Poemas de Ruy Proença

 

A GALINHA




a galinha tem pavor ao mar
e mal sabe dar braçadas no ar

a galinha tem garras pontiagudas
para plantar-se no chão
e desejar-se raiz

a galinha cisca o terreiro
e a cal do muro

e mal distingue a quirera do sol
que se levantou no passado
e migra para o escuro

ciosa do ovo perfeito
pois nele guarda o futuro
estende sua teia de nervos
e estaca como um pára-raios

choca como uma árvore
dia e noite
para ver maduro seu fruto

e quando um pé-de-vento
põe a poeira em remoinho

lá está ela
comandante louca
de olhos esbugalhados
ancorados no seco da tempestade





O HOMEM-CARACOL




O homem-caracol
caminha pela parede do viaduto.

Sua casa invisível
guarda parcos pertences.

Aonde vai
arrasta a amnésia entre os badulaques.

Sonhos de alguma infância
cimentaram-se-lhe nos olhos.

Sua dignidade é o osso — 
sua casa.

As pombas o frio
no caminho

são sua gente.
Amor? Gesto cariado

dor
que pratica em público.

É um dos poucos homens públicos
que Deus perdoa.

Se não me engano
já o teremos visto

rebarbativo —  na parede de casa
num fim de tarde.





NOVA ORDEM




o ciclone
tenta arrancar pelos cabelos
a vegetação terrestre

os terroristas estão dormindo
há mais de 24 horas

bois nasceram com guelras
na Nova Caledônia

(voltará a primavera
voltarão as aves
as ovelhas perderão o pelame)

o relâmpago
estilhaça a abóbada celeste

a faca 
talha a melancia
pelo abdômen

nada
tem piedade 
de nada

(voltará a primavera
voltarão as aves
as ovelhas perderão o pelame

sim, o dia renascerá

mas já preparado
para outro envelhecimento precoce)





VARANDA




a poesia envenenou-me
já não há mais tempo


a lua investirá com seus chifres
e as cebolas no escuro despertarão
o olho do coração


da cadeira
de balanço
a Paciência contempla a penugem dourada das horas
enquanto um gato dorme
sobre sua cabeça


uma tempestade de diamantes
arremessará suas flechas
sobre o Estreito de Magalhães


exatamente assim
passará um milênio





LUGARES




há lugares na alma
tão escuros
que até os cegos
podem contar as estrelas
cadentes


contar as estrelas
e fazer muitos desejos
tantos quantos cabem na alma
de um cego


há praias na alma
tão escuras
que até os videntes
pensam que é céu


cada grão de mica encerra
uma estrela que caiu
de modo que o mundo
da alma
parece não ter pé nem cabeça



	* * *



o cheiro da mexerica
não é o cheiro da morte

a casca rasgada no canto do prato
é o mapa de Guadalamaxica

o gomo atravessado nos dentes, como onda na areia,
infiltra o beijo úmido, por séculos tão esperado

chupa longamente o sumo da tangerina!
contra o gemido do prazer não há vacina

a vida toda é uma muiraquitã
o tempo em que se mordisca a carne da poncã

tudo é cegueira, nada mais se nota
quando se come a fundo a bergamota

o cheiro
não é o cheiro da morte

a chama laranja do amor
cresce por dentro da boca

depois, pode-se ler o rascunho do fogo:
cascas, bagaços, sementes e a excêntrica flor felicidade

 

poemas gentilmente enviados pelo autor

Ruy Proença?

Leia uma entrevista com o poeta em Balacobaco

Copyright © 1999 by Ruy Proença.

 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes