|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Guilherme de Andrade e Almeida (Campinas SP 1890-1969)

O modernista que (como muitos correligionários) cometera sonetos e voltara ao local do crime, era tão perfeito (no dizer de Bandeira, o mais que perfeito) que escolheu ninguém menos que Camões para revisitar, e o fez com tal perícia, pertinência e pertinácia, que chego a duvidar que Camões fosse capaz de compor "Os Paulíadas" como Guilherme seria. Se o perfeito o é no todo, também o será na parte, por incompleta e imperfeita que seja. Segue, portanto, uma parcial perfeição:


NÓS, I

O pequenino livro, em que me atrevo
a mudar numa trêmula cantiga
todo o nosso romance, ó minha amiga,
será, mais tarde, nosso eterno enlevo.

Tudo o que fui, tudo o que foste eu devo
dizer-te: e tu consentirás que o diga,
que te relembre a nossa vida antiga,
nos dolorosos versos que te escrevo.

Quando, velhos e tristes, na memória
rebuscarmos a triste e velha história
dos nossos pobres corações defuntos,

que estes versos, nas horas de saudade,
prolonguem numa doce eternidade
os poucos meses que vivemos juntos.


NÓS, III

Estas e muitas outras cousas, certo,
eu julgava sentir, quando sentia
que, descuidado e plácido, dormia
num inferno, sonhando um céu aberto.

Mas eis que, no meu sonho, luzidia
passas e me olhas muda. E tão de perto
me olhas, tão junto passas, que desperto,
como se em teu olhar raiasse o dia.

Data de então a página primeira
da nossa história, sem a mais ligeira
sombra de mágoas nem de desenganos.

Bastou-nos, para haver felicidade,
a pujança da minha mocidade
e a flor de carne dos teus verdes anos.


NÓS, IX

Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, e eu sei que esse canto te consola.

E, lá na rua, o povo tumultuário,
ouvindo o canto que daqui se evola,
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.

Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.

E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo o mundo pensará que eu canto.


NÓS, X

Vou partir, vais ficar. "Longe da vista,
longe do coração" — diz o ditado.
Basta, porém, que o nosso amor exista,
para que eu parta e fiques sem cuidado.

Dentro em mim mesmo, o coração egoísta,
quanto mais longe, mais te quer ao lado;
tanto mais te ama, quanto mais te avista
e, antes de ver-te, já te havia amado.

Vou partir. Para longe? Para perto?
— Não sei: longe de ti tudo é deserto
e todas as distâncias são iguais!

Como eu quisera que, na despedida,
quando se unissem nossas mãos, querida,
nunca pudessem desunir-se mais!


NÓS, XV

Falam muito de nós. Quanta maldade,
quanta maledicência, quanta intriga!
"É um pobre sonho de felicidade..."
"É um romance de amor à moda antiga!"

"Isso não passa de uma história, que há de
acabar como todas..." E há quem diga:
"Já são muito mal vistos na cidade
aquele moço e aquela rapariga!"

Diz-se... E eu sinto, num trêmulo alvoroço,
que vou ficando cada vez mais moço,
que vais ficando cada vez mais bela...

Nosso mundo (fale o outro: pouco importa!)
fica todo entre o quadro de uma porta
e o retângulo azul de uma janela.


NÓS, XXII

Tu senhora, eu senhor, ambos senhores
de um pequenino mundo. No caminho,
nunca vi flores em que houvesse espinho,
nunca vi pedras que não fossem flores.

Naquele quarto andar, longe das dores
e tão perto dos céus, com que carinho,
com quanto zelo edificaste o ninho
do mais feliz de todos os amores!

Tudo passou. Um dia, triste e mudo,
deixaste-me sozinho. Hoje tens tudo:
és rica, és invejada, és conhecida...

E eu tenho apenas, desgraçado e louco,
daquele amor que te custou tão pouco
esta saudade que me custa a vida!


NÓS, XXVII

Hoje voltas-me o rosto, se a teu lado
passo; e eu baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto
pudéssemos varrer nosso passado.

Passo, esquecido de teu olhar — coitado!
Vais — coitada! — esquecida de que existo:
como se nunca tu me houvesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado!

Se às vezes, sem querer, nos entrevemos;
se, quando passo, o teu olhar me alcança,
se os meus olhos te alcançam, quando vais,

— ah! só Deus sabe e só nós dois sabemos! —
volta-nos sempre a pálida lembrança
daqueles tempos que não voltam mais!


CAVALEIRO DO AMOR

Cavaleiro do Amor, sobe à armaria e cinge
o teu saio de malha, a eril sapata e o guante!
Arrocha o arnês, empluma o casco, ergue o montante
e enjaula, na viseira, o teu olhar de esfinge!

Vem, desce ao pátio e monta o teu corcel possante;
enrista a lança audaz que roça a adarga e ringe;
transpõe o fosso — e vai, e verte o sangue, e tinge
de goles teu brasão, ó cavaleiro andante!

Vai, vence! E, vencedor, dirás: "Eu, se fui forte,
se desprezei a vida e se afrontei a morte,
é que amei, é que amei como ninguém mais ama!

E fiz, pela paixão que neste peito encerro,
meu arnês mais tenaz que o meu amor de ferro,
meu gládio mais fatal que o olhar da minha dama!"


PERCEVAL

Ele, o monge, dizia: "Eu fui glorioso e forte:
chamavam-me, no mundo, o Belo Perceval...
Muito alfanje inimigo, embaixador da morte,
estalou no broquel pregado ao meu braçal!

Por Brancaflor venci, sozinho, uma coorte;
zombei do Rei Artur, matando-lhe o rival;
ao brilho do meu nome e esplendor do meu porte
eu conquistei a glória, um trono e o Santo Graal!

Depois... fiz-me eremita. E, à sombra de uma penha,
eu vesti, sem amor, sem fé, sem esperança,
sobre a armadura de aço o manto de estamenha...

Porque — ai de mim! — se o meu arnês nunca sequer
deixou que perpassasse a ponta de uma lança,
também não quis que entrasse o olhar de uma mulher!"


CASTELO NO AR

Eu já quis ser, no ardor da minha vida antiga,
Cid Campeador, Roldão, Perceval, Dom Quixote!
Já quis, do alto de um sonho e dentro da loriga,
ver o mundo através das frestas do barbote...

Sobre um urco alazão, que o xairel de aço abriga,
quantas vezes, entregue ao corcovear do trote,
julguei sentir, na confusão da horda inimiga,
ranger a arma de Islam na tarja do mangote!

Mas meu arnês foi um gibão de veludilho;
minha arma, uma guitarra ardente e apaixonada
e meu grito de guerra, um trêmulo estribilho...

Porque eu nada mais fui que um pobre trovador,
que andou cantando o sol de uma fronte dourada,
pelo castelo no ar de um derradeiro amor!


"SPLEEN"

E a vida continua... E continua
o mesmo outono e o mesmo tédio... Os galhos
vão ficando tão nus, a alma tão nua,
e os meus cabelos pretos tão grisalhos!

Vem aí Dom Inverno... Vem com sua
neurastenia... Uns últimos retalhos
de folhas mortas passam pela rua:
e passa o bando dos meus sonhos falhos...

Triste inutilidade desta vida!
Uma árvore ainda espera, aborrecida,
uma impossível primavera... E ao ver

sua silhueta rendilhando o poente,
penso em alguém que espero inutilmente,
numa inútil vontade de viver!


DOR OCULTA

Quando uma nuvem nômade destila
gotas, roçando a crista azul da serra,
umas brincam na relva; outras, tranqüila,
serenamente entranham-se na terra.

E a gente fala da gotinha que erra
de folha em folha e, trêmula, cintila,
mas nem se lembra da que o solo encerra,
da que ficou no coração da argila!

Quanta gente, que zomba do desgosto
mudo, da angústia que não molha o rosto
e que não tomba, em gotas, pelo chão,

havia de chorar, se adivinhasse
que há lágrimas que correm pela face
e outras que rolam pelo coração!


FELICIDADE

Ela veio bater à minha porta
e falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom dia, árvore velha e desfolhada!"
E eu respondi: "Bom dia, folha morta!"

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então, chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou a Felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz!"

E foi assim que, em plena primavera,
só quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!


SILÊNCIO

Silêncio — voz do amor, voz da alma, voz das cousas,
suave senhor dos céus, dos claustros e das grutas;
quebra-te o encanto o vôo, em trêmulas volutas,
do bando singular das lentas mariposas!

Silêncio — alma da dor de pálpebras enxutas;
reino branco da paz, dos círios e das lousas;
quando me calo, és tu, só tu, Silêncio, que ousas
falar-me, e quando falo, és só tu que me escutas!

Irmão gêmeo da morte, ó mística linguagem
com que se fala a Deus! Meu coração selvagem
segreda-te a impressão que à flor da alma resvala:

e tu lhe fazes, mudo, a confidência triste
que te faz a mudez de tudo quanto existe,
porque és, Silêncio, a voz de tudo o que não fala!


[TRISTEZA] CAMONIANA

Tristes versos que a pena entristecida
Foi, por o gosto de penar, traçando,
Sem saber que me estava retalhando,
A alma, o peito, a razão, o sonho, a vida:

Em quais terras da terra será lida
A confidência que ides confiando?
E, bem mais e melhor que lida, quando,
Em qual tempo dos tempos, entendida?

Às terras, e ainda aos tempos mais diversos,
Ide, sem pressa aqui, ali sem pausa,
Pois só por o partir foi que partistes.

Qual glória heis de esperar, meus tristes versos,
Se já vos falta aquela vossa causa
De serdes versos e de serdes tristes?


[PAIXÃO] CAMONIANA

Se isto de amar é só viver morrendo
E achar-me de tal morte satisfeito;
Não do meu ser, mas de outro, ser sujeito,
Sendo menos quem sou do que outrem sendo;

Se é ao meu coração ir prometendo
Lugar conforme num alheio peito,
E, em se ele mais mostrando, de tal jeito,
Das suas mostras mais ir-me escondendo;

Se isto é amor, e se a Fortuna é essa
Que se exp'rimente em mim a sua lei;
Se uma esquivança após de uma promessa

E o nada ter é tudo o que terei:
Que lhe sei já pedir, que me não peça?
Que me pode já dar, que lhe não dei?


[LONGEVIDADE] CAMONIANA

Claros fios de prata em minha fronte,
Que tanto me abreviais a vida breve,
E os dias, que me leva o tempo leve
E que eu não quis contar, mandais que conte:

Se até mesmo do pranto a pura fonte,
Por que verter não possa quanto deve,
Vosso frio rigor converte em neve,
Quem há aí que vos fuja, ou vos afronte?

Esquecestes, entanto, brancos fios,
Que, quanto mais sois brancos, e mais frios,
Mais própria em vós se espelha a maravilha

De um sonho meu de luz, dourado e eterno:
Pois o sol é mais sol quando é inverno,
E a neve é menos neve quando brilha.


[POSSE] CAMONIANA

Tanto de vossa vida vivo ausente,
Quanto perto viveis de minha vida:
Onde presente sou, sois escondida,
Onde sou escondido, sois presente.

Mandais que vossa vida se acrescente,
Não de alguma outra coisa prometida,
Que não da coisa que não for vivida,
E com coisa outra alguma se contente.

Porém, se tenho eu pouco e tendes muito,
Igual parte provamos de igual fruito,
Pois responde o que quero ao que podeis.

Vede que um mesmo engano é o meu, e é o vosso:
Por minha quero ter-vos, e não posso,
Por vosso podeis ter-me, e não quereis.


[AUSÊNCIA] CAMONIANA

A qual parte vos fostes, que vos vejo
Mais que nunca presente em toda parte?
Tanto sois para mim que, se o que parte
É muito, inda o que fica me é sobejo.

A cada instante meu, a cada ensejo,
Tão bem, por formas tais e de tal arte
Vossa apartada imagem se reparte,
Que nada mais já sobra ao meu desejo.

Qual, fugindo da terra, pela altura
Vai-se o sol, tal vos fostes, ordenando
Que a meus pés fique a sombra sobre o pó.

Tanto o vosso rigor nisso se apura,
Que em vos partindo só, e em me deixando,
Nem me deixais o gosto de ser só.


[IMORTALIDADE] CAMONIANA

Alma que de meu corpo te apartaste,
Corpo que de minh'alma te partiste,
E que dest'arte em dois me repartiste,
E numa só desdita a ambos juntaste:

Qual vida é igual à morte que inventaste?
Qual morte mais do que tal vida é triste?
Que humano ser tão desumano existe
Que haja sua igualdade em tal contraste?

Ante a razão porque a razão cativa
No próprio cativeiro acha conforto,
E às vezes se abandona, outras se esquiva,

Chego a quedar-me ante mim mesmo absorto,
Alma sem corpo, que não sei se é viva,
Corpo sem alma, que não sei se é morto.


[DIVAGAÇÃO] CAMONIANA

Naquela soidão, naquela altura
Onde os olhos nos montes apascento,
E é o sonho, no seu doce alheamento,
Mais verde d'esperança que a verdura;

Onde a vida adormece, e de mistura
Aos sentidos se afaz o entendimento,
Ali me vos figura o pensamento,
Branda de pensamento e de figura.

Que é minha condição, meu mal sobejo
Andar a minha vista revistando
Apenas o que avista o meu desejo.

Sem ventura de mim que, maginando,
Se vos não vejo, sonho que vos vejo,
E se vos vejo, cuido estar sonhando!


[MORTALIDADE] CAMONIANA

Ora que de meus sonhos alongada
Vive a que vida foi de um longo sonho,
Menos vivo que morto, assim me ponho
A cuidar que foi tudo o que foi nada.

Tenho por a mor glória a malograda;
O bem perdido, por o mais risonho;
E, sem curar de me curar, suponho
Ser a melhor ferida a mal curada.

Bendigo aquela, pois, que, por mofina,
Tanto valeu a est'alma desvalida,
Tanto bem fez por mal, e de tal sorte

Somente em ser cruel me foi benigna:
Que se foi morte o que me deu na vida,
Há de ser vida o que me der na morte.


[MÁGOA] CAMONIANA

Dura pena que dura sem medida
Por um crime d'amor breve e fortuito;
De flor ditosa desditoso fruito:
Este colhido, aquela fenecida.

Lágrima não chorada que, pendida,
Ficou à espreita num olhar enxuito,
Vendo em tão pouco bem, e mal tão muito,
Tão curta vida, e morte tão comprida.

Como mudar-me posso de lembrar-me,
Se, com lembrar-me apenas de mudar-me,
Nisso estou ocupando o pensamento?

Sofro mais do que sou que do que hei sido,
Pois não é tanto mal o mal sofrido,
Como é lembrar o mesmo sofrimento.


[EVOCAÇÃO] CAMONIANA

Vou na minha lembrança refazendo
A ventura que fiz e desfizeste,
Redizendo as palavras que disseste,
E a vida, que vivemos, revivendo.

E aquele gosto (que eu já agora entendo
Mais gostar do que dei, que do que deste),
Por que Amor quanto possa manifeste,
A mim o peço, e só de mim o atendo.

Olho o tempo passado, e nele emprego,
Mais do que vê, o que magina o cego,
Mais de mim me lembrando, que de ti.

E sinto que, se tudo me levaste,
Não val' o bem, que por meu mal gozaste,
Aquele mal, que por teu bem sofri.


[DISTÂNCIA] CAMONIANA

Quando na estimação dos meus errores
Ponho o meu aplicado pensamento,
E nisso em que busquei contentamento
Contento-me em buscar os desfavores;

Quando vendo-me estou dos seus rigores
Vencido, e inda feliz do vencimento,
Tenho pena do seu merecimento,
Se é que de pena são merecedores.

Por o que toca ao sonho, e não à vida
(Que aquele era presente; esta, esquecida),
Cuido que adormeci de olhar aberto:

Pois tanto era o que olhava, mas não via,
Tão perto o que era longe parecia,
Tão longe parecia o que era perto!


[INCONSCIÊNCIA] CAMONIANA

Quanto melhor me fora o ter vivido
Sem haver desta vida conhecença;
E, de mim próprio ausente, na presença
De mim mesmo não ser reconhecido;

E, nem do bem e nem do mal movido,
Indiferente a toda diferença,
E, surdo e mudo e cego de nascença,
Ignorar porque foi que fui nascido;

E nem saber, no pego deste mundo,
Se vogo à tona, ou se descendo ao fundo;
E já sem fé em Deus (Deus me perdoe!),

Tal estar que nem sinta o meu estado
E se me Ele chamar, torne ao chamado:
— Quanto melhor me fora o que não foi!


SONETO ÚNICO

Vejo a sombra partir-se pelo meio
e pôr-me duas pálpebras na face;
minha boca de sede bebe o seio
de alguma estrela que me amamentasse;

tem um peso de terra o corpo alheio
que há no meu corpo; em meus ouvidos nasce
uma árvore cantando um vento cheio
de céu em cada enlace e desenlace;

em minhas mãos paradas pousam ninhos;
vão os passos de todos os assombros
andando as minhas veias de caminhos;

e há, para o vôo aceso numa aurora,
pressentimentos de asas nos meus ombros
— quando a Moça da Foice me namora.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes