[8] APÊNDICE I: PANORAMA DO
SONETO BRASILEIRO

A edição original chegava até o exemplo enquadrado no tópico 8.56; dali ao final, acrescentei exemplos mais recentes, que atualizam a amostragem pretendida por Cruz Filho, contemplando, naturalmente, as diversas (às vezes divergentes) tendências do sonetismo contemporâneo. Num ou noutro caso substituí o soneto preferido de Cruz Filho por outro, menos palatável. Além desta seleta, incluo sonetos de vária autoria em meio aos apontamentos que fiz, para cuja localização sugiro a consulta ao índice onomástico. O mesmo vale para alguns sonetos que Cruz Filho transcreve ao longo do texto e não repete neste capítulo. [8.1] GREGÓRIO DE MATOS GUERRA (1633-1696) CIDADE DA BAHIA A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia. [8.2] ALEXANDRE DE GUSMÃO (1695-1753) A JÚPITER, SUPREMO DEUS DO OLIMPO Númen que tens do mundo o regimento, Se amas o bem, se odeias a maldade, Como deixas com prêmio a iniqüidade, E assoçobrando ao são entendimento? Como hei de crer que um imortal tormento Castigue a uma mortal leviandade? Que seja ciência, amor ou piedade Expor-me ao mal sem meu consentimento? Guerras cruéis, fanáticos tiranos, Raios, tremores e as moléstias tristes Enchem o curso dos pesados anos; Se és Deus, se isto prevês e assim persistes, Ou não fazes apreço dos humanos, Ou qual dizem não és; ou não existes. [8.3] CLÁUDIO MANUEL DA COSTA (1729-1789) SONETO Destes penhascos fez a natureza O berço, em que nasci: oh quem cuidara Que entre penhas tão duras se criara Uma alma terna, um peito sem dureza! Amor, que vence os Tigres, por empresa Tomou logo render-me; ele declara Contra o meu coração guerra tão rara, Que não me foi bastante a fortaleza. Por mais que eu mesmo conhecesse o dano, A que dava ocasião minha brandura, Nunca pude fugir ao cego engano: Vós, que ostentais a condição mais dura, Temei, penhas, temei; que Amor tirano, Onde há mais resistência, mais se apura. [8.4] ALVARENGA PEIXOTO (1744-1793) ESTELA E NIZE Eu vi a linda Estela, e namorado Fiz logo eterno voto de querê-la; Mas vi depois a Nize, e é tão bela, Que merece igualmente o meu cuidado. A qual escolherei, se neste estado Não posso distinguir Nize de Estela? Se Nize vir aqui, morro por ela; Se Estela agora vir, fico abrasado. Mas, ah! que aquela me despreza amante, Pois sabe que estou preso em outros braços, E esta não me quer por inconstante. Vem, Cupido, soltar-me destes laços, Ou faz de dois semblantes um semblante, Ou divide o meu peito em dois pedaços! [8.5] JOSÉ MARIA DO AMARAL (1813-1885) DESENGANO Uma por uma, da existência as flores, Se a existência que temos é florida, Uma por uma, no correr da vida, Fanadas vi sem viço e vi sem cores. Sonhos mundanos, sois enganadores, Alma que vos sonhou, geme iludida; Existência, de flores tão despida, Que te fica senão tristeza e dores? Do mundo as ilusões perdi funestas, Ao noitejar da idade, em amargura, Esperança cristã, só tu me restas! Fujo contigo desta vida impura, Nas crenças que tão mística me emprestas, Transponho antes da morte a sepultura. [8.6] FRANCISCO OTAVIANO (1825-1889) MORRER... DORMIR... Morrer... dormir... não mais! Termina a vida e com ela terminam nossas dores: Um punhado de terra, algumas flores, E às vezes uma lágrima fingida! Sim! minha morte não será sentida; Não deixo amigos, e nem tive amores! Ou, se os tive, mostraram-se traidores, Algozes vis de uma alma consumida. Tudo é podre no mundo. Que me importa Que ele amanhã se esb'roe e que desabe Se a natureza para mim é morta! É tempo já que o meu exílio acabe... Vem, pois, ó morte, ao Nada me transporta! Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe? [8.7] D. PEDRO DE ALCÂNTARA (1825-1891) ASPIRAÇÃO Deus, que os orbes regulas esplendentes, Em número e medida ponderados, Neles abrigo dás aos desterrados, Que se vão suspirosos e plangentes. Assim, dos céus às vastidões silentes Ergo os meus pobres olhos fatigados, Indagando em que mundos apartados Lenitivo à saudade nos consentes. Breve, Senhor, do cárcere de argila Hei de evolar-me, murmurando ansioso Tímida prece: digna-te de ouvi-la! Põe-me ao pé do Cruzeiro majestoso, Que no antártico céu vivo cintila, Fitando sempre o meu Brasil saudoso! [8.8] JOSÉ BONIFÁCIO, O MOÇO (1827-1886) O RETRATO Incline o rosto um pouco... assim... ainda; arqueie o braço, a mão sobre a cintura; deixe fugir-lhe um riso à boca pura e a covinha animar da face linda. Erga a ponta do pé... que graça infinda! Quero nos olhos ver-lhe a formusura, feitiço azul de orvalho que fulgura, froco de luz suave, que não finda! Há pouca luz... eu vejo-a... está sentada. Passou-lhe a sombra de um cuidado agora, na ruguinha da fronte jambeada. Enfadou-se? Meu Deus, ei-la que chora! Pois caiu-me o pincel. Que mão ousada! Pintar de noite o levantar da aurora! [8.9] LUÍS DELFINO (1834-1910) CAPRICHO DE SARDANAPALO "Não dormi toda a noite! A vida exalo Numa agonia indômita e cruel! Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo! Faço-te agora amigo meu fiel... Deixa o leito de sândalo... A cavalo! Falta-me alguém no meu real dossel... Ouves, escravo, o rei Sardanapalo? Engole o espaço! É raio o meu corcel! Não quero que igual noite hoje em mim caia... Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia, Ao sol, à lua... voa, Radamés, Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho, Quero dormir também, feliz, debaixo Das duas curvas dos seus brancos pés!..." [8.9.1] Do soneto acima (e da temática de muitos outros delfinianos) fez Manuel Bandeira interessante glosa, abaixo transcrita: AD INSTAR DELPHINI [Manuel Bandeira] Teus pés são voluptuosos: é por isso Que andas com tanta graça, ó Cassiopéia! De onde te vem tal chama e tal feitiço, Que dás idéia ao corpo, e corpo à idéia? Camões, valei-me! Adamastor, Magriço Dai-me força, e tu, Vênus Citeréia, Essa doçura, esse imortal derriço... Quero também compor minha epopéia! Não cantarei Helena e a antiga Tróia, Nem as Missões e a nacional Lindóia, Nem Deus, nem Diacho! Quero, oh por quem és, Flor ou mulher, chave do meu destino, Quero cantar, como cantou Delfino, As duas curvas de dois brancos pés! [8.10] MACHADO DE ASSIS (1839-1908) CÍRCULO VICIOSO Bailando no ar, gemia inquieto vagalume: - "Quem me dera que fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: - "Pudesse eu copiar o transparente lume, Que da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!" Mas a lua, fitando o sol, com azedume: - "Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela Claridade imortal, que toda a luz resume!" Mas o sol, inclinando a rútila capela: - "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vagalume?" [8.11] LUÍS GUIMARÃES (1845-1898) NOITE TROPICAL Desceu a calma noite irradiante Sobre a floresta e os vales semeados: Já ninguém ouve os cantos prolongados Do negro escravo, estúpido e arquejante. Dorme a fazenda: - apenas hesitante A voz do cão, em uivos assustados, Corta o silêncio, e vai nos descampados Perder-se como um grito agonizante. Rompe o luar, ensanguentado e informe, Brotam fantasmas da savana nua... E, de repente, um berro desconforme Parte da mata em que o luar flutua, E a onça, abrindo a rubra fauce enorme, Geme na sombra, contemplando a lua. [8.11.1] Compare-se a voz poética do Diplomata com a voz espiritual a ele atribuída: VOLTANDO [Luís Guimarães, psicografado por Chico Xavier] Após a longa e frígida nortada Da existência no mundo de invernia, Busquei contente a paz que me sorria No fim da áspera senda palmilhada. Voltei. Nova era a vida, nova a estrada Que minhalma extasiada percorria; Divinal era a luz que resplendia, Em revérberos lindos de alvorada. De volta, e os mesmos seres que me haviam Ofertado na Terra amores santos, Envoltos em ternuras e em carinhos, Novamente no Além me ofereciam Lenitivo às agruras dos meus prantos, Nas carícias risonhas dos caminhos. [8.12] CARLOS DE LAET (1847-1927) TRISTE FILOSOFIA Ia Rosa vestir-se, e do vestido Uma voz se desprende e assim murmura: "Muitas morremos de uma morte escura, Porque te envolva sérico tecido". Ia toucar-se, e escuta-se um gemido Do marfim que as madeixas lhe segura: "Por dar-te o afeite desta minha alvura, Jaz na selva meu corpo sucumbido!" Põe um colar, e a pérola mais fina: "Para pescar-me, quantos párias, quantos! Padeceram no mar lúgubres sortes!" E Rosa chora: "Oh! desditosa sina! Todo sorriso é feito de mil prantos, Toda vida se tece de mil mortes!" [8.13] NARCISA AMÁLIA (1852-1924) RECORDAÇÃO FATAL Distende essa mimosa envergadura, Verso! Leve, transpondo os altos montes, Sobe! Assombra-te, acaso, a terra impura? Mergulha, inteiro, nas celestes fontes! Anima-te! Esvoaça! Olvida a escura Geena! Choradas lágrimas não contes... - Porque prantos cantar, se é em festa a altura? Se há, bengali, rosais nos horizontes? Mas - ai! triste galé! quer o poema De amor dos sóis surpreendas, quer a casta Rola por tua voz soluce e gema, Será contigo a lúgubre, a nefasta Recordação, que arrasto, como a ema A asa partida pelo campo arrasta! [8.14] TEÓFILO DIAS (1854-1889) SAUDADE A saudade da amada criatura Nutre-nos n'alma dolorido gozo, Uma inefável, íntima tortura, Um sentimento acerbo e volutuoso. Aquele amor cruel e carinhoso Na memória indelével nos perdura, Como acre aroma absorto na textura De um cofre oriental, fino e poroso. Entranha-se, invetera-se, - de jeito Que do tempo ao volver, lento e nocivo, Resiste: - e ainda mil pedaços feito O lígneo cárcer que o retém cativo, Cada parcela reproduz perfeito O mesmo aroma, inalterável, vivo. [8.15] ARTHUR AZEVEDO (1855-1908) AS ESTÁTUAS No dia em que na terra te sumiram, Eu fui ver-te defunta sobre a essa... Fechados para sempre, oh! sorte avessa! Aqueles olhos que me seduziram. À luz do sol uma janela abriram, E o jardim avistei onde, ó condessa, Uma noite perdemos a cabeça, E as estátuas de mármore sorriram. Saíste por aquela mesma porta Onde outrora teus beijos me esperavam, Cheios do amor que ainda me conforta. Quando o jardim saudoso atravessavam Seis homens com o esquife em que ias morta, As estátuas de mármore choravam. [8.16] B. LOPES (1856-1916) APOTEOSE Não sei por que surpresas do meu fado, Se por ventura ou por desgraça minha, Sigo os volteios do teu giro alado, Teus aéreos caprichos de andorinha. Nas tuas ígneas asas arrastado, Do erro buscando a sedutora linha, Perdi cultos e crenças do Passado: És do meu coração dona e rainha. Prende-o no áureo grilhão do teu encanto, De teus braços febris na algema flórea, Ou nas cadeias súplices do pranto; Águia, eleva-te, e aos hinos das fanfarras, Como um troféu sangrento da vitória, Leva o meu coração nas tuas garras! [8.17] MÚCIO TEIXEIRA (1858-1926) O INFINITO Onde o corpo não vai - projeta-se o olhar; Onde pára o olhar - prossegue o pensamento; Assim, nesse constante, eterno caminhar, Ascendemos do pó, momento por momento. Muito além da atmosfera e além do firmamento, Onde os astros, os sóis, não cessam de girar, Há de certo mais vida e muito mais alento Do que nesta prisão mefítica, sem ar... Pois bem! se não me é dado, em vigoroso adejo, Subir, subir... subir - aos mundos, que não vejo, Porém que um não sei quê me diz que inda hei de ver, - Quero despedaçar os elos da matéria: Perder-me pelo azul da vastidão etérea E ser o que só é - quem já deixou de ser! [8.18] ALBERTO DE OLIVEIRA (1859-1937) SOLIDÃO Vês? estou só! E a vida aqui chega a seu termo. Já com o sol que se põe se alonga no caminho A sombra do viajor que fui, por tanto espinho, E maior, com o ermo da alma, é destas coisas o ermo. Pára-me o coração e o punge a mágoa, a encher-mo, De haver amado em vão e de viver sozinho. Nem um sorriso! um beijo! um olhar! um carinho! Só! e a esvair-se em sangue e a exulcerar-se enfermo! Só! E em breve caindo, ao despertar em breve, Verei, a acompanhar-me, a tua sombra leve, Uniremos, enfim, as almas imortais? Oh! que horror, se, ao chegar ao torvo Ignoto um dia, Outra és tu, se te abraço - e te acho esquiva e fria, Se te falo e segredo - e não me entendes mais! [8.18.1] Compare-se a voz poética de Oliveira com a voz espiritual a ele atribuída: AJUDA E PASSA [Alberto de Oliveira, psicografado por Chico Xavier] Estende a mão fraterna ao que ri e ao que chora: O palácio e a choupana, o ninho e a sepultura, Tudo o que vibra espera a luz que resplendora, Na eterna lei de amor que consagra a criatura. Planta a bênção da paz, como raios de aurora, Nas trevas do ladrão, na dor da alma perjura; Irradia o perdão e atende, mundo afora, Onde clame a revolta e onde exista a amargura. Agora, hoje e amanhã, compreende, ajuda e passa; Esclarece a alegria e consola a desgraça, Guarda o anseio do bem que é lume peregrino... Não troques mal por mal, foge à sombra e à vingança, Não te aflija a miséria, arrima-te à esperança. Seja a bênção de amor a luz do teu destino. DO ÚLTIMO DIA [Alberto de Oliveira, psicografado por Chico Xavier] O homem, no último dia, abatido em seu horto, Sente o extremo pavor que a morte lhe revela; Seu coração é um mar que se apruma e encapela, No pungente estertor do peito quase morto. Tudo o que era vaidade, agora é desconforto. Toda a nau da ilusão se destroça e esfacela Sob as ondas fatais da indômita procela, Do pobre coração, que é náufrago sem porto. Somente o que venceu nesse mundo mesquinho, Conservando Jesus por verdade e caminho, Rompe a treva do abismo enganoso e perverso! Onde vais, homem vão? Cala em ti todo alarde, Foge dessa tormenta antes que seja tarde: Só Jesus tem nas mãos o farol do Universo. [8.19] RAIMUNDO CORREIA (1860-1911) FETICHISMO Homem, da vida as sombras inclementes Interrogas em vão: - Que céus habita Deus? Onde essa região de luz bendita, Paraíso dos justos e dos crentes?... Em vão tateiam tuas mãos trementes As entranhas da noite erma, infinita, Onde a dúvida atroz blasfema e grita, E onde há só queixas e ranger de dentes... A essa abóbada escura, em vão elevas Os braços para o Deus sonhado, e lutas Por abarcá-lo; é tudo em torno trevas... Somente o vácuo estreitas em teus braços; E apenas, pávido, um ruído escutas, Que é o ruído dos teus próprios passos!... [8.19.1] Compare-se a voz poética de Raimundo com a voz espiritual a ele atribuída: PRIMEIRO SONETO [Raimundo Correia, psicografado por Chico Xavier] Tudo passa no mundo. O homem passa Atrás dos anos sem compreendê-los; O tempo e a dor alvejam-lhe os cabelos, À frouxa luz de uma ventura escassa. Sob o infortúnio, sob os atropelos Da dor que lhe envenena o sonho e a graça, Rasga-se a fantasia que o enlaça, E vê morrer seus ideais mais belos!... Longe, porém, das ilusões desfeitas, Mostra-lhe a morte vidas mais perfeitas, Depois do pesadelo das mãos frias... E como o anjinho débil que renasce, Chora, chora e sorri, qual se encontrasse À luz primeira dos primeiros dias. [8.20] JOÃO RIBEIRO (1860-1934) MONGE É forçoso que por um louco tomem Quem de perfeito juízo se mostrava? Louco, dizeis vós! mas onde estava A apregoada loucura daquele homem? Quem pode ver as dores que se somem Dentro no peito e ver a ignota lava? Loucos sois vós que as pústulas consomem, E tendes a alma das paixões escrava. Louco o dizeis, porque deixara o mundo Pelo abismo do claustro hórrido e fundo! Insensatos, sabei! para a alegria, É talvez pouca luz a luz do dia, Mas a quem fere do infortúnio o açoite Essa noite do claustro é pouca noite. [8.21] AFONSO CELSO (1860-1938) ANJO ENFERMO Geme no berço, enferma, a criancinha, Que não fala, não anda e já padece... Penas assim cruéis porque as merece Quem mal entrando na existência vinha? Ó melindroso ser, ó filha minha, Se os céus me ouvissem a paterna prece, E a mim o teu sofrer passar pudesse, Gozo me fora a dor que te espezinha... Como te aperta a angústia o frágil peito! E Deus, que tudo vê, não ta extermina, Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito. Sim... é pai, mas, a crença no-lo ensina: - Se viu morrer Jesus, quando homem feito, Nunca teve uma filha pequenina! [8.22] AUGUSTO DE LIMA (1860-1934) NOSTALGIA PANTEÍSTA Um dia, interrogando o níveo seio de uma concha voltada contra o ouvido, um longínquo rumor, como um gemido, ouvi plangente e de saudades cheio. Esse rumor tristíssimo, escutei-o: é a música das ondas, é o bramido que ela guarda por tempo indefinido, das solidões marinhas donde veio. Homem, concha exilada, igual lamento em ti mesmo ouvirás, se ouvido atento aos recessos do espírito volveres. É de saudade, esse lamento humano, de uma vida anterior, pátrio oceano da unidade concêntrica dos seres. [8.23] CRUZ E SOUSA (1861-1898) CAMINHO DA GLÓRIA Este caminho é cor de rosa e é de ouro. Estranhos roseirais nele florescem, Folhas augustas, nobres reverdecem De acanto, mirto e sempiterno louro. Neste caminho encontra-se o tesouro Pelo qual tantas almas estremecem; É por aqui que tantas almas descem Ao divino e fremente sorvedouro. É por aqui que passam meditando, Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando, Neste celeste, límpido caminho, Os seres virginais que vêm da Terra, Ensangüentados da tremenda guerra, Embebedados do sinistro vinho. [8.23.1] Compare-se a voz poética do Negro com a voz espiritual a ele atribuída: A SEPULTURA [Cruz e Sousa, psicografado por Chico Xavier] Como a orquídea de arminho quando nasce, Sobre a lama ascorosa refulgindo, A brancura das pétalas abrindo, Como se a neve alvíssima a orvalhasse; Qual essa flor fragrante, como a face Dum querubim angélico sorrindo, Do monturo pestífero emergindo, Luz que sobre negrumes se abistasse; Assim também do túmulo asqueroso, Evola-se a essência luminosa Da alma que busca o céu maravilhoso; E como o lodo é o berço vil de flores, A sepultura fria e tenebrosa É o berço de almas - senda de esplendores. ANJOS DA PAZ [Cruz e Sousa, psicografado por Chico Xavier] Ó luminosas formas alvadias Que desceis dos espaços constelados Para lenir a dor dos desgraçados Que sofrem nas terrenas gemonias! Vindes de ignotas luzes erradias, De lindos firmamentos estrelados, Céus distantes que vemos, dominados De esperanças, anseios e alegrias. Anjos da Paz, radiosas formas claras, Doces visões de etéricos carraras De que o espaço fúlgido se estrela!... Clarificai as noites mais escuras Que pesam sobre a terra de amarguras, Com a alvorada da Paz, ditosa e bela... ORAÇÃO AOS LIBERTOS [Cruz e Sousa, psicografado por Chico Xavier] Alma embriagada do imortal falerno, Segue cantando, no horizonte claro, O teu destino esplendoroso e raro, Cheio de luzes do porvir eterno. Mas não te esqueças desse mundo avaro, O escuro abismo, o tormentoso Averno, Sem as doces carícias do galerno Das esperanças - sacrossanto amparo. Volve os teus olhos ternos, compassivos, Para os pobres Espíritos cativos Às grilhetas do corpo miserando! Abre os sacrários da Felicidade, Mas lembra-te do orbe da impiedade, Onde venceste a carne soluçando. BELEZA DA MORTE [Cruz e Sousa, psicografado por Chico Xavier] Há no estertor da morte uma beleza Transcendente, ignota, luminosa, Beleza sossegada e silenciosa, Da luz branca da Paz, trêmula e acesa... É o augusto momento em que a alma, presa Às cadeias da carne tenebrosa, Abandona a prisão, dorida e ansiosa, Sentindo a vida de outra natureza. Um mistério divino há nesse instante, No qual o corpo morre e a alma vibrante Foge da noite das melancolias!... No silêncio de cada moribundo, Há a promessa de vida em outro mundo, Na mais sagrada das hierarquias. À DOR [Cruz e Sousa, psicografado por Chico Xavier] Dor, és tu que resgatas, que redimes Os grandes réus, os míseros culpados, Os calcetas dos erros, dos pecados, Que surgem do pretérito de crimes. Sob os teus pulsos, fortes e sublimes, Sofri na Terra junto aos condenados, Seres escarnecidos, torturados, Entre as prisões da Lágrima que exprimes! Da perfeição és o sagrado Verbo, Ó portadora do tormento acerbo, Aferidora da Justiça Extrema... Bendita a hora em que me pus à espera De ser, em vez do réprobo que eu era, O missionário dessa Dor suprema! TUDO VAIDADE [Cruz e Sousa, psicografado por Chico Xavier] Na Terra a morte é o trágico resumo De vanglórias, de orgulhos e de raças; Tudo no mundo passa, como passas, Entre as aluviões de cinza e fumo. Todo o sonho carnal vaga sem rumo, Só o diamante do espírito sem jaças Fica indene de todas as desgraças, De que a morte voraz faz seu consumo. Nesse mundo de lutas fratricidas, A vida se alimenta de outras vidas, Num contínuo combate pavoroso; Só a Morte abre a porta das mudanças E concretiza as puras esperanças Nos países seráficos do gozo! [8.24] OLAVO BILAC (1865-1918) INANIA VERBA Ah! quem há-de exprimir, alma impotente e escrava, O que a boca não diz, o que a mão não escreve? - Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve, Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava... O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve... E a Palavra pesada abafa a Idéia leve, Que, perfume e clarão, refulgia e voava. Quem o molde achará para a expressão de tudo? Ai! quem há-de dizer as ânsias infinitas Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta? E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo? E as palavras de fé que nunca foram ditas? E as confissões de amor que morrem na garganta?! [8.24.1] Compare-se a voz poética de Bilac com a voz espiritual a ele atribuída: [SONETO ERRANTE] [Olavo Bilac, psicografado por Chico Xavier] Por tanto tempo andei faminto e errante, Que os prazeres da vida converti-os Em poemas das formas, em sombrios Pesadelos da carne palpitante. No derradeiro sono, instante a instante, Vi fanarem-se anseios como fios Da ilusão transformada em sopros frios, Sobre o meu peito em febre, vacilante. Morte, no teu portal a alma tateia, Espia, inquire, sonda e chora, cheia De incerteza na esfinge que tu plasmas!... Impassível, descerras aos aflitos Uma visão de mundos infinitos E uma ronda infinita de fantasmas. AOS DESCRENTES [Olavo Bilac, psicografado por Chico Xavier] Vós, que seguis a turba desvairada, As hostes dos descrentes e dos loucos, Que de olhos cegos e de ouvidos moucos Estão longe da senda iluminada, Retrocedei dos vossos mundos ocos, Começai outra vida em nova estrada, Sem a idéia falaz do grande Nada, Que entorpece, envenena e mata aos poucos. Ó ateus como eu fui - na sombra imensa Erguei de novo o eterno altar da crença, Da fé viva, sem cárcere mesquinho! Banhai-vos na divina claridade Que promana das luzes da Verdade, Sol eterno na glória do caminho! O LIVRO [Olavo Bilac, psicografado por Chico Xavier] Ei-lo! Facho de amor que, redivivo, assoma Desde a taba feroz em folhas de granito, Da Índia misteriosa e dos louros do Egito Ao fausto senhoril de Cartago e de Roma! Vaso revelador retendo o excelso aroma Do pensamento a erguer-se esplêndido e bendito, O Livro é o coração do tempo no Infinito, Em que a idéia imortal se renova e retoma. Companheiro fiel da virtude e da História, Guia das gerações na vida transitória, É o nume apostolar que governa o destino; Com Hermes e Moisés, com Zoroastro e Buda, Pensa, corrige, ensina, experimenta, estuda, E brilha com Jesus no Evangelho Divino. [8.25] VICENTE DE CARVALHO (1866-1924) ESPERANÇA Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada; Nem é mais a existência, resumida, Que uma grande esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, É uma hora feliz, sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida. Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos, Existe, sim: mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos. [8.26] GUIMARÃES PASSOS (1867-1909) GUARDA E PASSA "...Non me destar, deh! parla basso." (Michel Angelo) Figuremos: tu vais (é curta a viagem), Tu vais e, de repente, na tortuosa Estrada vês, sob árvore frondosa, Alguém dormindo à beira da passagem. Alguém, cuja fadiga angustiosa Cedeu ao sono, em meio da romagem, E exausto dorme... Tinhas tu coragem De acordá-lo? responde-me, formosa. Quem dorme esquece... Pode ser medonho O pesadelo que entre o horror nos fecha; Mas sofre menos o que sofre em sonho. Ó, tu, que turvas o palor da neve, Tu, que as estrelas escureces, deixa Meu coração dormir... Pisa de leve. [8.27] EMÍLIO DE MENESES (1867-1918) TRAPO Esta que outrora o linho da cambraia Na pompa da ostentosa lençaria, - Folhos e rendas que à secreta alfaia Ornavam com capricho e bizarria - Era camisa - e que hoje a nostalgia Sofre do tempo em que entre a pele e a saia O perfumado corpo lhe cingia, - Era ao possuí-la, a última atalaia. Trapo que encerras o ebriante aroma Do seu colo moreno, poma a poma, Ora em tiras te vejo desprezado. E mais te quero, e mais te achego ao peito Trapo divino! símbolo perfeito De um coração por Ela espedaçado. [8.27.1] Também no sonetilho vale notar a versatilidade do Gordo, como neste exemplo em redondilha maior: O VIOLINO São, às vezes, as surdinas Dos peitos apaixonados Aquelas notas divinas Que ele desprende aos bocados... Tem, ora os prantos magoados Dessas crianças franzinas, Ora os risos debochados Das mulheres libertinas... Quando o ouço vem-me à mente Um prazer intermitente... A harmonia, que desata, Geme, chora... e de repente Dá uma risada estridente Nos "allegros" da Traviata. [8.27.2] Compare-se a voz poética do Gordo com a voz espiritual a ele atribuída: EU MESMO [Emílio de Meneses, psicografado por Chico Xavier] Eu mesmo estou a ignorar se posso Chamar-me ainda o Emílio de Meneses, Procurando tomar o tempo vosso, Recitando epigramas descorteses. Como hei de versejar? Rimas em osso São difíceis... contudo, de outras vezes, Eu sabia rezar o Padre-Nosso E unir meus versos como irmãos siameses. Como hei de aparecer? O que é impossível É ser um santarrão inconcebível, Trazendo as luzes do Evangelho às gentes... Sou o Emílio, distante da garrafa, Mas que não se entristece e nem se abafa, Longe das anedotas indecentes. AOS MEUS AMIGOS DA TERRA [Meneses, psicografado por Xavier] Amigos, tolerai o meu assunto, (Sempre vivi do sofrimento alheio) Relevai, que as promessas de um defunto São coisa inda invulgar no vosso meio. Apesar do meu cérebro bestunto, O elo que nos unia, conservei-o, Como a quase saudade do presunto, Que nutre um corpo empanturrado e feio. Espero-vos aqui com as minhas festas, Nas quais, porém, o vinho não explode, Nem há cheiro de carnes ou cebolas. Evitai as comidas indigestas, Pois na hora do "salva-se quem pode", Muita gente nem fica de ceroulas... [8.28] JÚLIA CORTINES (1868-1948) O LAGO Um pouco d'água só e, ao fundo, areia ou lama, Um pouco d'água em que, no entanto, se retrata O pássaro que o vôo aos ares arrebata E o rubro e infindo céu do crepúsculo em chama. Água que se transmuda em reluzente prata, Quando, no bosque em flor, que as brisas embalsama, A lua, como uma áurea e finíssima trama, Pelos ombros da noite a sua luz desata. Poeta, como esse lago adormecido e mudo, Onde não há, sequer, um frêmito de vida, Onde tudo é ilusório, e passageiro é tudo, Existem, sobre um fundo, ou de lama ou de areia, Almas em que tu vês, apenas, refletida A tua alma, onde o sonho astros de ouro semeia! [8.29] ANTÔNIO SALES (1868-1940) A GARÇA Vede-a tão alva, tão esbelta e pura! Há qualquer coisa de melancolia Na grave e abandonada compostura Com que do lago a linfa clara espia. Um peixinho, decerto, não procura Para matar a fome, pois dir-se-ia Que intenta apenas refletir a alvura Da formosa plumagem na água fria. Mas talvez que não seja por vaidade Que contempla o seu vulto, atentamente, Com esse olhar de infinda suavidade... Quem sabe se, ao mirar-se, a garça albente Não pensa, num transporte de saudade, Em outra garça desejada e ausente? [8.30] PADRE ANTÔNIO TOMÁS (1868-1941) EVA Cantam-lhe n'alma ainda as sedutoras Finais palavras do inimigo astuto: - "Se o houveras provado um só minuto, Deusa, decerto, e não mulher tu foras", E desprezando as iras vingadoras Do céu, estende o braço resoluto E colhe o belo, rubicundo fruto De estranho cheiro e formas tentadoras. Nas mãos o preme e, quando o vai partindo, Se lhe esguicha da polpa sumarenta O róseo mosto sobre o seio lindo. E em cada poma fica-lhe estampado Um vivo timbre dessa cor sangrenta, Como as insígnias rubras do pecado. [8.31] ALPHONSUS DE GUIMARAENS (1870-1921) CAVALEIRO FERIDO O pesar de não tê-la encontrado mais cedo, De não ter visto o sol quando havia esperança! Som flébil, ástreo som da alma de um citaredo, Porque vos não ouvi quando ainda era criança? Quantas vezes o luar me sorria em segredo, Quantas vezes a tarde era serena e mansa! E o horizonte ante mim ressurgia tão ledo, Que eu dizia: "Mas que anjo entre as nuvens avança?" Hoje, depois de velho, e tão velho, mais velho Que uma figura antiga e doce do Evangelho, É que entre astros, trilhando o azul claro, a encontrei... E pude, contemplando o sol da sua face, Atirar a seus pés, para que ela os pisasse, Meus andrajos de pobre e meu manto de rei... [8.31.1] Compare-se a voz poética de Guimaraens com a voz espiritual a ele atribuída: REDIVIVO [Alphonsus de Guimaraens, psicografado por Chico Xavier] Sou o cantor das místicas baladas Que, em volutas de flores e de incenso, Achou, no Espaço luminoso e imenso, O perfume das hóstias consagradas. Almas que andais gemendo nas estradas Da amargura e da dor, eu vos pertenço, Atravessai o nevoeiro denso Em que viveis no mundo, amortalhadas. Almas tristes de freiras e sorores, Sobre quem a saudade despetala Os seus lírios de pálidos fulgores; Eu ressurjo nos místicos prazeres, De vos cantar, na sombra onde se exala Um perfume de altar e misereres... SINOS [Alphonsus de Guimaraens, psicografado por Chico Xavier] Escuto ainda a voz dos campanários Entre aromas de rosas e açucenas, Vozes de sinos pelos santuários, Enchendo as grandes vastidões serenas... E seguindo outros seres solitários, Retomo velhos quadros, velhas cenas, Rezando as orações dos Septenários, Dos Ofícios, dos Terços, das Novenas... A morte que nos salva não nos priva De ir ao pé de um sacrário abandonado, Chorar, como inda faz a alma cativa! Ó sinos dolorosos e plangentes, Cantai, como cantáveis no passado, Dizendo a mesma Fé que salva os crentes!... [8.32] FRANÇA PEREIRA (1870-1925) NO HARÉM Como um broche de púrpura e de opala, O sol fuzila na Sublime Porta, E, à luz do dia, múrmura, trescala, No alto, o perfume da Bizâncio morta. Cem odaliscas, que o sultão transporta Da Circássia, do Egito e de Bengala, Entram nuas no banho, à vista absorta De cem núbios que, em armas, fazem ala. Pompeia o harém na lúbrica loucura Dos torsos nus, dos colos e das ancas Hirtas, na febre das lascivas mágoas. Somente Djáli, a indiana altiva e pura, Salta, velando as rijas pomas brancas, No âmbar gelado das cheirosas águas. [8.33] JÚLIO SALUSSE (1872-1948) CISNES A vida, manso lago azul, algumas Vezes, algumas vezes mar fremente, Tem sido para nós, constantemente, Um lago azul sem ondas, sem espumas. Sobre ele, quando, desfazendo as brumas Matinais, rompe um sol vermelho e quente, Nós dois vagamos indolentemente, Como dois cisnes de alvacentas plumas. Um dia, um cisne morrerá, por certo. Quando chegar esse momento incerto, No lago, onde talvez a água se tisne, Que o cisne vivo, cheio de saudade, Nunca mais cante nem sozinho nade, Nem nade nunca ao lado de outro cisne! [8.34] ALF. CASTRO (1872-1926) POMO DE ASFALTITE Pobre de ti! Jamais o cobiçado fruto Has de, alegre, colher no galho que balança: Alta é a fronde que o tem, veludoso e impoluto, E és pequeno demais. Tua mão não o alcança! Não poderes crescer e avultar num minuto Para tirá-lo! Em vão, que a viridente frança Há de crescer também e - oh! desespero e luto! - Há de o ramo fugir à tua mão que avança. Mas pudesses colhê-lo... Em breve, quando fosses Mordê-lo, em tua boca ansiosa, que o reclama, Prelibando o sabor dos seus gomos tão doces, Esse fruto, de pele em sangue e ouro embebida, Desfazendo-se em fel, desfazendo-se em lama, Havia de amargar por toda a tua vida! [8.35] ANÍBAL TEÓFILO (1873-1915) A CEGONHA Em solitária, plácida cegonha, Imersa num cismar ignoto e vago, Num fim de ocaso, à beira azul de um lago, Sem tristeza, quem há que os olhos ponha? Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha Talvez, que o conde de um palácio mago Loura fada perversa, em tredo afago, Mudou nessa pernalta erma e tristonha. Mas eu, que em prol da luz, do pétreo, denso Véu do Ser ou Não-Ser tento a escalada, Qual morosa, tenaz, paciente lesma, Ao vê-la assim mirar-se n'água, penso Ver a Dúvida Humana debruçada Sobre a angústia infinita de si mesma. [8.36] FRANCISCA JÚLIA DA SILVA (1874-1920) A FLORISTA Suspensa ao braço a grávida corbelha, Segue a passo, tranqüila... O sol faísca... Os seus carmíneos lábios de mourisca Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha. Deita à sombra de uma árvore. Uma abelha Zumbe em torno ao cabaz... Uma ave, arisca, O pó do chão, pertinho dela, cisca, Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha... Aos ouvidos lhe soa um rumor brando De folhas... Pouco a pouco, um leve sono Lhe vai as grandes pálpebras cerrando... Cai-lhe de um pé o rústico tamanco... E assim descalça, mostra, em abandono, O vultinho de um pé macio e branco. [8.37] HENRIQUE CASTRICIANO (1874-1947) A MISSA DO MAR Eis-nos sós, companheiro! Amargurado Oceano, Deixa-me descansar ao pé de ti, meu velho... Depois de ter ouvido o Ritual Romano, Quero aprender de cor o teu santo Evangelho. Abre o verde Missal! Como um Padre, de joelho, Põe nos ombros azuis o manto soberano; E do Sol preso ao Céu, de seu disco vermelho, Faze uma hóstia de luz, faze um símbolo humano. Sobe o dia no Azul. Tontas de amor, no Espaço, Gaivotas vão subindo... Ergue-se, ao longe, o braço De um monte secular, entre nimbos risonhos... E, ao ver tudo ascendendo, eu procuro o infinito De tua Alma sem fim, para esconder, num grito, Minhas queixas! meus ais! minhas penas! meus sonhos! [8.38] BONFIM SOBRINHO (1875-1900) NOIVADO FÚNEBRE Negra tristeza meu semblante encova, Ó noiva amada, lírio meu fanado! Porque não vamos na mudez da cova Em círios celebrar nosso noivado? Nos sete palmos desse leito amado, Ao frio bom de uma volúpia nova, Há de embalar o nosso amor gelado O coveiro a cantar magoada trova. E os nossos corpos gélidos, inermes, Em demorados e famintos beijos, Serão depois roídos pelos vermes... E do leito final que nos encerra Em plantas brotarão nossos desejos, E o nosso amor, em flores, sobre a terra. [8.39] A. J. PEREIRA DA SILVA (1876-1944) INCOGNITUS Anda comigo uma tristeza estranha... Tristeza? Não. Saudade inconseqüente De um país que uma luz de lua doente, Como os minguantes outoniços, banha, Essa idéia imanente me acompanha De tal maneira o espírito vidente, Que já sofro da falta desse ambiente De clima luminoso e ar de montanha. Vivi alhures? Guardo, impercebida, Como na calma azul de um céu profundo, A ingênita memória de outra vida? Quem sabe? Um senso incógnito me diz Que de outra forma viva e noutro Mundo Pode alguém ser feliz... e eu fui feliz. [8.40] MENDES MARTINS (1876-1915) VELHINHOS E vai fugindo o tempo. E, aos poucos, vem chegando, Ai, vem chegando a idade em que eu serei velhinho, Sopra o vento lá fora, as árvores curvando E, em busca de outro lar, deserta o passarinho - Ai, que frio! - eu murmuro. E, cheia de carinho, Te chegas para mim, as minhas mãos tomando. Ai, que frio, meu Deus! - torno a dizer baixinho, De teu colo moreno as rugas contemplando. E a lamparina estala e, trêmula, esmorece... Lá fora, o temporal, bramindo, recrudesce E solta, finalmente, os últimos arrancos... E à luz crepuscular, que te sombreia os traços, Tenho assomos de moço: aperto-te em meus braços E beijo, apaixonado... os teus cabelos brancos. [8.41] LUÍS GUIMARÃES FILHO (1878-1940) VÊNUS Lembro-me ainda dessa esbelta e flava Carícia dos teus braços amorosos... Por mais que evite o encanto, os impiedosos Perseguem sempre a minha carne escrava! Eram suaves, cálidos, cheirosos, Como doces damascos! Eu beijava Aquela morna pele que tentava O paladar! Oh! braços deliciosos, Como esquecer as núpcias perturbantes, Os longos desalentos delirantes Que sem misericórdia vós me dáveis? Ah! torna, Vênus, para o sacro Elêusis! Fui condenado à morte pelos deuses, E quero-a nos teus braços implacáveis [8.42] JONAS DA SILVA (1880-1947) Ó LARANJAL SEM FLOR! Ó laranjal sem flor, ó limeira sem lima, De braços hirtos como os de um Crucificado, Talvez S. Sebastião, ao cumprir o seu fado, Contra vós atirasse a maldição do clima. Folha a folha, o tufão foi despindo a alta cima Onde outrora cantava o sabiá namorado; Hoje apenas lembrais o imortal torturado Ou um mártir da Ilusão no Calvário da rima. Como somos irmãos nesta vida em que vamos! Voltarão pelo inverno os rebentos de outrora, Os sabiás voltarão a cantar sobre os ramos. E esta alma encontrará novamente a que estima? E esta alma encontrará novamente a que adora? Ó laranjal sem flor, ó limeira sem lima... [8.43] JOSÉ ALBANO (1882-1923) SONETO Bom Jesus, amador das almas puras, Bom Jesus, amador das almas mansas, De ti vêm as serenas esperanças, De ti vêm as angélicas doçuras. Em toda parte vejo que procuras O pecador ingrato e não descansas, Para lhe dar as bem-aventuranças Que os espíritos gozam nas alturas. A mim, pois, que de mágoa desatino E, noite e dia, em lágrimas me banho, Vem abrandar o meu cruel destino. E, terminado este degredo estranho, Tem compaixão de mim, Pastor Divino, Que não falte uma ovelha ao teu rebanho. [8.44] OSCAR LOPES (1883-1938) O FIM Um de nós morrerá primeiro... Eis a verdade, Eis o que é natural, sendo embora monstruoso! Um ficará na terra, envolto na saudade, Depois de o outro ir buscar o absoluto repouso. Quem de nós transporá primeiro a eternidade? Eu ou tu? - Quanta vez, nos momentos de gozo, Sinto em mim a aflição dessa curiosidade Devorar o meu ser, como um cancro horroroso! Tu ou eu? Tu, que és linda, e que és moça, e que és boa, Ou eu, que não sou mais do que um farrapo humano? - Não sei o que me diz que irás na minha frente... Irás... E eu ficarei como uma coisa à toa, Como um cão para o qual é tudo desengano E que chora o seu dono inconsolavelmente... [8.45] CORREIA DE ARAÚJO (1883-1951) O ÓPIO DO SONHO Eu não vos seguirei nesta alpina escalada À vida. Eu fico. Adeus! Eia! avante, rapazes! É de arcos de triunfo a abóbada da Estrada Em que passam, cantando, os Fortes e os Audazes. Ide! Não vos importe a grita, o ladro, a assuada Dos maus, do Ódio e seus cães, da Inveja e seus sequazes! Adeus! Eu fico, a erguer a vista deslumbrada Às falazes visões dos meus sonhos falazes. Domai ventos, vencei procelas! Sem assombros Ante os parcéis que o Mar vos levantar em frente, Argonautas, levai vosso navio aos ombros! Ide! Eu fico, tal qual um turco ébrio e risonho, A fumar, loucamente e imoderadamente, Num canto escuso da Arte, o ópio mortal do Sonho. [8.46] AUGUSTO DOS ANJOS (1884-1913) APÓSTROFE À CARNE Quando eu pego nas carnes do meu rosto, Pressinto o fim da orgânica batalha: - Olhos que o húmus necrófago estraçalha, Diafragmas decompondo-se, ao sol posto... E o Homem - negro e heteróclito composto, Onde a alva chama psíquica trabalha, Desagrega-se e deixa na mortalha O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto! Carne, feixe de mônadas bastardas, Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas, A dardejar relampejantes brilhos, Dói-me ver, muito embora a alma te acenda, Em tua podridão a herança horrenda Que eu tenho de deixar para os meus filhos! [8.46.1] Compare-se a voz poética de Augusto com a voz espiritual a ele atribuída: HOMO II [Augusto dos Anjos, psicografado por Chico Xavier] Após a introspecção do Além da Morte, Vendo a terra que os próprios ossos come, Horrente a devorar com sede e fome Minhas carnes em lúbrico transporte, Vi que o "ego" era o alento flâmeo e forte Da luz mental que a morte não consome. Não há luta mavórtica que o dome, Ou venenada lâmina que o corte. Depois da estercorária microbiana, De que o planeta triste se engalana Nas grilhetas do Infinitesimal, Volve o Espírito ao páramo celeste, Onde a divina essência se reveste Da substância fluida, universal. EGO SUM [Augusto dos Anjos, psicografado por Chico Xavier] Eu sou quem sou. Extremamente injusto Seria, então, se não vos declarasse, Se vos mentisse, se mistificasse No anonimato, sendo eu o Augusto. Sou eu que, com intelecto de arbusto, Jamais cri, e por mais que o procurasse, Quer com Darwin, com Haeckel, com Laplace, Levantar-me do leito de Procusto. Sou eu, que a rota etérica transponho Com a rapidez fantástica do sonho, Inexprimível nas termologias, O mesmo triste e estrábico produto, Atramente a gemer a mágoa e o luto, Nas mais contrárias idiossincrasias. RAÇA ADÂMICA [Augusto dos Anjos, psicografado por Chico Xavier] A Civilização traz o gravame Da origem remotíssima dos Árias, Estirpe das escórias planetárias, Segregadas num mundo amargo e infame. Árvore genealógica de párias, Faz-se mister que o cárcere a conclame, Para a reparação e para o exame Dos seus crimes nas quedas milenárias. Foi essa raça podre de miséria Que fez nascer na carne deletéria A esperança nos Céus inesquecidos; Glorificando o Instinto e a Inteligência, Fez da Terra o brilhante gral da Ciência, Mas um mundo de deuses decaídos. ESPÍRITO [Augusto dos Anjos, psicografado por Chico Xavier] Busca a Ciência o Ser pelos ossuários, No órgão morto, impassível, atro e mudo; No labor anatômico, no estudo Do germe, em seus impulsos embrionários; Mas só encontra os vermes-funcionários No seu trabalho infame, horrendo e rudo, De consumir as podridões de tudo, Nos seus medonhos ágapes mortuários. No meio triste de cadaverinas Acha-se apenas ruína sobre ruínas, Como o bolor e o mofo sob as heras; A alma que é Vibração, Vida e Essência, Está nas luzes da sobrevivência, No transcendentalismo das esferas. CONFISSÃO [Augusto dos Anjos, psicografado por Chico Xavier] Também eu, mísero espectro das dores No escafandro das células cativas, Não encontrei a luz das forças vivas, Apesar de ingentíssimos labores. Bem distante das causas positivas, Na visão dos micróbios destruidores, Senti somente angústias e estertores, No turbilhão das sombras negativas. Foi preciso "morrer" no campo inglório, Para encontrar esse laboratório De beleza, verdade e transformismo! A Ciência sincera é grande e augusta, Mas só a Fé, na estrada eterna e justa, Tem a chave do Céu, vencendo o abismo!... ATUALIDADE [Augusto dos Anjos, psicografado por Chico Xavier] Torna Caim ao fausto do proscênio. A Civilização regressa à taba. A força primitiva menoscaba A evolução onímoda do Gênio. Trevas. Canhões. Apaga-se o milênio. A construção dos séculos desaba. Ressurge o crânio do morubixaba Na cultura da bomba de hidrogênio. Mas, acima do império amargo e exangue Do homem perdido em pântanos de sangue, Novo sol banha o pélago profundo. É Jesus que, através da tempestade, Traz ao berço da Nova Humanidade A consciência cósmica do mundo. [8.47] COSTA E SILVA (1885-1950) EGO Sou, talvez, o mais triste ser humano Que vive sob o céu ou sobre o solo, Porque possuo o espírito de Apolo Na feia catadura de Vulcano. Malgrado esta desdita e o desengano A que Amor me votou, eu me consolo Na esperança de ainda sobre um colo De Nereida dormir tranqüilo e ufano. É que, sem mesmo as correções marmóreas Que teve o deus para os cinzéis helenos, Com a sacra flama e com os pulmões de Bóreas, Hei de, em carnes polífonos, ao menos, Vencendo as glaucas vastidões equóreas, Enternecer o coração de Vênus. [8.48] BRUNO BARROSA (1886-1956) ÂNSIA INFINITA Alma! sobe, desvenda, alcança outras planuras, Quebra o grilhão fatal, quebra a maldita algema Que te prende no chão, e voa nas alturas, Embora o sol desmaie, embora a nuvem trema. Povoa a solidão das noites mais escuras... Tira da luz a crença, esta verdade extrema Que te falta e, se um deus é o que, ardente, procuras, Faze um deus que contigo as dores sinta e gema. Mas, que vejo? Voaste, asas abertas, frio O ar, a nuvem que passa e foge, a imensidade Viste e viste sem luz o espaço, ermo e vazio. Baldado é teu esforço, inútil é teu grito: És pequena demais, mesquinha humanidade, E esmaga-te a cabeça o peso do infinito. [8.49] HUMBERTO DE CAMPOS (1886-1934) DOMINGOS AFONSO MAFRENSE (Povoador do Piauí) Como os patriarcas bíblicos de antanho, Cortando a Síria, a apascentar seu gado, Penetraste o planalto sossegado, Conduzindo teu povo e teu rebanho. Pelo sertão era de paz teu brado: Doida fadiga antecedeu teu ganho: Teu arcabuz não trabalhou no amanho Desse deserto, de que foste o arado. Não foi teu sonho de esmeralda e de ouro: Tua ambição era a existência ruda, Mungindo as vacas e laçando o touro. E é por isso que, ainda hoje, a terra boa, No aboiar dos vaqueiros - te saúda, Pelo berro do gado - te abençoa! [8.50] BENI CARVALHO (1886-1959) ESSÊNCIA IMPERECÍVEL De ti, de teu casulo material Todo o eflúvio de carne embriagador Há de passar, há de fugir, tal qual Se vai, da murcha rosa, o aroma e a cor. De teu olhar o cálido fulgor, De teus lábios a música auroral, Tudo se extinguirá, quando se for De teu corpo a dinâmica vital. Não morrerás, no entanto; eterna e viva, Brilharás nos lampejos de tua alma, Que a Morte não domina, não cativa. E, então, como Virtude, hás de viver Desfeita em branda luz, na suave, e calma E espiritual essência do teu Ser! [8.51] HEITOR LIMA (1887-1945) RENÚNCIA Fugir, deixando um bem que o braço já tocava Pela incerteza atroz de uma fé que redime... Fugir para ser livre, e sentir, na alma escrava, A sujeição fatal de uma paixão sublime. Fugir, e, surdo à voz da consciência, que oprime, Opor diques de gelo a torrentes de lava, Sentindo, na renúncia, o alvoroço de um crime Que a ingratidão aumenta e a covardia agrava. Fugir, tão perto já da enseada, vendo, ao fundo, Gaivotas esvoaçando entre velas e mastros, Na glorificação triunfal do sol fecundo. Fugir do amor - fugir do céu, fugir de rastros, Sufocando um clamor que abalaria o mundo E abafando um clarão que incendiaria os astros! [8.52] AFONSO LOPES DE ALMEIDA (1888-1953) VOLTA À TERRA Abre os braços, do Céu, à minha alma, o Cruzeiro... Abre os braços de luz... Vou chegar! Vou chegar! O vento já me traz das florestas o cheiro, E é um balanço de berço o balanço do Mar... Longe como eu do ninho, é para o ver primeiro Que aquela ave levanta o vôo e sobe no ar. Volta agora este Mar das terras de Janeiro, Onde rio se fez, para as poder entrar! É meu, todo, este Céu! É meu este braseiro Em que se queima o Sol à luz crepuscular! És meu, vento de terra, amoroso e fagueiro! Na lua que desponta, olhai! vem o meu luar! E abro os braços também, como faz o Cruzeiro, A esta Lua, a este Céu, a este Vento, a este Mar! [8.53] HERMES FONTES (1888-1930) IN EXCELSIS! Glória a ti, que és perfeita, em quanto, humanamente, possa alguém atingir à perfeição moral! Glória! Ao desabrochar dessa alma redolente o incenso do meu culto, o hino do meu ritual! Glória a Ti, só a Ti, pois é em Ti, somente, ó Expressão Natural do Sobrenatural, é só em Ti que encontro a invisível semente com que, assim, frutifico em pensamento e ideal! Glória, em Ti, alma irmã! Milagre, que conferes a todos os que atrais e a mim, que repudias, a alta revelação da maravilha que és! Glória, em Ti, ao Amor! Glória, em Ti, às mulheres! A Ti, que reduziste a glória dos meus dias a degrau do teu Sólio, a escrínio dos teus pés!... [8.53.1] Compare-se a voz poética de Hermes com a voz espiritual a ele atribuída: MINHA VIDA [Hermes Fontes, psicografado por Chico Xavier] Não pude compreender o meu destino Na amargura invencível do passado, Que amortalhou meu sonho peregrino Nas trevas de um martírio irrevelado. Do sofrimento fiz o apostolado, Como fizera de minha arte um hino, Procurando o país indevassado Do ideal luminoso de Aladino. E fui de vale em vale, serra em serra, Buscando a imagem fúlgida, incorpórea, Do que chamamos - a felicidade. Mas só colhi os frutos maus da Terra, As promessas pueris da falsa glória, E o triste engano da celebridade. [8.54] RONALD DE CARVALHO (1893-1935) AVATAR Antes, a alma que tenho andou perdida. Porque mundos rolou, que mão sutil Pôs tão nobre fulgor, e estranha vida, Nesse bocado de ouro e barro vil? Decerto, árvore foi: verde jazida De ninhos, sob o céu de espuma e anil, E foi grito de horror, na ave ferida, E, na canção de amor, sonho febril! Foi desespero, sofrimento mudo, Ódio, esperança que tortura e inferna; E, depois de exsurgir, triste, de tudo, Veio para chorar dentro em meu ser, A amarga maldição de ser eterna, E a dor de renascer, quando eu morrer! [8.55] RAUL DE LEONI (1895-1926) DESCONFIANDO Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo, Atento tu me escutas quando falo; Bem antes que te exponha o meu desejo Já pronto estás correndo a executá-lo. Achas em tudo um venturoso ensejo De servir-me de servo e de vassalo; Perdoa-me a verdade num gracejo. Serias, se eu quisesse, o meu cavalo... Mas não penses que estólido eu te creia Como um Patroclo abnegado, não: De todos os excessos se receia... O certo é que, em rancor, por dentro estalas; Odeias-me, que eu sei, mas, histrião, Beijas-me as mãos por não poder cortá-las... [8.55.1] O soneto acima foi por mim glosado como segue: SONETO MANCOMUNADO [Glauco Mattoso] Te beijo as mãos por não poder cortá-las e os pés por não poder pisar-te a face. Odeio-te, mas brinco que te amasse a ponto de inalar o odor que exalas. Bem sei que habitarei tuas senzalas porque não tens quem mais se dedicasse a teu prazer: ninguém que assim abrace, de bruços, tuas botas que mais ralas! Por dentro, me revolto quando as lambo; por fora me sorris, me crês submisso; te fazes de mandão; eu, de molambo. Se queres, serei teu cavalariço, cavalo, até! Serás meu Thor, meu Rambo, meu Átila! Porém sem compromisso! [8.55.2] Compare-se a voz poética de Leoni com a voz espiritual a ele atribuída: NA TERRA [Raul de Leoni, psicografado por Chico Xavier] Renascendo no mundo da Quimera, Ao colhermos a flor da juventude, É quando o nosso Espírito se ilude, Julgando-se na eterna primavera. Mas o tempo na sua mansuetude, Pelas sendas da vida nos espera, Junto à dor que esclarece e regenera, Dentro da expiação estranha e rude. E ao tombarmos no ocaso da existência, Nós revemos do livro da consciência Os caracteres grandes, luminosos!... Se vivemos no mal, quanta agonia! Mas se o bem praticamos todo o dia, Como somos felizes, venturosos!... POST MORTEM [Raul de Leoni, psicografado por Chico Xavier] Depois da morte, tudo aqui subsiste, Neste Além que sonhamos, que entrevemos, Quando a nossa alma chora nos extremos Dessa dor que no mundo nos assiste. Doce consolação, porém, existe Aos amargosos prantos que vertemos, Do conforto celeste os bens supremos Ao coração desalentado e triste. Também existe aqui a austera pena À consciência infeliz que se condena, Por qualquer erro ou falta cometida; E a Morte continua eliminando A influência do mal, torvo e nefando, Para que brilhe a Perfeição da Vida. [8.56] ALCEU WAMOSY (1895-1923) DUAS ALMAS Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada, entra, e, sob este teto encontrarás carinho: Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho, vives sozinha sempre, e nunca foste amada... A neve anda a branquear, lividamente, a estrada, e a minha alcova tem a tepidez de um ninho. Entra, ao menos até que as curvas do caminho se banhem no esplendor nascente da alvorada. E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa, essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua, podes partir de novo, ó nômade formosa! Já não serei tão só, nem irás tão sozinha: Há de ficar comigo uma saudade tua... Hás de levar contigo uma saudade minha... [8.57] AUTA DE SOUSA (1876-1901) NUM LEQUE Na gaze loura deste leque adeja Não sei que aroma místico e encantado... Doce morena! Abençoado seja O doce aroma de teu leque amado Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja, O templo inteiro fica embalsamado... Até minh'alma carinhosa o beija, Como a toalha de um altar sagrado. E enquanto o aroma inebriante voa, Unido aos hinos que, no coro, entoa A voz de um órgão soluçando dores, Só me parece que o choroso canto Sobe da gaze de teu leque santo, Cheio de luz e de perfume e flores! [8.57.1] Compare-se a voz poética de Auta com a voz espiritual a ela atribuída: HORA EXTREMA [Auta de Sousa, psicografada por Chico Xavier] Quando exalei meus últimos alentos Nesse mundo de mágoas e de dores, Senti meu ser fugindo aos amargores Dos meus dias tristonhos, nevoentos. A tortura dos últimos momentos Era o fim dos meus sonhos promissores, Do meu viver sem luz, sem paz, sem flores, Que se extinguia em atros sofrimentos. Senti, porém, minhalma sofredora Mergulhada nas brisas de uma aurora, Sem as sombras da dor e da agonia... Então parti, serena e jubilosa, Em demanda da estrada esplendorosa Que nos conduz às plagas da harmonia! ADEUS [Auta de Sousa, psicografada por Chico Xavier] O sino plange em terna suavidade, No ambiente balsâmico da igreja; Entre as naves, no altar, em tudo adeja O perfume dos goivos da saudade. Geme a viuvez, lamenta-se a orfandade; E a alma que regressou do exílio beija A luz que resplandece, que viceja, Na catedral azul da imensidade. "Adeus, Terra das minhas desventuras... Adeus, amados meus..." - diz nas alturas A alma liberta, o azul do céu singrando... - Adeus... - choram as rosas desfolhadas, - Adeus... - clamam as vozes desoladas De quem ficou no exílio soluçando... [8.58] MARTINS FONTES (1884-1937) ESCANDALOSIDADE DISCRETÍSSIMA Penetrei no teu quarto, sorrateiro. Entreabri do teu leito o cortinado. Invejei, morno e fofo, o travesseiro Em que teu sono dormes, perfumado. Delicadezas vi do teu apeiro De prata. E, entre cem jóias, perturbado, Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro, Como um ávido amante alucinado. E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo, A fronte, a face, o cálice vermelho Da boca em flor, os cílios de veludo... E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho, E alfim beijei, enternecido e mudo, O lugar dos teus pés no teu espelho. [8.59] MANUEL BANDEIRA (1886-1968) A CÓPULA Depois de lhe beijar meticulosamente O cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce O moço exibe à moça a bagagem que trouxe: Culhões e membro, um membro enorme e turgescente. Ela toma-o na boca e morde-o, incontinenti Não pode ele conter-se e, de um jato, esporrou-se Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alterou-se E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente Que vai morrer: "Eu morro! ai, não queres que eu morra?!" Grita para o rapaz, que aceso como um Diabo, Arde em cio e tesão na amorosa gangorra. E titilando-a nos mamilos e no rabo (Que depois irá ter sua ração de porra) Lhe enfia cono a dentro o mangalho até o cabo. [8.59.1] Também no sonetilho vale notar a versatilidade de Bandeira, como neste exemplo octossílabo: O PALACETE DOS AMORES Um dia destes a saudade (Saudade, a mais triste das flores) Me deu da minha mocidade No Palacete dos Amores. O Palacete dos Amores. Criação que a força de vontade Do velho Gomes, em verdade, Atestava. Linhas e cores. Compunham quadro de um sainete Tal, que os amores eram mato Nos três pisos do palacete. Mato, não - jardim: por maiores Que fossem, sempre houve recato No Palacete dos Amores. [8.60] GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969) SILÊNCIO Silêncio - voz do amor, voz da alma, voz das cousas, suave senhor dos céus, dos claustros e das grutas; quebra-te o encanto o vôo, em trêmulas volutas, do bando singular das lentas mariposas! Silêncio - alma da dor de pálpebras enxutas; reino branco da paz, dos círios e das lousas; quando me calo, és tu, só tu, Silêncio, que ousas falar-me, e quando falo, és só tu que me escutas! Irmão gêmeo da morte, ó mística linguagem com que se fala a Deus! Meu coração selvagem segreda-te a impressão que à flor da alma resvala: e tu lhe fazes, mudo, a confidência triste que te faz a mudez de tudo quanto existe, porque és, Silêncio, a voz de tudo o que não fala! [8.61] JORGE DE LIMA (1893-1953) PAIXÃO E ARTE Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso... O Verso é a Arte do Verbo - o ritmo do som... Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso E a Música o modula em gradações de tom... Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon... Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso: Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom... Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala Dum amor inocente, (o mais alto destino): A Paixão de Jesus, o perdão a Madala. Homem, faze do Verso o teu culto pagão E canta a tua Dor e talha o alexandrino A quem te acostumou a ter Arte e Paixão. [8.62] GILKA MACHADO (1893-1980) NONA REFLEXÃO Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o uma vez, outra vez (sonhos insanos!)... e desespero haja maior não creio que o da esperança dos primeiros anos. Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio do meu silêncio, aquém de olhos profanos, carícias virgens, para quem não veio e não virá saber dos meus arcanos. Desilusão tristíssima, de cada momento, infausta e imerecida sorte de ansiar o Amor e nunca ser amada! Meu beijo intenso e meu abraço forte, com que pesar penetrareis o Nada, levando tanta vida para a Morte!... [8.63] JUDAS ISGOROGOTA (1898-1979) RECIBO Recebi do Doutor Fernandes Lima, Governador perpétuo de Alagoas, Pela graça de Deus, das almas boas Que a rota seguem dos que estão de cima, A importância mencionada acima De duzentos mil réis, por que as pessoas Das urbes, dos sertões e das lagoas Vendem seu voto de entranhada estima; E por cuja quantia me sujeito A votar no Doutor; e, em testemunho, Passo o presente, por José do Coito, Em duplicata para um só efeito. Maceió, Jaraguá, doze de junho De mil e novecentos e dezoito. [8.64] DANTE MILANO (1899-1991) O AMOR DE AGORA O amor de agora é o mesmo amor de outrora Em que concentro o espírito abstraído, Um sentimento que não tem sentido, Uma parte de mim que se evapora. Amor que me alimenta e me devora, E este pressentimento indefinido Que me causa a impressão de andar perdido Em busca de outrem pela vida afora. Assim percorro uma existência incerta Como quem sonha, noutro mundo acorda, E em sua treva um ser de luz desperta. E sinto, como o céu visto do inferno, Na vida que contenho mas transborda, Qualquer coisa de agora mas de eterno. [8.65] CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987) LEGADO Que lembrança darei ao país que me deu tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu minha incerta medalha, e a meu nome se ri. E mereço esperar mais do que os outros, eu? Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, a vagar, taciturno, entre o talvez e o se. Não deixarei de mim nenhum canto radioso, uma voz matinal palpitando na bruma e que arranque de alguém seu mais secreto espinho. De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restará, pois o resto se esfuma, uma pedra que havia em meio do caminho. [8.65.1] Também no sonetilho vale notar a versatilidade drummondiana, como neste exemplo em heróico quebrado: SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA Onde nasci, morri. Onde morri, existo. E das peles que visto muitas há que não vi. Sem mim como sem ti posso durar. Desisto de tudo quanto é misto e que odiei ou senti. Nem Fausto nem Mefisto, à deusa que se ri deste nosso oaristo, eis-me a dizer: assisto além, nenhum, aqui, mas não sou eu, nem isto. [8.66] MÁRIO QUINTANA (1906-1994) PARA ÉRICO VERÍSSIMO O dia abriu seu pára-sol bordado De nuvens e de verde ramaria. E estava até um fumo, que subia, Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado. Depois surgiu, no céu azul arqueado, A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia. Na rua, um menininho que seguia Parou, ficou a olhá-la admirado... Pus meus sapatos na janela alta, Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta Pra suportarem a existência rude! E eles sonham, imóveis, deslumbrados, Que são dois velhos barcos, encalhados Sobre a margem tranqüila de um açude... [8.67] VINÍCIUS DE MORAIS (1913-1980) O ANJO DAS PERNAS TORTAS A um passe de Didi, Garrincha avança Colado o couro aos pés, o olhar atento Dribla um, dribla dois, depois descansa Como a medir o lance do momento. Vem-lhe o pressentimento; ele se lança Mais rápido que o próprio pensamento Dribla mais um, mais dois; a bola trança Feliz, entre seus pés - um pé-de-vento! Num só transporte a multidão contrita Em ato de morte se levanta e grita Seu uníssono canto de esperança. Garrincha, o anjo, escuta e atende: - Goooool! É pura imagem: um G que chuta um o Dentro da meta, um l. É pura dança! [8.67.1] Também no sonetilho vale notar a versatilidade do Poetinha, como neste exemplo em tetrassílabos: A PÊRA Como de cera E por acaso Fria no vaso A entardecer A pêra é um pomo Em holocausto À vida, como Um seio exausto Entre bananas Supervenientes E maçãs lhanas Rubras, contentes A pobre pêra: Quem manda ser a? [8.68] J. G. DE ARAÚJO JORGE (1914-1987) POR QUE FALAR DE AMOR? Sonhei fazer-te minha só: - rainha! Quiseste ser apenas cortesã. E o desejo a crescer, - planta daninha - foi tornando este amor sem amanhã. Para mim, não bastava seres minha; quis no céu, pôr a estrela da manhã, e acabei por moldar-me ao que convinha a essa tua paixão de terra chã. Se não deste valor ao coração, mas aos sentidos, em que se consomem restos de um erotismo em combustão, por que falar de amor? Foste lograda: tu não tens aos teus pés o amor de um homem, tens um fauno de rastros... e mais nada! [8.69] ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO (1918-2008) SONETO DA MORTE Entre pilares podres e pilastras fendidas, te revi subitamente; eras a mesma sombra em que te alastras, feita carícias de uma face ausente. Eras, e me afligias. Tormentosa, vi-te crescer nos muros desabados. Cruel, cruel; contudo, mais saudosa, mais sensível que os céus e os descampados. Bolor, pátina espessa, calmaria, vi-te a sofrer no fundo da cidade como um grande soluço percutindo sobre os olhos, as mãos e a boca fria. E de repente um grito de saudade. Depois a chuva, sem cessar, caindo. [8.70] PAULO MENDES CAMPOS (1922-1991) NESTE SONETO Neste soneto, meu amor, eu digo, Um pouco à moda de Tomás Gonzaga, Que muita coisa bela o verso indaga Mas poucos belos versos eu consigo. Igual à fonte escassa no deserto, Minha emoção é muita, a forma, pouca. Se o verso errado sempre vem-me à boca, Só no meu peito vive o verso certo. Ouço uma voz soprar à frase dura Umas palavras brandas, entretanto, Não sei caber as falas de meu canto Dentro da forma fácil e segura. E louvo aqui aqueles grandes mestres Das emoções do céu e das terrestres. [8.71] STELLA LEONARDOS (1923) NAVEGAR É PRECISO (para Gilberto Mendonça Teles) Revejo "a grande terra que contina vai de Calisto ao seu contrário polo." Na meta de meus antes ilumina mais que o metal da "cor do louro Apolo". Reluz o verde meu - almada mina - e um ver de novo sol me alumbra o solo. Na voz que inovo há nau de alma cristina e novas ondas e ondes onde rolo. Renasço e morro da saudade aquela que crucifica lusos mas que é luz. Me alço no alvor da viagem de alta vela timbrada pelo rubro de árdua cruz. Adeus, avós! Entregue a caravela a Deus, de novo ruma a Santa Cruz. [8.72] GEIR CAMPOS (1924-1999) SONETO FABRIL Parques, sim, mas parques industriais: neles é que passeia o nosso amor em bairros pouco residenciais onde ronrona a máquina a vapor. Das chaminés das fábricas saem mais nuvens (claras, escuras) de vapor e de fumaça, com a cor das quais o azul do céu muda-se noutra cor. Pairando entre esse céu assim mudado e a terra onde prossegue a mesma a vida com seu esquema aceito mas errado retém-se o nosso olhar em bagatelas - que de pequenas coisas é tecida a glória de viver e achá-las belas. [8.73] CARLOS PENA FILHO (1929-1960) SONETO DO DESMANTELO AZUL Então, pintei de azul os meus sapatos por não poder de azul pintar as ruas, depois, vesti meus gestos insensatos e colori as minhas mãos e as tuas. Para extinguir em nós o azul ausente e aprisionar no azul as coisas gratas, enfim, nós derramamos simplesmente azul sobre os vestidos e as gravatas. E afogados em nós, nem nos lembramos que no excesso que havia em nosso espaço pudesse haver de azul também cansaço. E perdidos de azul nos contemplamos e vimos que entre nós nascia um sul vertiginosamente azul. Azul. [8.74] IVAN JUNQUEIRA (1934) ESSE PUNHADO DE OSSOS (a Moacyr Félix) Esse punhado de ossos que, na areia, alveja e estala à luz do sol a pino moveu-se outrora, esguio e bailarino, como se move o sangue numa veia. Moveu-se em vão, talvez, porque o destino lhe foi hostil e, astuto, em sua teia bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia o que havia de raro e de mais fino. Foram damas tais ossos, foram reis, e príncipes e bispos e donzelas, mas de todos a morte apenas fez a tábua rasa do asco e das mazelas. E ali, na areia anônima, eles moram. Ninguém os escuta. Os ossos não choram. [8.75] RUY ESPINHEIRA FILHO (1942) SONETO DO CORPO Corpo de sol e mar, não me pertences. Não me pertences - e, no entanto, em mim ondeias e marulhas num sem fim de amavio. E cintilas, e me vences, e me submetes - eu, o siderado a teus pés. Eu, o pobre. Eu, o esquecido. Eu, o último. O morto - e o renascido! Tudo por teu poder, ó iluminado corpo de brisa e pólen, ventania e pedra! Harmônico e contraditório e presente e alheio, flama e pena. Feito de vida, enfim: desta alegria. Em si. Porém, em mim, campo ilusório em que a memória pasce - e me envenena. [8.76] ANTÔNIO CÍCERO (1945) DITA Qualquer poema bom provém do amor narcíseo. Sei bem do que estou falando e os faço eu mesmo, pondo à orelha a flor da pele das palavras, mesmo quando assino os heterônimos famosos: Catulo, Caetano, Safo ou Fernando. Falo por todos. Somos fabulosos por sermos enquanto nos desejando. Beijando o espelho d'água da linguagem, jamais tivemos mesmo outra mensagem, jamais adivinhando se a arte imita a vida ou se a incita ou se é bobagem: desejarmo-nos é a nossa desdita, pedindo-nos demais que seja dita. [8.77] ANTÔNIO CARLOS SECCHIN (1952) "ESTOU ALI..." (a Alberto da Costa e Silva) Estou ali, quem sabe eu seja apenas a foto de um garoto que morreu. No espaço entre o sorriso e o sapato há um corpo que bem pode ser o meu. Ou talvez seja eu o seu espelho, e olhar reflete em mim algum passado: o cheiro das goiabas na fruteira, o murmúrio das águas no telhado. No retrato outra imagem se condensa: percebo que apesar de quase gêmeos nós dois somos somente a chama inútil contra a sombra da noite que nos trai. Das mãos dele recolho o que me resta. Eu o chamo de filho - e é meu pai. [8.78] ALEXEI BUENO (1963) SE NUNCA A UM CEGO Se nunca a um cego nato alguém falasse As palavras cegueira, ou vista, ou cor, E do mundo a feição falsificasse De um modo em que normal fosse o negror, E das artes do ser só lhe ensinasse As que as trevas têm forças de compor, De forma que o universo aparentasse Ser lógico no escuro esmagador, Este cego, educado em outra História Sem pintores, sem astros e sem glória, Forjada em mãos e sons, mesquinha, aqui, Um dia, a colher ervas, preso à estrada, Sentiria em seus olhos mais que o nada, E o horror de algo que falta. Igual a ti. [8.79] DOUGLAS DIEGUES (1965) SONETO FRONTERIZO #4 el ser-humano racional es un bicho muy complicado le gusta enrabar o ser enrabado milenariamente tarado segun Dostoiévski no descobriu que es bueno por eso sigue tan malvado el negócio es fazer lo que se pode se dexan bocê toma conta por eso bocê molesta esa gente tonta que diz que melhor que todos fode o pueblo está hambriento y marginalizado cada um entende la coisa de um jeito hasta que se prove lo contrário todos son suspeitos mañana puede ser você el novo asesinado el ser-humano racional es un bicho muito loco un dia vá a aprender a amar sin exigir recebimento del troco [8.80] FLORBELA DE ITAMAMBUCA (pseudônimo de Lucas Carrasco, 1979) SONETO CAIÇARA o amor não tem idade sempre nasce faz tempo o meu primeiro caiçara foi flechada de boto encanto de iara desses conto que a areia da índia tece sentava atrás de mim na mesma classe depois a gente ia em sua igara olhar o sol sumir nas águas clara e as onda balançava o nosso enlace daí entrei na cheia da desova sei que ninguém é pobre quando ama mas pra pescar pensão faltava prova hoje eu recusaria a dinheirama criei ibiraçu co'a lua nova conheço os fio da palha que a água trama
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