[6] VARIAÇÕES EM TORNO DO SONETO

[6.1] O presente ensaio não poderia alhear-se a certos fatos adstritos à história do soneto, não só referentes ao Brasil, mas também a países estrangeiros onde este poema há desempenhado papel notável nas respectivas literaturas. [6.2] Não trataremos, é certo, da contenda suscitada em Paris, no século XVII, em torno dos sonetos "Uranie", de Voiture, e "Job", de Benserade, a qual originou ruidosa rivalidade entre as casas de Condé e Longueville. Poremos igualmente de parte a controvérsia desenvolvida, também em Paris, no mesmo século, à roda dos sonetos da "Belle Matineuse" - aqueles e estes bem medíocres e avessos às idéias e sentimentos dos nossos dias. Não nos deteremos também ante o coro de louvores provocados por alguns sonetos avulsos, de eras recuadas, como o denominado "La Pénitence", atribuído a Jaques de Vallée, senhor de Des Barreau (1602-1673), cuja autoria é contestada por Voltaire, que a imputa ao abade de Lavau; limitamo-nos a transcrevê-lo, em honra da sua superioridade geral, com relação aos acima citados: LA PÉNITENCE [Jacques de Vallée] Grand Dieu, tes jugements sont remplis d'équité: Toujours tu prens plaisir à nous être propice; Mais j'ai tant fait de mal, que jamais ta bonté Ne me peut pardonner sans choquer ta justice. Oui, mon Dieu, la grandeur de mon impiété Ne laisse à ton pouvoir que le choix du supplice: Ton intérêt s'oppose à ma félicité, Et ta clémence même atend que je périsse. Contente ton désir puisqu'il t'est glorieux: Offense-toi des pleurs qui coulent, de mes yeux; Tonne, frappe, il est temps; rends-moi guerre pour guerre. J'adore, en périssant, la raison qui t'aîgrit: Mais dessus quel endroit tombera ton tonnerre, Qui ne soit tout convert du Sang de Jesus-Christ? [6.3] Entretanto, outros episódios interessantes da história do ínclito poema requerem condigno registro, em capítulo especial desta monografia, como seja o do célebre soneto de Félix Arvers, que chegou quase a universalizar-se [6.4], o do renomeado soneto do poeta castelhano José Maria Blanco (Blanco White) [6.5] e o da discutida questão dos "plagiatos" atribuídos a dois poetas nossos - Luís Guimarães [6.6.14] e Raimundo Correia [6.6.16]. Merece igualmente uma referência o caso da notoriedade alcançada por alguns sonetos de poetas brasileiros [6.7]. Passemos à revista dos supra-indicados itens: [6.4] "O REI DOS SONETOS" [6.4.1] À semelhança de certos poemas épicos que se hão imposto à estima e admiração públicas, alguns sonetos há que, não obstante a exigüidade do seu quadro literário, lograram conquistar assinalada celebridade. Acha-se neste caso um soneto de Félix Aleixo Arvers, poeta e comediógrafo francês da fase romântica, que viveu em Paris, entre 1806 e 1850. [6.4.2] Maior fortuna do que a dos sonetos de Voiture, Benserade e Malleville, no século XVII, dada a sua nomeada internacional, teve esse poema de catorze versos do pequeno poeta parisiense, a quem as graças de Maria Antonieta Elisabete Menessier (1811-1893), filha do escritor e bibliófilo Carlos Nodier, teriam sabido inconscientemente submeter ao seu jugo, se dermos crédito à tradição literária daquela época, ainda vigente, para satisfação de quantos visionários amorosos haja pelo mundo. [6.4.3] Certamente mais pelo prestígio do seu tema sentimental do que por sua contestada perfeição artística, o magoado poema de Félix Arvers veio chegar até nós, acompanhado dos mais apaixonados encômios e de lisonjeiro séquito de traduções, paráfrases e pastichos. Diga-se, desde já, que o Brasil possui três ou quatro dezenas de versões do enaltecido poema, sem incluirmos neste número os sonetos evidentemente inspirados pelo seu tema e as contrafações de que há sido ele a inexaurível fonte. [6.4.4] Além dessa persistente safra de traduções e imitações, teve o soneto de Arvers, entre nós, erudito e interessante estudo de Alberto Faria ("Aérides" - 1918), intitulado "L'homme du sonnet", e um ensaio de 133 páginas, do bem informado prosador e poeta Melo Nóbrega ("O Soneto de Arvers" - 1954), de cujas indicações vamos servir-nos no presente comentário. [6.4.5] Desde 1824, Carlos Nodier, nomeado conservador da célebre biblioteca do Arsenal, em Paris, passou a residir com sua família numa dependência daquele edifício. Essa biblioteca, que, depois da Biblioteca Nacional, é a mais notável da França, pertencera ao conde de Artois, tendo sido seqüestrada pelo governo francês, em 1793 sob pretexto de pertencer a um exilado. Convertida mais tarde em biblioteca pública, possui atualmente cerca de um milhão de obras impressas. [6.4.6] Figura relevante do movimento desencadeado contra os clássicos, que veio a chamar-se Romantismo, recebia Carlos Nodier, à noite, no seu salão, os vultos preeminentes daquela época nas letras e nas artes, dentre os quais sobressaíam Víctor Hugo, Afonso de Lamartine, Alfredo de Vigny, Alfredo de Musset, Sainte-Beuve, Alexandre Dumas, Antônio Fontaney, Félix Arvers, Aquiles e Eugênio Devéria, Alfredo e Tony Johannot, Emílio e Antonny Deschamps, Ulrico Guttinguer, Luís Boulanger, Alexandre Guiraud e alguns mais. A estes escritores e artistas juntavam-se senhoras de alta prosápia social, como seja a poetisa Marcelina Desbordes-Valmore, Sofia e Delfina Gay, Amável Testu, Inês Ségalas, Melânia Waldor e ainda outras. [6.4.7] Eram dominicais essas reuniões; no decurso delas, os seus comensais trocavam idéias sobre os acontecimentos literários, políticos e sociais de maior relevância, os poetas declamavam poesias da própria lavra, inclusive Víctor Hugo, Lamartine e Arvers. Em seguida, às 10 horas, Maria Nodier tomava lugar ao piano, iniciando-se então animadas danças. [6.4.8] A respeito dessas tertúlias escrevia Musset, em 1843, saudosas estrofes dirigidas a Carlos Nodier, em duas das quais há blandiciosa referência a Maria, a "Notre-Dame de l'Arsenal" como lhe chamou Víctor Hugo, figura obrigatória entre as personagens que habitualmente compareciam ao cenário familiar: La tête coquette et fleurie de Marie Brillait comme un bluet mêlé Dans le blé. Tachés déjà par l' écritoire, Sur l' ivoire Ses doigts légers allaient sautant Et chantant. [6.4.9] Teria sido numa dessas reuniões noturnas que Félix Arvers, segundo um dos seus biógrafos, "improvisara", por volta de 1831, o célebre soneto endereçado a Maria, então casada com Fernando Júlio Menessier, funcionário do Ministério da Justiça. [6.4.10] Ainda que careça de veracidade a afirmação do biógrafo citado, como é presumível, terá sido então que Arvers escreveu o soneto no album da filha de Carlos Nodier. Esse soneto, com substituição de duas palavras ("toujours" e "bonne" por "pourtant" e "douce"), acha-se incluído no livro de poesias de Félix Arvers, "Mes heures perdues" (1833), com a indicação: "imité de l'italien". Leiamo-lo, na forma definitiva: [original de Arvers] Mon âme a son secret, ma vie a son mystère: Un amour éternel en un moment conçu: Le mal est sans espoir, aussi j'ai dû le taire, Et celle qui l'a fait n'en a jamais rien su. Hélas! j'aurai passé près d'elle inaperçu, Toujours à ses côtés, et pourtant solitaire, Et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur la terre, N'osant rien demander et n'ayant rien reçu. Pour elle, quoique Dieu l'ait faite douce et tendre, Elle ira son chemin, distraite, et sans entendre Ce murmure d'amour élevé sur ses pas; A l'austère devoir pieusement fidèle, Elle dirà, lisant ces vers tout remplis d'elle: "Quelle est donc cette femme?" et ne comprendra pas. [6.4.11] Em verdade, o soneto célebre não terá sido imitado do italiano, como insinuou o autor, para desviar, segundo se tem dito, suspeitas mal cabidas a respeito de Maria Menessier; a sua fonte deverá ser procurada no madrigal intitulado "Plainte amoureuse", de Francisco Bernardo Cocquard, poeta francês do século XVIII, indicado por Alberto Faria (ob. cit.), o qual para aqui trasladamos: Est-il tourment plus rigoureux Que de brûler pour une belle Et n'oser déclarer ses feux? Hélas! tel est mon sort affreux! Quoique je sois tendre et fidèle, L'espoir, que des plus malhereux Adoucit la peine mortelle, Ne saurait me flatter comme eux. Et ma contrainte est si cruelle Que celle vers qui vont mes voeux Lira ce récit amoureux Sans savoir qu'il est fait pour elle! [6.4.12] "Não há negar - diz Melo Nóbrega - que, nesse poema ingênuo, está, canhestramente glosado, o mesmo tema desenvolvido no soneto de Arvers, com circunstâncias que estão a indicar aproveitamento direto: não só a rima ("elle" e "èle"), mas até expressões literalmente repetidas, embora aplicadas ao poeta, ao invés de à mulher amada. [6.4.13] No "quoique je sois tendre et fidèle", de Cocquard, está a voz cujo eco, setenta e seis anos depois, sussurraria aos ouvidos de Maria Nodier: "quoique Dieu l'at faite bonne et tendre..." (1) [6.4.14] Além da falta de originalidade no soneto de Arvers, a crítica, nem sempre bem intencionada, há procurado descobrir outros defeitos no mesmo poema, os quais aqui se enumeram: 1) - falta de fidelidade às regras estatuídas para a disposição das rimas dos quartetos e tercetos do soneto clássico; 2) - emprego de rimas participiais nos quartetos; 3) - uso de rimas forçadas ("taire" com "terre"), no segundo quarteto; 4) - consonância interna de palavras ("faite" e "distraite"), no nono e décimo versos; 5) - falta da cesura clássica no penúltimo verso do soneto ("elle dira, lisant ces vers remplis d'elle"); 6) - três repetições do particípio "fait", nos versos quarto, sétimo e nono, neste último na forma feminina ("faite"); 7) - repetição abusiva do verbo "avoir" e do pronome "elle", no texto do soneto; e 8) - excessivo abuso do emprego de possessivos. [6.4.15] Feito o desconto de algumas destas exigências, por desarrazoadas ou caprichosas, ainda assim não poderá ser considerado perfeito o poema de Félix Arvers. Não é ele, como muito bem disse Sainte-Beuve, "um desses sonetos de mestre, bem pensados em todos os seus elementos e habilmente cinzelados, como Soulary sabe compô-los; é um soneto doce e casto, através do qual passou um sopro de Petrarca". [6.4.16] Em época mais recente, o crítico francês Jorge Pellissier emitiu sobre o célebre poema o seguinte juízo: "O soneto que imortalizou a Arvers foi, como diz Sainte-Beuve, 'uma boa fortuna'. Os seus demais poemas carecem de originalidade; pelo menos, nenhum deles teria salvo do olvido o seu nome. Esse soneto, o 'soneto de Arvers', não é somente único, na sua obra; pode ser chamado 'o soneto do século'." (2) [6.4.17] Quanto ao romance afetivo em que anda envolvido o melancólico poema, é possível que tenha sido este resignada e enaltecedora réplica a um amor não correspondido; não será impossível também que tudo isso se reduza a simples "lenda romântica", ao gosto daquela época, e ao da nossa igualmente, na qual não escassearão amorosos de ambos os sexos, frustrados nas suas pretensões, que se revejam com carinho em dramas semelhantes aos seus. [6.4.18] É de presumir também que tenha havido, nos comentários de alguns dos biógrafos de Félix Arvers, premeditado intuito de dar corpo à pretendida paixão inspirada ao poeta pela filha de Carlos Nodier. [6.4.19] Em 1834, diz-nos Melo Nóbrega (ob. cit.), Alfredo de Musset, outro enamorado de Maria, ignorava quem fora a inspiradora do célebre soneto. Blaze de Bury, em 1883, negava "que o poema tivesse intenções pessoais", ao referir-se às suspeitas que teriam recaído sobre Maria Menessier e Adélia Hugo, leviana esposa do poeta da "Lenda dos Séculos". À pessoa de Adélia - informa ainda Blaze de Bury - não faltou quem julgasse ver equívoca referência nas rimas femininas do último terceto do soneto de Arvers ("fidèle" e "d'elle"). [6.4.20] A outras personagens femininas daquela época foi também imputado o endereço do soneto arversiano, entre as quais a Condessa O'Donnell e a Senhora Guyet-Desfontaines. [6.4.21] Maria Menessier era decerto insinuante tipo de mulher: supriam-lhe a beleza física a encantadora graça, o espírito arguto e a gentileza do trato social. Nascera em 1811, tendo então vinte anos. Sabe-se que veio a falecer em 1893, com a provecta idade de 82, rodeada de netos, a quem carinhosamente se dedicava. [6.4.22] Félix Arvers, por seu turno, era uma bela figura de homem. Escreveu grande número de comédias e farsas musicadas, de 1835 a 1850. Dado à vida de teatro, na convivência de formosas atrizes, ali teve bastantes aventuras galantes. Ligou-se por muito tempo com a atriz Virgínia Déjazet. [6.4.23] Acha-se sepultado o poeta no cemitério da aldeia francesa de Cézy, próxima de Joigny, na vizinhança de um choupal, de conformidade com determinação sua. Há, no seu túmulo, a seguinte inscrição: "Ci-git le poète Félix-Alexis Arvers, né et mort à Paris (1806-1850)., Il a écrit l'inoubliable sonnet 'Mon âme a son secret...'" (3) [6.4.24] O soneto! Deste poderia ter dito o poeta, repetindo a Ovídio, no último canto das "Metamorfoses": "Concluí, afinal, esta obra que nem a cólera de Júpiter, nem o fogo, nem o ferro, nem os danos do tempo poderão destruir"; ou ainda, à imitação do nosso Basílio da Gama, ao confiar à posteridade o seu poema: Serás lido, "Uraguai"! Cubra os meus olhos Embora um dia a escura noite eterna. [6.4.25] "Esse milagroso poema - escreve Melo Nóbrega - é peça obrigatória de todos os florilégios da poesia francesa; nenhum outro, em qualquer língua, obteve tamanha popularidade; soneto algum foi mais traduzido e parafraseado. De tão difundido e citado, fez-se truísmo literário a simples menção de qualquer de seus versos, alguns dos quais - o primeiro e o último, pelo menos - disputam lugar nos repertórios das frases-feitas. Sem conta são as alusões, em várias línguas, ao tema e às expressões desse poema tão discutido e admirado. Autor e obra andam tão confundidos que, se esta é o 'soneto de Arvers', aquele é, apenas, o 'homem do soneto'". A propósito: ao comemorar-se o centenário da morte do poeta, foi afixada na casa em que residia, em Cézy, uma placa com este dístico: Un monument au pauvre Arvers? Qu'-a-t-il donc fait? - Quatorze vers". [6.4.26] Ilustra-se esta nota com a apresentação de algumas traduções do soneto de Arvers, feitas por poetas brasileiros contemporâneos: [6.4.27] De Álvaro Reis: Guardo n'alma um segredo, e na vida um mistério, Um grande e eterno amor de súbito nascido. É mal sem esperança e dor sem refrigério, E aquela que o inspirou nada tem pressentido. Perto dela, atraído ao seu mágico império, Ai! triste eu passarei, sempre despercebido! E hei de chegar da vida ao término funéreo, Nada ousando pedir e nada tendo obtido. E ela, se bem que Deus terna e boa a fizesse, Seguirá sem ouvir meu amor como um canto Elevado a seus pés, num murmúrio de prece! E fiel a seu dever compassiva dirá, Ao ler os versos meus, tão cheios dela, entanto: "Que mulher será esta?" E não compreenderá! [6.4.28] De Filgueiras Lima: Tenho n'alma um segredo e na vida um mistério: Um grande e eterno amor, num momento nascido, Sem esperança, oculto, é um mal de cujo império Aquela que o inspirou não há jamais sabido. Ai de mim! Ao seu lado irei, despercebido, Junto dela - e sozinho, envolto num mistério. E chegarei ao fim do meu viver funéreo, Sem nada haver ousado e nada recebido. No entanto, ela, a quem Deus fez de ternura cheia. Seguirá seu caminho indiferente, alheia À música de amor que a seus pés cantará. E, fiel ao dever pelo qual se desvela, Dirá, talvez, ao ler meus versos cheios dela: - "Que mulher será esta?" E não compreenderá. [6.4.29] De Guilherme de Almeida: Tenho n'alma um segredo e um mistério na vida: Um amor que nasceu, eterno, num momento. É sem remédio a dor; trago-a pois escondida, E aquela que a causou nem sabe o meu tormento. Por ela hei de passar, sombra inapercebida, Sempre a seu lado, mas num triste isolamento, E chegarei ao fim da existência esquecida Sem nada ousar pedir e sem um só lamento. E ela, que entanto Deus fez terna e complacente, Há de, por seu caminho, ir surda e indiferente Ao murmúrio de amor que sempre a seguirá. A um austero dever piedosamente presa, Ela dirá lendo estes versos, com certeza: "Que mulher será esta?" E não compreenderá. [6.4.30] Fale também Portugal, na glorificação do soneto de Arvers, pela voz do poeta romântico Xavier Cordeiro (1819-1900), que igualmente o traduziu, talvez com mais espontaneidade de expressão e individualidade vernácula do que quase todos os outros tradutores, portugueses e brasileiros: [tradução de Xavier Cordeiro] Há nesta alma um segredo, em mim vive escondido Um mistério ignorado, um íntimo tormento: É este eterno amor, nascido num momento, Só por ela inspirado e nunca pressentido. Vejo-a, mas não me vê, na multidão perdido... Se junto dela estou, mais sinto o isolamento! E assim me hei de extinguir de ignoto desalento, Sem nada obter jamais, sem nada haver pedido. Austera no dever, mas terna e carinhosa, Ela seu rumo irá seguindo, descuidosa, Sem pensar que eu existo, alheia para mim... E se estes versos ler, onde arde a chama intensa Do amor que os inspirou, - dirá com indiferença: "Quem será a mulher que alguém adora assim?" [6.5] O SONETO DE BLANCO WHITE [6.5.1] Outro soneto cujo perímetro de vulgarização e celebridade não terá chegado às dilatadas fronteiras alcançadas pelo poema de Arvers, mas que, em compensação, obteve vasta notoriedade, não só na Inglaterra e noutras regiões em que é falada a língua inglesa, mas também em vários países estrangeiros, através de traduções, é o intitulado "Night and Death", do poeta espanhol D. José Maria Blanco y Crespo, mais conhecido por "Blanco White". [6.5.2] Nasceu esse poeta, dobrado em padre, na cidade de Sevilha, em 1775, procedente de pais irlandeses, e morreu em Greenbach, perto de Liverpool, com 66 anos de idade, em 1841. Tendo tomado ordens sacras, no seu país natal, dentro em pouco se divorciou da fé católica; expatriando-se, em 1810, foi ter a Londres, onde aderiu à igreja anglicana, que abjurou também, em documento público, datado de 1835. Desde então - diz Carlos de Laet - procurou o poeta aproximar-se dos "mais atrevidos exegetas alemães" e do filósofo inglês Stuart Mill, com os quais manteve amistosa correspondência. [6.5.3] De D. José Maria Blanco ficou-nos somente o célebre soneto, que sobreviveu às suas polêmicas, no campo religioso, e a tudo mais que deixou, no terreno das letras. [6.5.4] Desse soneto diz Menéndez y Pelayo: "Singular poder o da arte! Somente esta flor poética cresce, qual uma sempre-viva, sobre o infamado sepulcro de Blanco. Quando se acabe de extinguir o último eco de suas polêmicas e escandalosa vida, a Musa do canto lhe conservará a memória vinculada a catorze versos de melancólica harmonia, que de Liverpool a Boston e de Boston à Austrália vivem na memória da poderosa raça anglo-saxônia, que os tem transmitido a todas as línguas vivas, e até lhes quis dar a perenidade que comunica uma língua morta". (4) [6.5.5] Carlos de Laet, no seu mal intitulado livro "Em Minas" (1894), em que reeditou artigos anteriormente publicados no "Jornal do Comércio", do Rio de Janeiro, foi o primeiro escritor brasileiro que houve por bem dar-nos notícia do notável soneto de D. José Maria Blanco. Com o seu pertinaz apego à ingênua e superficial religiosidade, de que nunca conseguiu emancipar-se, limitou-se a comentar a vida do poeta castelhano do ponto de vista da sua heterodoxia, que, como a D. Marcelino Menéndez y Pelayo, outro devoto retardatário, se lhe afigurou crime de lesa-majestade, sobretudo com os agravantes do desamor de Blanco White à pátria e ao catolicismo e do fato de haver violado a interdição eclesiástica do celibato... [6.5.6] Em todo caso, deu Laet à estampa, no citado livro, o original inglês do soneto de Blanco, certamente seduzido pelas duas interrogações finais do poema, e concitou os poetas brasileiros do tempo, inclusive Raimundo Correia, a passá-lo a versos portugueses. [6.5.7] Leia-se o soneto, cuja concepção é realmente alto vôo do espírito poético do autor, diante da imensidade noturna do espaço sideral; segue-se a versão, em prosa, da pena do citado escritor brasileiro: NIGHT AND DEATH [Blanco White] Mysterious Night! When our first parent knew Thee, from report divine, and heard thy name, Did he not tremble for this lovely frame, This glorious canopy of light and blue? Yet, 'neath a curtain of translucent dew Bathed in the rays of the great setting flame, Hesperus, with the host of heaven, came, And lo! Creation widened in man's view. Who could have thought such darkness lay concealed Within thy beams, o sun, or who could find, Whilst fly and leaf and insect stood revealed, That to such countless orbs thout mad'st us blind! Why do we then shun death with anxious striffe If light can thus deceive, wherefore not life? [6.5.8] (Tradução: "Misteriosa Noite! Quando por divino informe te conheceram os nossos primeiros pais e te ouviram o nome, acaso não tremeram por esta amável fábrica, por este glorioso dossel luminoso e azul? "Todavia, sob um véu de translúclda névoa, banhado nos raios do grande foco do Ocidente, surgiu Vésper com a coorte das estrelas... E como então se alargou a Criação aos olhos do homem! "Ó sol! quem pudera ter pensado que nos teus raios jazesse escondida uma tal escuridão, quando se patenteavam a mosquinha, o inseto e a folha da árvore? E quem suspeitar pudera "Que tu nos tornavas cegos para esses orbes inumeráveis? Porque, pois, evitamos a morte com ansiosa resistência? Se assim nos pode enganar a luz, porque não a vida?" [6.5.9] Ao apelo de Carlos de Laet não acorreu nenhum tradutor que se achasse à altura da difícil empresa, nem ainda Raimundo Correia, então dedicado à resolução de problemas poéticos daquela categoria; as versões aparecidas, nos jornais da época, reduzem-se a pacientes exercícios métricos. E o soneto de Blanco White continua, ainda hoje, a desafiar a argúcia e mestria dos nossos tradutores. [6.5.10] A versão do poema em língua latina, do inglês Samuel Bond, a que indiretamente se refere Menéndez y Pelayo, é a seguinte: Mystica Nox, cum te primum conspexit Adamus Tendere nigrantem per loca cuncta togam, Quoe que prius folia et minamarum corpora rerum Cernere erat, miris caeca lucere modis; Nonne animum dubii tentativit frigidus horror, Ne caderet fracti machina magna poli; Caerula ne ruerent proni laquearia caeli, Neve dies vitae prima, suprema foret? Attamen haec inter, sub roscida nubila fulgens Hesperus exurgit, sidereusque chorus; Visibus attonitis en alter nascitur orbis, En novus aetheriis arcibus extat honos! Mille unus soles velabat, quodque repugnat, Credere lux ipsa est quae patuisse vetat. Cur igitur tanto fugimus molimine mortem? Lux potuit, cur non fallere vita potest? [6.6] SONETO E PLAGIATO [6.6.1] Depois do aparecimento do livro de A. Albalat sobre "A Formação do Estilo pela Assimilação dos Autores", tão elegantemente vertido para o português por Cândido de Figueiredo, e da publicação do "Livro dos Plagiatos", de J. Maurevert, senão um pouco antes do advento daquelas duas obras, aquilo que, em dias mais remotos, se chamou "plagiato" perdeu, em grande parte, o seu acintoso conceito, no terreno das belas-letras. [6.6.2] Posto ao corrente dessa nova ordem de idéias, houve quem alvitrasse, para justificar os pretendidos deslizes de probidade literária que enxameiam obras de reputação universal, o termo "mimetismo", caçado nos domínios zoológicos, com o que bastante se beneficiaram os amantes vulgares de idéias alheias. Houve igualmente quem se valesse, para o mesmo fim, do recurso das traições do "subconsciente", mais ou menos inverificáveis, ainda depois de haver esse termo adquirido foros de cidade nas modernas teorias psicológicas. [6.6.3] Este problema literário, para ser encarado sob todos os seus aspectos, encheria mais de um livro, e o paciente investigador provavelmente chegaria à conclusão a que teria ido ter Hamlet, no seu diálogo com Horácio, na tragédia de Shakespeare, senão ao ceticismo integral do "Eclesiastes", ao preceituar que "nada há de novo debaixo do sol". [6.6.4] Não temos, aqui, tão ampla pretensão. Queremos somente afirmar, com a autoridade do citado Albalat, caso tenha ele tal autoridade, que "a imitação é o processo mais geral, o mais eficaz, o mais corrente na arte de escrever" e que ela difere essencialmente do plagiato, que "é o roubo desleal e condenável". [6.6.5] Não é possível acoimar de leviana a afirmação do tratadista francês, dada a vasta cópia de documentos que comprova a justeza do seu conceito. Convém lembrar, aqui, que Camilo, sem nenhum azedume, confessou certa vez ter "saudades do tempo em que não lia esses insulsíssimos e causticantes clássicos, que se ladroavam uns aos outros despejadamente". (5) [6.6.6] Lembrava-lhe, decerto, a mansa e pacífica pirataria dos bons mestres dos tempos idos, que jamais encontraram obstáculos às suas reiteradas incursões nas searas alheias, no campo da alta literatura de todos os tempos. "Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, filho de Pelau, cólera funesta que espalhou mil males entre os gregos, precipitou no reino de Hades as vigorosas almas de uma multidão de heróis, entregando-os, como despojos, aos corvos e aos cães" - teria dito Homero, na primeira estrofe da "Ilíada". Vergílio Maro, o maior imitador do aedo grego, pelo menos em mérito literário, seguiu-lhe de perto as pegadas, no canto I da "Eneida", servindo-se do quício do verbo "cantar": Arma virunque cano, Trojae qui primus ab oris Italiam, fato profugus Laviniaque venit Littora... ("Canto" as armas e o herói que, impelido pelo destino, foi o primeiro que, fugitivo das plagas de Tróia, veio arribar ao litoral de Lavínio, na Itália...) [6.6.7] No século XVI, Ariosto (1474-1533) inicia assim o seu "Orlando Furioso" (título revocado ao "Hércules Furioso", de Eurípedes): Le donne, i cavalier, l'arme, gli amori, Le cortesie, l'audaci impresi io "canto"... (Canto as mulheres, os cavaleiros, as armas, os amores, as cortesanias, as empresas audazes...) [6.6.8] Ainda no século XVI, Torcato Tasso (1544-1595) começa a epopéia "Jerusalém Libertada" com invocação do mesmo feitio: Canto l'armi pietose e 'l capitano Che 'l gran sepolcro liberó di Cristo... ("Canto" as armas piedosas e o capitão Que libertou o grande sepulcro de Cristo...) [6.6.9] Igualmente no século XVI, Luís de Camões (1524?-1580), também com mão firmada no gonzo do verbo "cantar", principia assim Os "Lusíadas": As armas, e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além de Taprobana... "Cantando" espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho, e arte, [6.6.10] Cabe aqui a citação do seguinte trecho de Voltaire, referido a Homero: "Se este pai da poesia quisesse retomar dos seus descendentes tudo quanto lhes emprestou, que nos restaria da "Eneida", da "Jerusalém", do "Orlando", dos "Lusíadas", da "Henríada" (6) e de tudo o que se não ousa nomear neste gênero?" (7) [6.6.11] Em brilhante artigo, no qual comentou o caso de um dos "plágios" imputados a Raimundo Correia, o provecto humanista patrício Ermínio Araújo refere-se às pesquisas efetuadas pelo erudito J. Maurevert no sentido de identificar as fontes a que foram colher a inspiração das suas obras os mais célebres escritores, e declara ter chegado aquele crítico à conclusão "de que o plágio é coisa tão antiga, como a literatura, não passando a idéia, consoante se costuma dizer, de um patrimônio comum". E acrescenta Ermínio Araújo: "O vil e desprezível é o furto da expressão, que é o que constitui o plágio propriamente dito. Das inspirações, imitações, assimilações, apropriações, translações, cópias, pilhagens, evidenciadas por Maurevert, o que se pode inferir é que a apropriação da idéia não é plágio. Porque este, que até meio propício tem sido ao escritor para fazer-se célebre, está na expressão. Há no nosso próprio idioma fatos perfeitamente concludentes. Não se contam, por exemplo, as apropriações que se descobrem, à primeira vista, na obra de Camões. Não basta, porém, a ofuscar-lhe a glória a circunstância de ter imitado Garcilaso, Bernadim Ribeiro, Ovídio, Sannazaro, Pedro Bembo, e copiado Petrarca. E se o cantor dos 'Lusíadas' se inspirou, de preferência, em Vergílio, não deixou este, por sua vez, de ir buscar nos poetas que o precederam, notadamente em Homero, e até nos seus coevos, o assunto, não só das 'Bucólicas' e das 'Geórgicas', mas também da 'Eneida', o grande e, talvez, o único poema épico dos latinos. Aliás, não foram somente as idéias que ele recebeu de empréstimo: expressões, versos inteiros, entre os mais harmoniosos e expressivos, tomados, particularmente, aos 'Annales' de Ênio, surgem, a cada passo, na epopéia vergiliana". [6.6.12] Entre nós, no Brasil, não são muito raros os casos de imitação, plagiato, pasticho, mimetismo literário ou melhor nome que tenha. [6.6.13] Já Basílio da Gama, poeta colonial, com sincero entusiasmo de Sílvio Romero ("História da Literatura Brasileira", tomo I), conseguiu reter, no seu sensibilíssimo subconsciente, o último verso do "Trionfo della morte", de Petrarca: Morte belle parla nel suo bel viso, que assim passou para o poema "Uraguai", do poeta brasileiro, convenientemente aplicado à formosa Lindóia: Tanto era bela no seu rosto a morte. [6.6.14] Luís Guimarães, o nosso notabilíssimo poeta, que aqui semeou as primeiras pevides do parnasianismo, houve por bem compor o soneto sem título com que iniciou a primeira parte dos seus "Sonetos e Rimas" (1880), assim como os sonetos intitulados "A Uma Cega" e "A Esmola", com pequenas achegas respigadas no livro "Postuma" (1877), de Lourenço Stecchetti, pseudônimo do poeta italiano Olindo Guerrini (1846-1916). [6.6.15] Confronte-se o último terceto do soneto sem título de Luís Guimarães com o último terceto do de Lourenço Stecchetti: O coração, que toda em si te encerra, Sentindo-te chegar, mulher querida, Palpitará de amor dentro da terra. Oh, non negarle un bacio, e liete l'ossa Come à tuoi soleano in vita, Fremeranno d'amor dentro la fossa. [6.6.16] Raimundo Correia, o mais artista e delicado dos nossos poetas chamados parnasianos, não desdenhou também a prática do processo de imitação, justificado por Albalat e Maurevert, consoante a opinião de José Veríssimo ("História da Literatura Brasileira", 1929), que assevera, sem ter sido o primeiro a fazê-lo, que "os temas dos seus dois mais belos e mais justamente afamados poemas, 'As Pombas' e o 'Mal Secreto', não lhe pertencem". [6.6.17] É sabido que a inspiração do primeiro desses sonetos lhe veio do poema "Les Colombes", senão de um trecho do romance "Mademoiselle de Maupin" (1835), ambos de Teófilo Gautier. Damos a palavra, ainda uma vez, ao ilustre polígrafo Ermínio Araújo, mediante a transcrição de mais um trecho do seu citado artigo, cuja relativa longura reverterá em proveito do leitor desta nota, dada a rica substância da lição que lhe será ministrada: "(...) Mas, para ficarmos em casos mais concretos que, mais de perto, nos interessam, merecendo, por isso averiguados, cai a ponto de acudirmos, já aqui, em defesa de um dos nossos poetas de maior projeção e relevo literários, que no conceito, à la 'légère', de certa crítica, sem razão - é claro - não se tem, de todo em todo, eximido à pecha de plagiário. Criou Gautier, certamente, belas comparações e imagens, capazes de exprimir, com igual eloqüência e força, muitos sentimentos que nos dominam. Quão formosas, por exemplo, as que se encerram nestas admiráveis quadras que ele intitulou: LES COLOMBES Sur le couteau, là bas, où sont les tombes, Un beau palmier, comme un penache vert, Dresse sa tête, où le soir les colombes Viennent nicher et se mettre à couvert. Mais le matin elles quittent les branches: Comme un collier qui s'égrène, on les voit S'éparpiller dans l'air bleu, toutes blanches, Et se poser plus loin sur quelque toit. Mon âme est l'arbre où tous les soirs, comme elles. De blancs essaims de folles visions Tombent des cieux, en palpitant des ailes, Pour s'envoler des les premiers rayons. Não menos bela, como se vê, é a comparação que edulcora a admirável prosa do seu romance "Mademoiselle de Maupin": 'Si tu viens trop tard, o mon idéal! je n'aurai plus la force de t'aimer: - mon âme est comme un colombier tout plein de colombes. A toute heure de jour, il s'en envole quelque désir. Les colombes reviennent au colombier, mais les désirs ne reviennent point au coeur'. (Ed. Illustré, p. 10). Traduzindo em vulgar, diríamos: ['Vem, mas vem depressa, meu amor, que, amanhã, talvez, já seja tarde. Meu coração é como um pombal cheio de pombas: todo dia voa dele um desejo; as pombas, porém, tornam aos pombais, e os meus desejos não hão de voltar ao coração.']" [6.6.18] Não há dúvida que é a mesma idéia do soneto "As pombas", de Raimundo Correia; mas também não há dúvida que o poeta, exprimindo-se, como o fez, lhe deu mais viva, mais forte intensidade, fazendo-a crescer e sobressair, fulgir e rebrilhar, numa incomparável beleza de expressão. E quando a expressão assim se acrescenta a si mesma e atinge tamanhas altitudes, não há lugar para suspeitar de originalidade. Veja-se: AS POMBAS [Raimundo Correia] - "Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia sanguínea e fresca a madrugada... E à tarde, quando a rígida nortada Sopra, aos pombais, de novo, elas serenas, Ruflando as asas, sacudindo as penas, Voltam todas em bando e em revoada... Também dos corações, onde abotoam Os sonhos, um por um, céleres voam, Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência, as asas soltam, Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais". [6.6.19] Se o poeta, para tecer este soneto e compor o "Mal Secreto", tão ruinzinho, como lhe saiu da primeira fundição - circunstância que já assinalamos - se inspirou em Gautier e ampliou de Metastásio, o certo é que acima de ambos soube elevar-se no exprimir as mesmas comparações e imagens. O plágio, como vimos, está na cópia servil que, praticada, aliás, por vários e mui célebres escritores, não os impediu, contudo, de virem a ser o que se fizeram. [6.6.20] De Vergílio, a este propósito, tudo se tem dito, e não faltou quem se lembrasse de organizar um livro para nele "reunir todos os seus furtos". Mas - pergunta Chateaubriand - "que é que tudo isso prova contra Vergílio? Nada". Pelo muito que imitaram e copiaram os Shakespeares, os Mussets, os Anatoles, acaso empanaram o fulgor dos seus nomes? [6.6.21] Quanto seria para estimar que, inspirando-se nos grandes escritores ou imitando-os, procurassem os nossos jovens tomá-los como padrão! Vem justamente dessa ausência de gosto, dessa incompreensão, talvez, da parte dos que não conhecem todos os segredos da esquiva arte de escrever, o seu maior fracasso, na ingrata, mas gloriosa derrota das letras, de cujo descrédito o futurismo, o modernismo, por exemplo, e outras tantas abstrusas e estranhas inovações, com o rótulo de escolas literárias, são o reflexo. Como se essas manifestações de extrema candura, em prosa e verso, qual um recuo à infância da arte, não fossem apenas, conforme observa Ronald de Carvalho, sintomas de decadência em todas as literaturas". [6.6.22] Por seu turno, o "Mal Secreto", que tão vasta notoriedade alcançou, teve por embrião certa estrofe do poeta italiano Pedro Metastásio, intitulada "L'Apparenza", a que já nos referimos no capítulo [2] deste ensaio, senão as paráfrases da mesma estrofe, feitas por Paulino Cabral, abade de Jazente, em 1733. [6.6.23] Copiam-se, em seguida, o soneto de Raimundo Correia e a citada estrofe de Metastásio, com a respectiva tradução portuguesa: MAL SECRETO [Raimundo Correia] Se a cólera que espuma, a dor que mora N'alma, e destrói cada ilusão que nasce, Tudo o que punge, tudo o que devora O coração, no rosto se estampasse; Se se pudesse o espírito que chora, Ver através da máscara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, então piedade nos causasse! Quanta gente que ri, talvez, consigo Guarda um atroz, recôndito inimigo, Como invisível chaga cancerosa! Quanta gente que ri, talvez existe, Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa! (Se a ciascun l'interno affano Se legesse in fronte scritto, Quanti mai che invidia fanno, Ci farebbero pietà! Se vedria che i lor nemici Hanno in seno; e si reduce Nel parere a noi felice Ogni lor felicità. (Se se pudesse ler, escrita na fronte de cada um, a sua íntima aflição, quantos, que ora nos causam inveja, nos despertariam piedade! Ver-se-ia que eles levam no seio os seus próprios inimigos, e que toda a sua felicidade consiste em nos parecer felizes). [6.6.24] Afirmar que os sonetos acima transcritos não tiveram como fontes de inspiração a poesia de Gautier e, direta ou indiretamente, a citada estrofe de Metastásio, será afirmação de evidente má fé. Reconhecer o fato é o dever da crítica, ainda que não recuse, para o explicar, a hipótese da intervenção de insídias do subconsciente, aliás sumamente benfazejas para as letras brasileiras, visto que lhes trouxeram duas jóias de alto valor, cujo brilho, de certa maneira, ofusca, digamo-lo sem vã pretensão nacionalista, as fontes donde lhes manou a inspiração. [6.6.25] Poderíamos ainda acrescentar que os nossos dois poetas citados, Luís Guimarães e Raimundo Correia, com o recorrerem à imitação, ao compor os sonetos indicados, não deixarão de encontrar-se em alta e honrosa companhia, uma vez que de acusações da mesma natureza também são vítimas, além dos escritores já apontados, Rabelais, Corneille, Boileau, Racine, Molière, Bossuet, La Fontaine, Malherbe, Sévigné, Pascal, Dellile, Voltaire, Rousseau, Lamartine, Musset, Leconte de Lisle, Eça de Queirós e até Herédia, o mestre incomparável do soneto, o qual, no opinar de Alberto Faria, teria ido colher a inspiração do aparentemente original "Récif de corail" a um dos "Hymnes Orphiques", em que o mesmo Leconte de Lisle faz a invocação das nereidas: Sous les nappes d'azur de la mer d'Ionie Qui soupire au matin sa chanson infinie, (...) De vos grottes de nacre aux changeantes couleurs Où le rose corail épanouit ses fleurs, Des berceaux d'algue verte aimés des Dieux Tritones, Des mobiles vallons parsemés d'anémones, Des profondeurs où luit sur le sable vermeil L'opaline clarté d'un magique soleil, Montez! Laissez flotter dans les brises charmées Vos tresses, d'un arome âpre et doux embaumées, Et, mieux que le dauphin joyeux et diligent, Fendez le flot natal d'un sillage d'argent! [6.6.26] Antes de concluirmos este capítulo, tomemos a Ernesto Renan estas elucidativas palavras: "Não há neste mundo lugar tão insulado que seja inacessível ao vento soprado de outros quadrantes. A história do espírito humano é tão cheia de sincronismos, que não causa surpresa o fato de, sem prévia comunicação entre si, chegarem, ao mesmo tempo, idéias e representações idênticas às mais distanciadas frações da espécie humana". [6.7] VASOS FLORIDOS [6.7.1] "Vase brisé" é o título de interessante poemeto de Sully Prudhomme, incluído na coletânea de suas poesias denominada "Stances" ("Stances et poèmes" - 1865). [6.7.2] Aquele poemeto, sem outro motivo plausível que não seja o do seu tema sentimental, conquistou uma das maiores celebridades de que há notícia, não só na França, mas também no estrangeiro, tendo chegado ao extremo de ofuscar, com a sua acolhida pelo consenso público, a opulenta floração dos versos do grande poeta francês, hoje distribuída em meia dúzia de belos e elegantes volumes do editor Lemerre. [6.7.3] Por analogia com a popularidade do poemeto que conserva vivo o nome de Sully Prudhomme, Alberto Faria, notável polígrafo brasileiro, houve por bem dar o nome de "vase brisé" ao conhecido soneto do nosso poeta e diplomata Antônio Peregrino Maciel Monteiro (1804-1868) que assim começa: "Formosa, qual pincel em tela fina..." [6.7.4] Esses "vasos fendidos", há-os, com maior ou menor popularidade, em todas as literaturas, intrigando, não raro, o leitor, sobretudo o leitor pouco afeiçoado a letras, com a às vezes aparente falta de razão de ser da notoriedade deles. [6.7.5] Entre nós, onde não são muito escassos esses "vasos floridos", como lhes chamarei, de preferência a "vasos fendidos", por ser mais adequado o adjetivo aos poemas por ele qualificados, alguns existem que serão autênticos jarros de alabastro, e não de louça comum. Um deles será aquela "Barcarola" da "casa branca da serra", poemeto sentimental que trouxe à estima da posteridade o nome do poeta alagoano Sebastião Cícero de Guimarães Passos (1867-1909), tomando consigo o tácito compromisso de deixar no mais escuro olvido as poesias contidas nos dois livros do autor ("Versos de um Simples" [1891] e "Horas Mortas" [1901]), nos quais figuram poemas dignos de maior apreço da parte dos amantes das belas estrofes. [6.7.6] Dentro do círculo particular da história do soneto, fenômenos literários da mesma categoria dos ocorridos com os poemas de Arvers e de Blanco White, a que já nos referimos, hão sucedido entre nós, embora em âmbito muito mais restrito do que o daqueles. [6.7.7] Para explicação desses fatos, todos enquadrados num meio sobremodo iletrado e só parcialmente atraído pelas seduções da arte literária, é de mister que se faça a necessária distinção entre o critério que preside ao julgamento popular e ao juízo crítico propriamente dito. Aquele, é bem de ver, se exerce de maneira superficial, ao sabor da mal educada sensibilidade do leitor comum, enquanto o outro, afinado pela cultura literária, exige alguma coisa mais do que incentivo a aleatório devaneio do espírito. Para estabelecer-se a reciprocidade de ânimo ou a mútua compreensão entre o poeta e o seu leitor, necessário se faz que o primeiro consiga transmitir ao segundo certa vibração intima, de fácil receptividade, que traduza, de maneira eloqüente e singela, sentimentos, estados d'alma ou maneiras de sentir as impressões das coisas. Essa correlação de sentimentos se encontra igualmente entre o compositor musical e o seu auditório. [6.7.8] Como o homem é a criatura que procura obstinadamente algum intrujão que o ludibrie, claro está que o poeta poderá muito bem, dentro da órbita em que opera, com a sua arte criadora e interpretadora do ideal e das mais altas e belas aspirações humanas, desempenhar o papel daquele intrujão, com o apresentar à sua voluntária vítima a face do espelho mágico em que esta se revê sem a menor resistência. Terá sido por este motivo que Baudelaire julgava ver nos sortilégios da arte "um ópio divino para os corações mortais". [6.7.9] Além disso, é inegável que a intuição da turba humana que lê não deixa de ser mediana: não irá até aquilo que se coloca muito acima da sua inteligência e sensibilidade. Um soneto, como o "Fetichismo", de Raimundo Correia, "Inania Verba", de Olavo Bilac, "Venus", de Luís Guimarães Filho, "A Cegonha", de Aníbal Teófilo, ou "Eugenia", de Raul de Leoni, estará muito além das raias da sua compreensão. Acessíveis, ao revés, à sua sensibilidade e inteligência estarão outros que não se revistam de transcendências de qualquer natureza e lhe traduzam os ideais e os anseios, ainda os mais secretos e indefinidos. [6.7.10] Assim, entre nós, não se vulgarizaram e adquiriram popularidade grandes e artísticos sonetos, que os temos, mas aqueles que melhor traduzem as aspirações e os sentimentos do público. [6.7.11] Constituem essa "antologia popular", salvo alguma omissão eventual, os seguintes poemas de catorze versos: "Formosa, qual pincel em tela fina", de Maciel Monteiro, "Visita à Casa Paterna", de Luís Guimarães, "Terra do Brasil", atribuído, sem razão, a D. Pedro de Alcântara, "Mal Secreto" e "As Pombas", de Raimundo Correia, "A Vingança da Porta", de Alberto de Oliveira, "Anjo Enfermo", de Afonso Celso, "Ouvir Estrelas", de Olavo Bilac, "Essa que passa por aí, senhores", de Hermeto Lima, "Contraste", do Padre Antônio Tomás, "Saudade", de Costa e Silva, "Cisnes", de Júlio Salusse, "Duas Almas", de Alceu Wamosy, e "O Acendedor de Lampeões", de Jorge de Lima. [6.7.12] Alguns destes "vasos floridos" não serão de alabastro, dados os defeitos ou senões artísticos que rigorosa crítica literária poderá neles descobrir, ou já descobriu; mas isso nada importa. Serão todos, em verdade, outros tantos "vases brisés", segundo a intenção de Alberto Faria, acima indicada.
[7] →

Site desenvolvido por Pop Box Web Design.