Suas santas pisadas vou buscando, Por vales, e por campos, e por montes. Em toda parte a vejo, e a figuro. Ela me toma a mão, e vai guiando. E meus olhos a seguem feitos fontes. [4.16] Nós outros, homens do século XX, carregados do acervo mental que nos veio legando a filosofia de tantos séculos seguidos, não poderíamos ter, e, de fato, não temos ouvidos afinados com vozes tão antigas, como as dos poetas daquele bem distante evo. Contudo, as suas regras poéticas, podadas, racionalizadas e atualizadas, ao sabor das conveniências dos tempos, continuam em vigor nos nossos dias. E temo-lhes feito tal concessão, não em reverência à sua discutível autoridade, mas por não ser possível inventar coisa melhor, na arte de compor poemas. [4.17] Em verdade - diga-se sem hipocrisia - já não nos cala bem à inteligência, aguçada por outros ritmos de vida e de arte literária, o tinir das algemas que João Ribeiro, referindo-se aos clássicos, diz estorvar-lhes a ação dos punhos. Muitos dos temas que os sufocavam com o seu peso afiguram-se-nos frívolos e destituídos de conteúdo poético, assim como os cânones e normas que os escravizavam nos parecem hoje bizantinices ingênuas. [4.18] Digamos, sem nenhum pesar, que se desmoronou irremissivelmente, com quase tudo o que lhe pertencia, o mundo em que eles viveram, suspenso aos fios das hipóteses de Ptolomeu e Tycho Brahé. O nosso mundo, newtoniano e laplaciano, assenta em mais sólidos alicerces, embora não definitivos, como tudo mais, conforme o pensar de James Jeans ("Origem do Sistema Solar"). [4.19] Com exceção de Luís de Camões - que peco espírito, que indigência de idéias, que pobreza de vocabulário, que vazio de pensamento filosófico, que "apagada e vil tristeza", em todos aqueles claudicantes poetas de então, não obstante a soberana vigência das suas regras gramaticais e métricas, que os encadeavam ao seu detestável potro! E que planetária distância não os separa, pelo espírito e pela arte, de Antero de Quental, de Raimundo Correia e de Olavo Bilac, poetas da mesma estirpe e da mesma língua! [4.20] Reconheçamos tudo isto, mas não menosprezemos aqueles pequenos obreiros históricos da arte do soneto português. Justo é que se desconte, ao versá-los a todos eles, a pressão do mundo em que viveram, quando a hoje radiosa língua lusitana, mal saída das mãos trêmulas dos trovadores dos "Cancioneiros", preparava apressadamente o seu farnel para a longa viagem que ia continuar através dos séculos. Perdoemos os pecadilhos e negligências aos pequenos poetas quinhentistas, e aos que vieram logo depois deles, hoje quase todos esquecidos; não os condenemos, com a invocação dos nomes de Shakespeare, Racine, Molière e outros, poetas de outras nações, e quase todos do século dos Seiscentos. [4.21] Não nos esqueçamos também de que não existe engenho, em matéria de construção de estufas, que consiga fazer vicejar, em climas tropicais, a flor alpina e pirenaica chamada "edelvais", como também não haverá jardineiro que faça medrar e florir um cacto do nosso árido sertão nordestino nas encostas nevadas dos Alpes ou dos Pirineus. Cada século tem o seu clima próprio, e a mentalidade humana é moldada por esse clima. Certo, dos balbúcios, tartamudeios e chocarrices literárias daqueles pequenos versejadores proveio o nosso soneto atual. [4.22] É preciso também não deixar na sombra o fato de haver este poema, naquele século, atingido o seu apogeu com Luís de Camões (1524?-1580): "Aquela matéria poética, - escreve o já muito citado Fidelino de Figueiredo - que, extraída do ideal amoroso e literário de Petrarca, vimos vir sendo elaborada desde Sá de Miranda, em sucessivos ensaios, como à busca da perfeita expressão nunca atingida, encontrou no temperamento poético de Camões cabal realização, e dentro da forma para que nascera: o soneto... Como conseguiu o poeta passar da categoria de imitador do soneto petrarquiano à categoria de criador do soneto camoniano? Em primeiro lugar, dominando completamente a execução externa do soneto, já quanto à estrutura da frase que se lhe torna plástica para se moldar obediente ao seu propósito, já quanto à metrificação que pratica com extrema correção e fluência, à parte os fatais pequenos deslizes; deste modo conseguiu Camões as condições do primeiro grau de beleza, a que resulta da harmonia e da elevação, da concisão bem equilibrada, da clareza da linguagem, isto é, a beleza da forma, como idôneo instrumento da expressão. Em segundo lugar, manejando de modo novo e pessoalíssimo a matéria que se lhe oferecia". (5) [4.23] Camões, de fato, pela serena beleza dos seus sonetos, cheios, não raro, de contagiosa melancolia, e pela mestria com que maneja a nossa língua, soube superar todos os poetas seus contemporâneos e não faz má figura junto a Petrarca, seu acatado mestre. [4.24] A alguns dos belos sonetos que compôs anda insistentemente ligado o nome de certa dama do Paço, "Natércia", aliás Catarina de Ataíde, considerada hoje simples personagem de uma lenda literária, nascida de certa burla forjada por Manuel de Faria e Sousa, biógrafo do grande poeta. [4.25] A despeito de interpretação mais recente, defendida pelo Doutor José Maria Rodrigues, notável camonianista, segundo a qual a paixão amorosa de Camões, como a de Tasso, visaria às alturas da Realeza, concentrada que estaria na Infanta D. Maria, filha de El-Rei D. Manuel I, já difícil é hoje isolar-se, pelo menos na imaginação popular, o nome de "Natércia" do romance amoroso de Luís de Camões. [4.26] Da vasta cópia de sonetos que nos legou, a respeito dos quais Mendes dos Remédios parece perfilhar a opinião de que "não chegam a trinta os que entre todos se avizinham da perfeição", transcrevemos seguidamente alguns, inclusive o mais conhecido entre eles ("Alma minha gentil, que te partiste..."), dedicado à memória de "Dinamene", moça chinesa a quem se teria afeiçoado o poeta, no Oriente, e que pereceu afogada, à sua vista: [4.27] [original de Camões] Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida, descontente, Repousa lá no Céu eternamente E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma coisa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. [4.28] [original de Camões] Os olhos onde o casto amor ardia, Ledo de se ver neles abrasado, O rosto, onde com lustre desusado, Purpúrea rosa sobre neve ardia; O cabelo, que inveja ao sol fazia, Porque fazia o seu menos dourado; A branca mão, o corpo bem talhado, Tudo aqui se reduz a terra fria. Perfeita formosura em tenra idade, Qual flor que antecipada foi colhida, Manchada está da mão da morte dura. Como não morre Amor de piedade? Não dela, que se foi à clara vida, Mas de si, que ficou em noite escura. [4.29] [original de Camões] Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela: Mas não servia o pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contentando-se com vê-la; Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel, lhe deu a Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Assim lhe era negada a sua pastora, Como se a não tivera merecida, Começou a servir outros sete anos, Dizendo: Mais servira se não fora Para tão longo amor tão curta a vida. [4.30] Podem ser considerados poetas camonianos os sonetistas cujos nomes se seguem: João Lopes Leitão, Antônio de Abreu, Luís Franco, Pedro da Costa Perestrelo, Francisco Galvão, Estêvão Rodrigues de Castro, Frei Paulo da Cruz, Fernão Rodrigues Lobo Sorapita, Miguel Leitão, Bernardo Rodrigues, Fernão Álvares de Oriente, Frei Bernardo de Brito e Baltazar Estaço. [4.31] O classicismo, que interrompeu a literatura dos trovadores, disciplinou e aperfeiçoou a língua literária, deu beleza e medida ao estilo, fixou formas definitivas, criou gêneros novos, adequados à expressão do sentimento poético, pondo, desse modo, ordem ao caos da literatura medieva. Cabe ao século de 1500 a glória do início dessa palingenesia nas letras portuguesas. [4.32] "Depois dos clássicos (que já eram uma renascença do gosto antigo contra a confusão da média idade) - diz João Ribeiro - vieram os sectários de Marini e Gôngora, o lilismo e o eufuísmo - mas essa perversão, que era o bom gosto e era a moda e se dizia progresso, longe de desluzir os créditos do passado, descaiu em parva ridiculez. E veio a Arcádia, no século seguinte, e restabeleceu a discreta elegância e a perfeição clássicas." (6) [4.33] De feito, o século XVII é assinalado, na história da literatura portuguesa, como período de decadência, a que não foram alheios a atuação moral da invasão dos jesuítas no país, a censura e os índices expiatórios do Santo Ofício, ali introduzidos no reinado de D. João III, com o intuito desonesto de saquear os cabedais dos Judeus. [4.34] A influência do mau gosto literário e do verbalismo, à imitação dos conceptualistas e culteranistas, o amor às antiteses e às metáforas, importados da Espanha, com a dominação dos Filipes, tudo isto caracteriza a poesia portuguêsa do século XVII. [4.35] No tocante à história do soneto, os seus mais notáveis cultores, naquele século, são Vasco Mousinho de Quevedo Castelo Branco, Francisco Rodrigues Lobo, D. Francisco Manuel de Melo e, em plano inferior, André Rodrigues de Matos, Manuel de Faria e Sousa e Soror Violante do Céu. [4.36] Dentre esses escassos sonetistas somente dois são dignos de alguma estima: Rodrigues Lobo (1556-1625) e D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666). [4.37] O primeiro, a quem se tem dado como musa inspiradora uma aia do palácio do Duque de Caminha, excele pela harmonia, vivacidade e melancólica beleza dos seus versos; o segundo, desterrado para o Brasil, ter-se-ia envolvido, conforme a hipótese tradicional, em certa aventura noturna, nos jardins do palácio da Condessa de Vila Nova de Portimão, onde o monarca D. João IV, por motivos idênticos, também se encontrava, resultando disso ter-se batido, à espada, com o poeta. A esse recontro a desoras atribui-se o rigor da justiça da época na punição de D. Francisco Manuel de Melo, que é, talvez, o maior lírico português do século XVII. Os seus sonetos, segundo Teófilo Braga, "podem equiparar-se em melancolia, verdade e delicadeza de expressão aos de Camões." (7) [4.38] Leiamos, como espécimes do soneto seiscentista, os que se seguem: [4.39] De Rodrigues Lobo: Formoso Tejo meu, quão diferente Te vejo e vi, me vês agora e viste: Turvo te vejo a ti, tu a mim triste, Claro te vi eu já, tu a mim contente. A ti foi-te trocando a grossa enchente, A quem teu largo campo não resiste; A mim trocou-me a vista, em que consiste O meu viver contente ou descontente. Já que somos no mal participantes, Sejamo-lo no bem. Ó quem me dera Que fôssemos em tudo semelhantes! Lá virá então a fresca primavera, Tu tomarás a ser quem eras dantes: Eu não sei se serei quem dantes era. (8) [4.40] De D. Francisco Manuel de Melo: Melhor há de mil anos que me grita Uma voz que me diz: És pó da terra. Melhor há de mil anos que a desterra Um sono, que esta voz desacredita. Diz-me o pó que sou pó? e a crer me incita Que é vento, quanto neste pó se encerra: Diz-me outro vento que esse pó vil erra. Qual destes a verdade solicita? Pois se mente este pó, que foi do Mundo? Que é do gosto? que é do ócio? que é da idade? Que é do vigor constante, e amor jocundo? Que é da velhice? que é da sociedade? Tragou-me a vida inteira o mar profundo? Ora, quem diz sou pó, falou verdade. [4.41] Durante a primeira metade do século XVIII, continuou a dominar, na poesia portuguesa, a feição artificial e arrebicada do século precedente; na segunda metade do centênio, posto que sobremodo indeciso ainda, começa a prenunciar-se o advento da fase romântica. O aparecimento das chamadas Arcádias literárias assinala o crepúsculo vespertino do período anterior: é o abrolhar, pelo menos, da inspiração poética fundada no sentimento nacionalista e nas tradições históricas da nação. A escola predominante então tem o nome de "arcádica" ou "francesa", por ser bastante sensível a influência das letras da França na sua produção literária. [4.42] Cabe a Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) e outros a honra dessa insurreição contra o espanholismo dominante e a tentativa da restauração do bom gosto na poesia. Os sonetos de Pedro Antônio Correia Garção (1724-1772) e de Domingos dos Reis Quita (1728-1970) revelam engenho um tanto emancipado das influências vigentes. Seguem-se a estes, como sonetistas, Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), o célebre "Elmano Sadino" da Nova Arcádia, e, com menor relevo literário, o citado Antônio Dinis, Nicolau Tolentino de Almeida, Paulino Antônio Cabral, Abade de Jazente, Belquior Curvo Semedo, João Xavier de Matos, Filinto Elísio, pseudônimo de Dom Francisco Manuel do Nascimento, a Marquesa de Alorna e mais alguns. [4.43] Leia-se este soneto, intitulado "Pôs-se o Sol", de João Xavier de Matos, comprovativo da evolução do gênero, no fim do século XVIII: PÔS-SE O SOL [João Xavier de Matos] Pôs-se o sol; como já, na sombra feia, Do dia, pouco a pouco a luz desmaia! E a parda mão da Noite, antes que caia, De grossas nuvens todo o ar semeia! Apenas já diviso a minha Aldeia; Já do cipreste não distingo a faia: Tudo em silêncio está. Só, lá na praia, Se ouvem quebrar as ondas pela areia. Com a mão na face, a vista ao Céu levanto, E cheio de mortal melancolia, Nos tristes olhos mal sustenho o pranto; E se inda algum alivio ter podia Era ver esta Noite durar tanto, Que nunca mais amanhecesse o dia! [4.44] Manuel Maria Barbosa du Bocage foi, consoante a observação do crítico Sotero dos Reis, "o último poeta clássico digno desse nome, ou antes um intermediário entre clássicos e românticos". Divergindo da opinião de Teófilo Braga, que considera materialmente bem feitos os sonetos de Bocage, mas desprovidos de ideal e do espírito de profundidade e de melancolia só encontrável em Camões, é de parecer o citado crítico que Bocage "excedeu neste gênero, em que pode-se dizer que não tem rival em língua viva, não só aos italianos, mas ao próprio príncipe dos poetas portugueses, que nele até aí não tinha ainda sido igualado pelos seus". (9) E termina o mesmo crítico: "Assim é ele ainda hoje o primeiro poeta da língua portuguesa no soneto, e o será provavelmente por muito tempo, até que volte o gosto para esta espécie de poesia, e apareçam engenhos superiores ao seu, o que será raro". [4.45] Merecem ser lidos os sonetos de Bocage que aqui se transcrevem: [4.46] [original de Bocage] Grato silêncio , trêmulo arvoredo, Sombra propícia aos crimes e aos amores, Hoje serei feliz! Longe, temores, Longe, fantasmas, ilusões do medo. Sabei, amigos Zéfiros, que cedo Entre os braços de Nize, entre estas flores, Furtivas glórias, tácitos favores Hei de enfim possuir: porém segredo! Nas asas frouxos ais, brandos queixumes Não leveis, não façais isto patente, Que nem quero que o saiba o pai dos numes: Cale-se o caso a Jove onipotente, Porque se ele o souber, terá ciúmes, Vibrará contra mim seu raio ardente. [4.47] [original de Bocage] Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões que me arrastava; Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana! De que inúmeros sóis a mente ufana A existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe a Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua origem dana. Prazeres, sócios meus, e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos. Deus, ó Deus!... quando a morte a luz me roube, Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube. [4.48] Refere-se Sotero dos Reis, sem motivo plausível, no final do trecho transcrito, ao regresso do gosto dos poetas ao soneto. De fato, desde 1825, começa, em Portugal, o predomínio do Romantismo, que se prolongaria até 1870. Importado da França, senão da Alemanha e da Inglaterra, teve esse movimento, como programa, além de insurreição contra a literatura clássica, ou melhor, contra o "arcadismo", a concessão de ampla liberdade ao estro poético, à imaginação e ao sentimento, a busca de inspiração nas fontes da natureza e nas tradições nacionais, numa palavra, a introdução do individualismo na arte literária. [4.49] Foram os prógonos do Romantismo, na poesia portuguesa, Almeida Garrett (1799-1854), Alexandre Herculano (1810-1877) e, um tanto de esguelha, Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875). [4.50] Fenômeno análogo ao ocorrido na França, no decurso da fase romântica, sucedeu em Portugal, com relação ao soneto. Desde Almeida Garrett a João de Deus (1830-1896), um dos últimos representantes da escola, em que pese ao opinar de Fidelino de Figueiredo, que o classifica entre os poetas "realistas", caiu o soneto em profunda decadência, esquecidas assim as antigas tradições que tinha na literatura lusitana. [4.51] Leiamos, entretanto, este poema de João de Deus, incluído na poesia "A Vida": A VIDA [João de Deus] Foi-se-me pouco a pouco amortecendo A luz que nesta vida me guiava, Olhos fitos na qual até contava Ir os degraus do túmulo descendo. Em se ela anuveando, em a não vendo, Já se me a luz de tudo anuveava; Despontava ela apenas, despontava Logo em minha alma a luz que ia perdendo. Alma gêmea da minha, e ingênua e pura Como os anjos do céu (se o não sonharam...) Quis mostrar-me que o bem bem pouco dura! Não sei se me voou, se ma levaram; Nem saiba eu nunca a minha desventura Contar aos que inda em vida não choraram... [4.52] Os últimos poetas daquela fase, quase todos de reduzido porte literário, esterilizaram-se cedo, num sistemático e lacrimoso ultra-romantismo que determinou, por volta de 1865, a famosa "questão coimbrã", a qual veio imprimir salutar impulso à evolução da poesia portuguesa, pondo fecho àquele período. [4.53] Coube a Antero Tarquínio de Quental (1842-1891), o grande mestre do soneto moderno em Portugal, o início das hostilidades contra a chefia literária de Antônio Feliciano de Castilho. Na sua "Carta Autobiográfica", dirigida, em 14 de maio de 1887, ao Doutor Guilherme Stork, tradutor alemão dos seus sonetos, assim se refere o poeta-filósofo à sua ação na batalha contra o Romantismo: "O velho Portugal ainda conservado artificialmente por uma literatura de convenção morrera definitivamente. Desta espécie de revolução fui eu o porta-estandarte, com o que me não desvaneço sobremaneira, mas também não me arrependo." (10) [4.54] Tem cabimento, neste lugar, a observação de que a influência da técnica chamada parnasiana teve sempre em Portugal acolhimento bastante medíocre. Antero de Quental, como sonetista, escapa a qualquer classificação escolástica. Posto assevere Teófilo Braga que "os 'Sonetos' de Antero produziram uma forte impressão, não só pela profundidade dos sentimentos como também pela perfeição esmeradíssima da forma" (11), opinião esta reforçada por Fidelino de Figueiredo, ao referir-se, a propósito dos mesmos sonetos, "àquela forma impecável, em que nada falta e nada sobra" (12), julgamos nós, embora sem autoridade credenciável na matéria, que, nos aludidos poemas de Antero, realçam muito mais a austeridade e a inquietude do pensamento filosófico, vazado, aliás, em linguagem nem sempre cristalina, do que o lavor artístico das estrofes. Ainda dos próprios sonetos do último período (1880-1884) ressalta esse caráter intrínseco da poesia anteriana. [4.55] Não estará muito longe deste pensar o parecer de Oliveira Martins, quando, um pouco confusamente, assim se expressa, ao prefaciar a sua edição dos "Sonetos": "É artista (Antero), no que a arte contém de mais subjetivo. A sua poesia é escultural e hierática, e por isso mesmo fantástica. É exclusivamente psicológica e dantesca; não pode pintar, nem descrever: acha isso inferior e quase indigno". (13) [4.56] Repita-se: o parnasianismo, sobretudo o lecontiano ou herediano, não teve aceitação entusiástica em Portugal. A "necessidade", proclamada por Leconte de Lisle, no prefácio da 1ª edição dos "Poèmes barbares" (1852), de rompimento com aquela sorte de poesia, "que não é senão a confissão pública das angústias da alma" (14), não preocupou os poetas portugueses. Aliás, a decantada "impassibilidade" do Parnaso não poderia compadecer-se com a índole da poesia peninsular, cuja característica fundamental, como muito bem ponderou D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, é ser "lírica, inteiramente penetrada de doçura elegíaca e de sentimentalidade entusiasta". [4.57] Antero de Quental é, contudo, a quaisquer luzes a que seja considerado, o maior sonetista português dos últimos tempos, senão de todos os tempos, uma vez que nos desvencilhemos de certos preconceitos supersticiosos de classicismo, aliás já distantes do nosso horizonte mental. [4.58] Registremos aqui, para brilho desta página, três dos seus grandes sonetos: [4.59] HOMO [Antero de Quental] Nenhum de vós ao certo me conhece, Astros do espaço, ramos do arvoredo, Nenhum adivinhou o meu segredo, Nenhum interpretou a minha prece. Ninguém sabe quem sou... e mais, parece Que há dez mil anos já, neste degredo, Me vê passar o mar, vê-me o rochedo E me contempla a aurora que alvorece... Sou um parto da Terra monstruoso; Do húmus primitivo e tenebroso Geração casual, sem pai nem mãe... Misto infeliz de trevas e de brilho, Sou talvez Satanás; - talvez um filho Bastardo de Jeová; - talvez ninguém! [4.60] QUIA AETERNUS [Antero de Quental] Não morreste, por mais que o brade à gente Uma orgulhosa e vã filosofia... Não se sacode assim tão facilmente O jugo da divina tirania! Clamam em vão, e esse triunfo ingente Com que a Razão - coitada! - se inebria, É nova forma, apenas, mais pungente, Da tua eterna, trágica ironia. Não, não morreste, espectro! o Pensamento Como dantes te encara, e és o tormento De quantos sobre os livros desfalecem. E os que folgam na orgia ímpia e devassa Ai! quantas vezes, ao erguer a taça, Param, e estremecendo, empalidecem! [4.61] DIVINA COMÉDIA [Antero de Quental] Erguendo os braços para o céu distante E apostrofando os deuses invisíveis Os homens clamam: - "Deuses impassíveis, A quem serve o destino triunfante. Porque e que nos criastes?! Incessante Corre o tempo e só gera, inextinguíveis, Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis, Num turbilhão cruel e delirante... Pois não era melhor na paz clemente Do nada e do que ainda não existe, Ter ficado a dormir eternamente? Por que é que para a dor nos evocastes?" Mas os deuses, com voz inda mais triste, Dizem: - "Homens! por que é que nos criastes?" [4.62] Dentre os poetas portugueses que cultivaram o soneto, durante o período da decadência romântica e durante a fase de transição que imediatamente lhe sucedeu, devem ser postos em relevo alguns nomes, como seja os de Camilo Castelo Branco, que obteve justa celebridade com o poema "A Maior Dor Humana", Xavier Cordeiro, que conseguiu excelente tradução do famoso soneto do poeta francês Félix Arvers, Guerra Junqueiro, que escreveu poucos, mas apreciáveis poemas, e Fernando Leal, que verteu para o francês vários sonetos de Antero de Quental. Além destes, que aqui figuram sem nenhuma indicação de prioridade, e de alguns mais, de quem adiante se transcrevem sonetos, cumpre assinalarmos também, dentre os sonetistas lusitanos dos últimos anos, os nomes de João Saraiva, Joaquim de Araújo, Alice Moderno, Antônio Feijó, Fernandes Costa, João Penha, Eduardo Coimbra, José Duro, Fausto Guedes Teixeira, Nunes Claro, Hamílton de Araújo, Costa Alegre, João Clímaco, D. João da Câmara, Alberto d'Oliveira, D. João de Castro, Fernando Caldeira, Narciso de Lacerda, Luís de Magalhães, Manuel Duarte de Almeida, João Lúcio, Antônio Correia de Oliveira, Júlio Brandão, Maria da Cunha, Augusto Gil, Maria de Carvalho, Branca de Gonta Colaço, Mário Beirão, Augusto Casimiro, Antônio Sardinha Teixeira de Pascoais, Fernanda de Castro, Virgínia Victorino e ainda outros. [4.63] Fitemos agora os olhos, embora de relance, nas figuras de alguns notáveis sonetistas portugueses: [4.64] Gomes Leal (1849-1921) foi, algumas vezes pelo menos, primoroso sonetista, como se vê no poema "As Eras Patriarcais": AS ERAS PATRIARCAIS [Gomes Leal] Feliz do que viveu nas épocas preclaras Em que a rude alma antiga era singela e sã E Patriarcas hebreus de grandes barbas claras Tinham a alegre paz de uma oriental manhã! Eram tempos leais! - Desde o Horeb e Canaã, O Senhor abençoava, as águas e as searas, E as serranas gentis, as Rebecas, as Saras, Iam, cantando alto, aos poços do Madiã... Sim, eram tempos chãos, brancos, simples, lavados, Em que Rute e Booz ceifavam nos seus prados, E as princesas reais iam lavar nos rios! O Pai dava, em seu lar, asilo aos caminhantes, A Mãe criava ao peito os futuros gigantes, E a Avó fiava a lã com seus dedos macios. [4.65] Gonçalves Crespo (1847-1883), nascido no Brasil, que primou, como observa Carlos de Laet, "pelo mimo da imagem, a melodia da frase e a delicadeza do sentimento", é, segundo o parecer de outros críticos, um dos poetas portugueses que mais se aproximam dos processos da estética parnasiana. Tomamos ao último dos seus livros de versos o soneto "Mater Dolorosa": MATER DOLOROSA [Gonçalves Crespo] Quando se fez ao largo a nave escura, Na praia essa mulher ficou chorando, No doloroso aspecto figurando A lacrimosa estátua da amargura. Dos céus a curva era tranqüila e pura, Das gementes alcíones o bando Via-se ao longe, em círculos, voando Dos mares sobre a cérula planura. Nas ondas se atufara o sol radioso, E a lua sucedera, estro mavioso, De alvor banhando os alcantis das fragas... E aquela pobre mãe, não dando conta Que o sol morrera, e que o luar desponta, A vista embebe na amplidão das águas... [4.66] Poeta aristocrático, ainda um tanto romântico pelo sentimento e parnasiano pela forma bem cuidada, Antônio de Macedo Papança, Conde de Monsaraz (1853-1913), é igualmente elegante sonetista, como o comprova o poema que se segue, intitulado "Submisso": SUBMISSO [Conde de Monsaraz] Mandas-me, cumpro. Eu sou o autômato modesto Que a tua mão dirige e o teu olhar fascina: Prende-se a minha vida à curva purpurina De tua boca e à luz do teu sorriso honesto. Só quero o teu amor (profundo amor!); de resto, Em nada penso e creio. É esta a minha sina; Aos teus caprichos, flor, todo o meu ser se inclina, Seguindo a sua lei traçada no teu gesto! E nesta escravidão cujos grilhões abraço E beijo tanta vez, alarga-se-me o espaço, Em que ouço alegremente os rouxinóis cantar. Eu fiz do meu segredo um cárcere risonho, Oh! déspota gentil, embala-me este sonho Olha-me, eu quero luz! fala-me, eu quero ar! [4.67] Merece especial menção, como compositor de belos sonetos, o lusíssimo Antônio Nobre (1867-1900), figura original de poeta, somente por certos aspectos de sua arte, incluído no número dos simbolistas portugueses. Leiamos o seu soneto "Enterro de Ofélia", magnífico poema, de feição peregrina: ENTERRO DE OFÉLIA [Antônio Nobre] Morreu. Vai a dormir, vai a sonhar... Deixá-la! (Falai baixinho: agora mesmo se ficou...) Como Padres orando, os choupos formam ala, Nas margens do ribeiro onde ela se afogou. Toda de branco vai, nesse hábito de opala Para um convento: não o que Hamlet lhe indicou, Mas para um outro, olhai! que tem por nome "Vala", De onde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou! O doce Pôr-do-Sol, que era doido por ela, Que a perseguia sempre, em palácio e na rua, Vede-o, coitado! mal pode suster a vela... Como damas de honor, Ninfas seguem-lhe os rastros, E, assomando no Céu, sua Madrinha, a Lua, Por ela vai desfiando as suas contas, Astros! [4.68] Ao lado de Antônio Nobre encontra lugar adequado Eugênio de Castro (1869-1944), que compôs sonetos de real beleza, sobretudo quando explorou o filão dos temas subjetivos, de que é frisante exemplo o seguinte, VIII poema dos "Oaristos", seu livro de estréia poética: OARISTOS (VIII) [Eugênio de Castro] Tua frieza aumenta o meu desejo: Fecho os meus olhos para te esquecer, Mas quanto mais procuro não te ver, Quanto mais fecho os olhos mais te vejo. Humildemente, atrás de ti rastejo, Humildemente, sem te convencer Antes sentindo para mim crescer Dos teus desdéns o frígido cortejo. Sei que jamais hei de possuir-te, sei Que "outro", feliz, ditoso como um rei, Enlaçará teu virgem corpo em flor. Meu coração no entanto não se cansa: Amam metade os que amam com esp'rança, Amar sem esp'rança é o verdadeiro amor. [4.69] Luzida figura fará sempre ao pé de Antônio Nobre e Eugênio de Castro, como arquiteto do soneto lusitano, Afonso Lopes Vieira (1878-1946), de quem aqui transcrevemos o poema intitulado "Linda Inês": LINDA INÊS [Afonso Lopes Vieira] Choram ainda a tua morte escura Aquelas que chorando a memoraram; As lágrimas choradas não secaram Nos saudosos campos da ternura. Santa entre as santas pela má ventura, Rainha mais que todas que reinaram; Amada, os teus amores não passaram, E és sempre bela e viva e loura e pura. Ó linda, sonha aí, posta em sossego No teu moimento de alva pedra fina, Como outrora na fonte do Mondego. Dorme, sombra de graça e de saudade, Colo de garça, amor, moça, menina, Bem-amada por toda a eternidade! [4.70] Júlio Dantas (1876) é outro brilhante sonetista, ao gosto poético do Conde de Monsaraz, na preocupação de evocações solarengas e de salões aristocráticos. O soneto "Espanha", que abaixo trasladamos, dá bem o tom da maneira literária do poeta: ESPANHA [Júlio Dantas] Foi há nove anos já, nesse solar amigo, Entre as murtas anãs duma velha alameda, Que a Marquesa de Uñon Garcia de la Rueda Se esqueceu do Marquês, a conversar comigo. Aconchegou-se a mim, no misterioso abrigo; Recitou, a tremer, uns versos de Espronceda... E a minha mão sentiu uma meia de seda, E o meu lábio pousou sobre um colar antigo. O calor duma perna e a pedra dum colar... Num súbito clarão, passaram-me no olhar Frades de Zurbaran, "majas" nuas de Goya. E hoje ainda, ao errar de noite na alameda, Sinto a crepitação dessa meia de seda E o gelado fulgor dessa pequena jóia... [4.71] Rodrigo Solano (1879-1910), poeta cujo nome anda bastante esquecido nos modernos compêndios de história da literatura portuguesa, aparece-nos como inovador da técnica do soneto, conforme se verifica do seguinte, "Lira de Orfeu", composto com metros peregrinos, sem rimas uniformes nos quartetos e entretecido de evocações da mitologia helênica: LIRA DE ORFEU [Rodrigo Solano] Ressurges-me em sonho. Serena e desnuda, de mármore, finges Estátua descida do friso de um templo da Grécia que adoro. E avanças, sorrindo, de mão estendida e a fronte me cinges De uma ambicionada, perpétua e virente coroa de louro. De braços erguidos, quebrada a cintura, redondas as ancas, As curvas suaves, as curvas divinas da lira recordas E os louros cabelos, cobrindo-te as costas macias e brancas E até os artelhos, compridos, descendo, relembram as cordas. E oh! Sonho supremo da Hélade antiga! Se acaso me deixas, Que, como um liróforo, os dedos eu roce nas tuas madeixas, Um hino suave se espraia na terra, se eleva no céu. E, a ouvi-lo, emudecem as aves e os ventos e os rios e as fontes E os altos penedos palpitam, animam-se e descem dos montes... E ao mundo espantado renovas o mito da lira de Orfeu. [4.72] Leiamos também um soneto de Camilo Pessanha (1871-1926), espécime perfeito, no pensamento e na técnica, da obscura e abstrusa poesia dos ultradecadistas portugueses: [original de Camilo Pessanha] Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho, Onde esperei morrer - meus tão castos lençóis? Do meu jardim exíguo os altos girassóis Quem foi que os arrancou, e lançou ao caminho? Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!) A mesa de eu cear, tábua tosca de pinho? E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho? - Da minha vinha o vinho acidulado e fresco... Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova. Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova. Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve. No venhas mais ao lar. Não vagabundes mais, Alma da minha mãe... Não andes mais à neve, De noite a mendigar às portas dos casais. [4.73] Concedamos agora a palavra, para concluir este capítulo, a uma poetisa contemporânea, Florbela Espanca (1894-1930), prematuramente colhida na ceifa da morte, a qual soube montar zelosa guarda às tradições do soneto lusitano, como se evidencia do seguinte, intitulado "Rústica": RÚSTICA [Florbela Espanca] Ser a moça mais linda do povoado, Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, Ver descer sobre o ninho aconchegado A bênção do Senhor em cada filho. Um vestido de chita bem lavado, Cheirando a alfazema e a tomilho... Com o luar matar a sede ao gado, Dar às pombas o sol num grão de milho... Ser pura como a água da cisterna, Ter confiança numa vida eterna Quando descer à "terra da verdade"... Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! Dou por elas meu trono de Princesa, E todos os meus Reinos de Ansiedade.
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