William Shakespeare (1564 - 1616) - this page is dedicated to Muriel Ebert

 

A POESIA DE WILLIAM SHAKESPEARE

Jorge Luís Borges
Trad. Diego Raphael

Em 1609 apareceu seu único livro íntimo, que consta de cento e cinqüenta e quatro sonetos e do poema intitulado A Lover's Complaint (Queixas de uma Amante). O impessoal frontispício sugere que outro, não Shakespeare, foi o editor. Lemos assim: Sonetos de Shakespeare, nunca antes impressos. A obra está dedicada ao senhor W.H., único criador (literalmente engendrador) dos seguintes sonetos. (...)
Essas incertezas, que têm inspirado as mais variadas hipóteses, entre elas uma de Oscar Wilde, sugerem o suplício de Tântalo, condenado, segundo se sabe, a morrer eternamente de fome e de sede, entre fontes e frutas. Felizmente, essa analogia é de todo falsa. O espetáculo das águas e das frutas não podia satisfazer o apetite de Tântalo: o leitor pode prescindir do incerto sentido dos sonetos, e deleitar-se com sua música e suas imagens.
Citemos este exemplo:

Music to hear, why hear'st thou music sadly? 
Sweet with sweets war not, joy delights in joy. 

( Música a ouvir, por que escutas tristemente? 
A doçura com a doçura se une, a alegria com a alegria) 

O sentido é fútil; a forma é esplêndida. Busquemos outro:
Not mine own fears, nor the prophetic soul 
Of the wide world dreaming on things to come 

(Nem meus temores, nem a alma profética
Do vasto mundo sonhando com o que virá)

Nossa fé na alma, nosso juízo, favorável ou desfavorável, do panteísmo, nada, absolutamente nada tem a ver com a vasta e vaga majestade das linhas citadas.
Transcrevamos outra passagem, que não me atrevo a traduzir:
No, Time, thou shalt no boast that I do change! 
Thy pyramids built up with newer might 
To me are nothing novel, nothing strange; 
They are but dressings of a former sight.

( Não, Tempo, não zombarás de minhas mudanças! 
As pirâmides que novamente construíste
Não me parecem novas, nem estranhas; 
Apenas as mesmas com novas vestimentas.)

Se adverte nestes versos uma alusão à doutrina do tempo circular, que professaram os pitagóricos e os estóicos e que Santo Agostinho refutou. Também pode advertir-se que Shakespeare descria de novidades.
Tecnicamente os sonetos de Shakespeare são, é indiscutível, inferiores aos de Milton, aos de Wordsworth, aos de Rossetti ou aos de Swinburne. Incidem em alegorias momentâneas, que só a rima justifica, e em engenhosidades nada engenhosas. Há, não obstante, uma diferença que não devo calar. Um soneto de Rossetti, digamos, é uma estrutura verbal, um belo objeto de palavras construído pelo poeta e que se interpõe entre ele e nós; os sonetos de Shakespeare são confidências que nunca acabaremos de decifrar, pois sentimos imediatas e necessárias.

Buenos Aires, treze de dezembro de 1980.

(excertos da introdução aos 48 Sonetos, traduzidos para o castelhano por Manuel Mújica Lainez)

 


SONNET XVI



But wherefore do not you a mightier way
Make war upon this bloody tyrant, Time?
And fortify yourself in your decay
With means more blessed than my barren rhyme?
Now stand you on the top of happy hours,
And many maiden gardens yet unset
With virtuous wish would bear your living flowers,
Much liker than your painted counterfeit:
So should the lines of life that life repair,
Which this, Time's pencil, or my pupil pen,
Neither in inward worth nor outward fair,
Can make you live yourself in eyes of men.
	To give away yourself keeps yourself still,
	And you must live, drawn by your own sweet skill.

 

SONETO XVI


Por que não usas meio mais viril 
Ao guerrear o Tempo, o sanguinário? 
E à tua decadência, mais que o vil
Poema, não provocas danos vários? 
Agora estás vivendo os teus amores 
E diversos jardins, ainda intactos, 
Germinariam tuas ricas flores, 
Mais sinceras que teu próprio retrato. 
Vê como então o herdeiro te repara, 
Pois o pincel do Tempo ou minha pena 
Teu mais alto valor e feição rara 
Aos homens não provocam melhor cena. 
	E se ao mundo te dás, tua beleza
	Assim persistirá por tal destreza.
	
		trad. Diego Raphael

 

SONNET XXXVIII



How can my Muse want subject to invent,
While thou dost breathe, that pour'st into my verse
Thine own sweet argument, too excellent
For every vulgar paper to rehearse?
O, give thyself the thanks, if aught in me
Worthy perusal stand against thy sight;
For who's so dumb that cannot write to thee,
When thou thyself dost give invention light?
Be thou the tenth Muse, ten times more in worth
Than those old nine which rhymers invocate;
And he that calls on thee, let him bring forth
Eternal numbers to outlive long date.
	If my slight Muse do please these curious days,
	The pain be mine, but thine shall be the praise.

 

SONETO XXXVIII


Como pode querer tema minha Musa, 
Se vives e ao meu verso estás doando 
Teu próprio tema sem que reproduza
Algum papel vulgar tal brilho brando? 
Oh! louva-te a ti mesmo, se algo em mim
Achares de valor com olhar honrado; 
Pois quem tão vil será que não, enfim,  
Fala de ti, se és luz de todo achado? 
Sê então a Musa dez, que vale dez 
Vezes do rimador as nove herdades, 
E àquele que te invoca deixa a vez 
P'ra que seu verso dure à eternidade. 
	Se a minha Musa vale por memória, 
	É meu o esforço, mas é tua a glória.	

		trad. Diego Raphael

 

SONNET XLVII



Betwixt mine eye and heart a league is took,
And each doth good turns now unto the other.
When that mine eye is famish'd for a look,
Or heart in love with sighs himself doth smother,
With my love's picture then my eye doth feast
And to the painted banquet bids my heart.
Another time mine eye is my heart's guest,
And in his thoughts of love doth share a part.
So, either by thy picture or my love,
Thyself away [art] present still with me;
For thou [no] farther than my thoughts canst move,
And I am still with them, and they with thee.
	Or, if they sleep, thy picture in my sight
	Awakes my heart to heart's and eye's delight.

 

SONETO XLVII



Entre olho e coração um pacto distinto,
Bem servir um ao outro deve agora.
Quando para ver-te o olho está faminto,
Ou a suspirar de amor o coração se afoga,
O olhar desfruta o retrato de meu amor,
E o coração ao banquete figurado
Convida. De outra vez, ao imaginado amor
O olhar a tomar parte é convidado.
Assim, por meu amor ou tua imagem,
És sempre presente ainda que distante,
Pois não podes do pensar ir mais além
Se estou com ele em ti a todo instante.
	Se adormecem, tua imagem na minha visão
	Desperta ao deleite vista e coração.	

		trad. Elson Fróes
	(in DIMENSÃO nº 24, Brasil, 1995, pag. 118.)

 

SONNET LXV



Since brass, nor stone, nor earth, nor boundless sea,
But sad mortality o'er-sways their power,
How with this rage shall beauty hold a plea,
Whose action is no stronger than a flower?
O, how shall summer's honey breath hold out
Against the wreckful siege of battering days,
When rocks impregnable are not so stout,
Nor gates of steel so strong, but Time decays?
O fearful meditation! where, alack,
Shall Time's best jewel from Time's chest lie hid?
Or what strong hand can hold his swift foot back?
Or who his spoil of beauty can forbid?
	O, none, unless this miracle have might,
	That in black ink my love may still shine bright.

 

SONETO LXV


Se a morte predomina na bravura
Do bronze, pedra, terra e imenso mar,
Pode sobreviver a formosura, 
Tendo da flor a força a devastar? 
Como pode o aroma do verão
Deter o forte assédio destes dias, 
Se portas de aço e duras rochas não
Podem vencer do Tempo a tirania? 
Onde ocultar - meditação atroz -
O ouro que o Tempo quer em sua arca? 
Que mão pode deter seu pé veloz, 
Ou que beleza o Tempo não demarca?  
	Nenhuma! A menos que este meu amor
	Em negra tinta guarde o seu fulgor.

		trad. Diego Raphael 

 

SONNET LXX



That thou art blamed shall not be thy defect,
For slander's mark was ever yet the fair;
The ornament of beauty is suspect,
A crow that flies in heaven's sweetest air.
So thou be good, slander doth but approve
Thy worth the greater, being woo'd of time;
For canker vice the sweetest buds doth love,
And thou present'st a pure unstained prime.
Thou hast pass'd by the ambush of young days,
Either not assail'd or victor being charged;
Yet this thy praise cannot be so thy praise,
To tie up envy evermore enlarged:
	If some suspect of ill mask'd not thy show,
	Then thou alone kingdoms of hearts shouldst owe.

 

SONETO LXX


Se te censuram, não é teu defeito, 
Porque a injúria os mais belos pretende; 
Da graça o ornamento é vão, suspeito, 
Corvo a sujar o céu que mais esplende. 
Enquanto fores bom, a injúria prova 
Que tens valor, que o tempo te venera,
Pois o Verme na flor gozo renova, 
E em ti irrompe a mais pura primavera. 
Da infância os maus tempos pular soubeste, 
Vencendo o assalto ou do assalto distante; 
Mas não penses achar vantagem neste
Fado, que a inveja alarga, é incessante.
	Se a ti nada demanda de suspeita,
	És reino a que o coração se sujeita.

		trad. Diego Raphael 

 

SONNET LXXXVIII



When thou shalt be disposed to set me light, 
And place my merit in the eye of scorn,
Upon thy side against myself I'll fight,
And prove thee virtuous, though thou art forsworn.
With mine own weakness being best acquainted,
Upon thy part I can set down a story
Of faults conceal'd, wherein I am attainted,
That thou in losing me shalt win much glory:
And I by this will be a gainer too;
For bending all my loving thoughts on thee,
The injuries that to myself I do,
Doing thee vantage, double-vantage me.
	Such is my love, to thee I so belong,
	That for thy right myself will bear all wrong.

 

SONETO LXXXVIII


Quando me tratas mau e, desprezado, 
Sinto que o meu valor vês com desdém, 
Lutando contra mim, fico a teu lado 
E, inda perjuro, provo que és um bem. 
Conhecendo melhor meus próprios erros, 
A te apoiar te ponho a par da história 
De ocultas faltas, onde estou enfermo; 
Então, ao me perder, tens toda a glória. 
Mas lucro também tiro desse ofício: 
Curvando sobre ti amor tamanho, 
Mal que me faço me traz benefício, 
Pois o que ganhas duas vezes ganho. 
	Assim é o meu amor e a ti o reporto: 
	Por ti todas as culpas eu suporto.

		trad. Diego Raphael 

 

SONNET CV



Let not my love be call'd idolatry,
Nor my beloved as an idol show,
Since all alike my songs and praises be
To one, of one, still such, and ever so.
Kind is my love to-day, to-morrow kind,
Still constant in a wondrous excellence;
Therefore my verse to constancy confined,
One thing expressing, leaves out difference.
'Fair, kind and true' is all my argument,
'Fair, kind, and true' varying to other words;
And in this change is my invention spent,
Three themes in one, which wondrous scope affords.
	'Fair, kind, and true,' have often lived alone,
	Which three till now never kept seat in one.

 

SONETO CV


Não chame o meu amor de Idolatria 
Nem de Ídolo realce a quem eu amo, 
Pois todo o meu cantar a um só se alia,
E de uma só maneira eu o proclamo. 
É hoje e sempre o meu amor galante, 
Inalterável, em grande excelência; 
Por isso a minha rima é tão constante
A uma só coisa e exclui a diferença. 
'Beleza, Bem, Verdade', eis o que exprimo; 
'Beleza, Bem, Verdade', todo o acento; 
E em tal mudança está tudo o que primo, 
Em um, três temas, de amplo movimento. 
	'Beleza, Bem, Verdade' sós, outrora; 
	Num mesmo ser vivem juntos agora.
		trad. Diego Raphael 

 

SONNET CXLIX



Canst thou, O cruel! say I love thee not,
When I against myself with thee partake?
Do I not think on thee, when I forgot
Am of myself, all tyrant, for thy sake?
Who hateth thee that I do call my friend?
On whom frown'st thou that I do fawn upon?
Nay, if thou lour'st on me, do I not spend
Revenge upon myself with present moan?
What merit do I in myself respect,
That is so proud thy service to despise,
When all my best doth worship thy defect,
Commanded by the motion of thine eyes?
	But, love, hate on, for now I know thy mind;
	Those that can see thou lovest, and I am blind.

 

SONETO CXLIX


Se contra mim mesmo a ti me encareço, 
Como podes dizer que não te esmero? 
Não penso em ti quando de mim me esqueço 
E em teu tirano amor não me encarcero? 
De amigo aquele que te odeia chamo? 
Trato com afago a quem tu bem não vês? 
E inda: se a mim és má não me proclamo
Em dor e não desdenho o meu prazer? 
Que valor posso achar em minha estima
Que me leve a zombar de teu serviço, 
Se ao teu defeito o meu melhor se inclina
E escravo sou de teus olhos, teu viço? 
	Odeia, amor, que assim o que és me aclara;
	Sou cego e aos que te vêem te declaras.

		trad. Diego Raphael 

 


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