|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Francisco Filinto de Almeida (Porto, Portugal, 1857-1945)

Nos sonetos dizia versejar à sombra de Camões, mas na vida real brilhou à sombra da esposa Júlia Lopes de Almeida, a qual, por não ser homem, teve que ceder cadeira ao marido na Academia. Além de parasitar o talento da consorte, acusaram-no de penetra por não ser brasileiro nato. Tudo exagero, já que se naturalizou e poetou aqui, e já que, tirando o tributo a Camões (que aliás todos pagamos), compôs bons sonetos do melhor tom pessimista, como os primeiros da seleta abaixo.


CANSAÇO

A velhice é cansaço... E esse cansaço
Não nos vem de trabalho ou movimento...
O que ora faço é demorado e lento
E acho mal feito o pouco que ainda faço.

Tudo me cansa: — até o pensamento!
Já pouquíssimo ando e arrasto o passo...
Quase sempre dorminte ou sonolento,
Vivo uma triste vida de madraço.

Nunca fui mandrião nem calaceiro,
Nem também muito ativo, é bem que o diga,
Mas domei sempre a inércia, sobranceiro.

Agora, a própria inércia me castiga,
Pois se acaso repouso um dia inteiro
Esse mesmo repouso me fatiga!


INCONTENTAMENTO

Viste que tudo foi tempo perdido
E todo emprego foi mal empregado...
Mas foste — Poeta na vida desgraçado —
Pelo teu próprio gênio redimido.

Eu, que não posso a ti ser comparado,
Nem por tantas desgraças fui ferido,
Por infortúnios julgo-me oprimido
E não ando contente com o meu fado.

Incontentável trovador, que aspira
A erguer a grande altura a voz da lira
E só lhe arranca os sons tíbios e roucos,

Sem que o poder do gênio me redima,
Vou gemendo sem brilho, rima a rima,
Mágoas da vida — que se extingue aos poucos.


VOZ ETERNA

Sábio Mestre dos mestres, impoluto,
Santificado pelo sofrimento;
Marinheiro, soldado resoluto,
Poeta do espírito e do sentimento.

Leio alto os teus versos — e ouço e escuto
A tua própria voz, lançada ao vento
Da pátria, como altíssimo tributo
Que à Ingratidão pagasse o Pensamento.

Mas volveram-se os séculos, e agora
São duas pátrias que te estão pagando,
Em tributos mais altos e profundos,

O que devem à imensa voz canora,
Que ficou para sempre ressoando
Nas terras e nos mares de dois mundos.


NOBILITAÇÃO

A história de Raquel, Jacó e Lia
É, como outras do Gênesis, obscena;
E se o ludíbrio de Jacó faz pena,
A sordícia das fêmeas enfastia.

Além da permitida bigamia,
As servas entram igualmente em cena,
Com a cumplicidade mais serena,
Que só evita o leito à luz do dia.

Mas eis que o Poeta entra naquela alfurja,
Analisa e pondera a história lida,
Sem que o seu gênio sideral se insurja;

E dela, transformada e enobrecida,
Faz, em quatorze versos, que ressurja
Num puro amor mais longo do que a vida.


ZUMBIDOS

Eu quisera ter voz para cantar
A tua glória — portentoso guia
Nas ascensões da minha fantasia —
Voz do Céu, voz da Terra, voz do Mar.

Mas tão potente voz, tão singular
Que concertasse a tríplice harmonia,
A só digna de ti, quem a teria
Neste soturno mundo sublunar?

Eu, abelhão fugaz do ático Himeto,
Dou-te o meu surdo canto, asas abrindo,
Num sussurro de loa triunfal;

Dou-te mais um zumbido num soneto;
Que eu vivi sempre e morrerei zumbindo
Em torno da tua sombra colossal.


A LIÇÃO PERPÉTUA

São Luís de Camões, patrono e santo
Que desde a infância venerar intento,
Como merece quem por mim fez tanto
Que até deu asas ao meu pensamento!

Da tua Musa o constelado manto,
Da poeira d'astros que arremessa ao vento
Alguma cai sobre o sorriso e o pranto
Dos breves poemas que a rimar invento.

Meu Pai espiritual, meu Guia e Mestre,
Nesta passagem rápida terrestre
Em que só cantam almas peregrinas,

Ao fim da vida, ainda, em sobressaltos,
Canto, graças a ti, nos moldes altos
Da perpétua lição que tu me ensinas.


O AMOR EM CAMÕES

Além do mar, da guerra e da procela,
Foste o Poeta do Amor e da aventura,
Amor que homens e deuses transfigura,
E que o teu gênio sideral estrela.

Nos teus poemas o Amor irrompe, e aquela
Palpitação fremente de ternura
Que adoça, amassa e estende a rocha dura,
Como a do "grande cabo" nos revela.

Sempre o Amor em teus versos de tal jeito
Escorre — como olímpico licor —
Que o coração inunda em cada peito.

Até na boca alvar do Adamastor
A garganta de pedra de que é feito
Canta Amor, ruge Amor, soluça Amor!


LUSÍADAS (I)

Eu estou também nos versos da Epopéia;
Invisível, de-certo, mas lá estou
Entrelaçado na sonora teia
Que o magno Poeta altíssimo tramou.

Fiquei na "chusma", — onde também ficou
O luso Povo, herói central da idéia,
Cujo sangue, que a glória sublimou,
Dos capitães lateja em cada veia.

E desse mesmo sangue, o que eu herdei
Sinto-o por todo o poema desparzido:
E se o sangue é o da raça, eu sou da grei.

Que ando nos versos tenho indícios só,
Mas com eles me vi reconstituído
Por vestígios de cinzas, sombra e pó...


LUSÍADAS (II)

Lá estão todos que vêm da estirpe rara
Daquela ilustre incomparável gente,
Que, em virtude da parte que emigrara,
Se espalham em cada continente.

E se algum de ascendência tão preclara
Fosse, ainda que remoto descendente,
Lá também na Epopéia se encontrara,
Se, como eu, se buscasse atentamente.

Lá estamos todos — poalha de vestígios,
Disseminada pelos que se excedem
A obrar milagres, a fazer prodígios.

E devem ter — partes da excelsa História,
Todas as gerações que se sucedem —
Imenso orgulho de tamanha glória!


Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes