|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro RJ 1839-1908)

O maior escritor brasileiro de todos os tempos não poderia ser apenas o romancista de DOM CASMURRO, o novelista de "O Alienista" ou o contista de "Conto de Escola": teria que ser, também, poeta maior, ainda que bissextamente. Prova disso é o soneto abaixo, tão célebre que já foi parodiado até em dialeto luso-macarrônico por Furnandes Albaralhão, e em ítalo-paulistanês por Juó Bananére:


CÍRCULO VICIOSO

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
"Quem me dera que eu fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:

"Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!"
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

"Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"


As paródias do soneto acima são as que se seguem:


CIRCUITO BICIADO [Furnandes Albaralhão]

Guiando um vonde, g'mia inquieto maturnâiro:
— "Ah! Si eu fosse u fiscale aqui dessa miléca...
De prazeire, nain sai, tumaba uma quiméca..."
Mas u fiscale ulhando u vurro du dinhâiro

Du chefe du iscritório: — "Imbejo-te, parçâiro,
Si eu fosse como tu, câ farra! Câ panquéca!
Cumia tanto, qui rivintaba a cuéca!"
Mas u chefe a fitaire a pança de bendâiro

Du supirintendente: — "Eu não ser mais maióre,
Não têre u qui tu tains! Não têre u teu dinhâiro!..."
I u supirintendente a limpare o suóre:

— "Iscrêbo como um vurro! É a noute! É u dia intâiro!
Entra sóle, sai sóle! Não há coisa pióre!
Ah! Caim déra qui eu fosse um simples maturnâiro!"


CÍRGOLO VIZIOSO [Juó Bananére]

O Hermeze un di aparlô:
— Se io era aquilla rosa che está pindurada
Nu gabello da mia anamurada,
Uh! che bô!

A rosa tambê scramô,
Xuráno come un bizerigno:
— Se io era aquillo gaxorigno!...
Uh! che brutta cavaçó!

I o gaxorigno pigô di dizê:
— Se io fossi o Piedadô,
Era molto maise bô!

Ma o Garonello dice tambê
Triste come un giaburu:
— Che bô si io fosse o Dudu!


Outros sonetos de Machado:


O DESFECHO

Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a águia em cima os olhos espantados.

Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.

Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.


MUNDO INTERIOR

Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, — a natureza externa, —
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia — e dorme.


LINDÓIA

Vem, vem das águas, mísera Moema,
Senta-te aqui. As vozes lastimosas
Troca pelas cantigas deleitosas,
Ao pé da doce e pálida Coema.

Vós, sombras de Iguaçu e de Iracema,
Trazei nas mãos, trazei no colo as rosas
Que amor desabrochou e fez viçosas
Nas laudas de um poema e outro poema.

Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta
De Lindóia, que a voz suave e forte
Do vate celebrou, a alegre festa.

Além do amável, gracioso porte,
Vede o mimo, a ternura que lhe resta.
"Tanto inda é bela no seu rosto a morte!"


SPINOZA

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.


GONÇALVES CRESPO

Esta musa da pátria, esta saudosa
Níobe dolorida,
Esquece acaso a vida,
Mas não esquece a morte gloriosa.

E pálida, e chorosa,
Ao Tejo voa, onde no chão caída
Jaz aquela evadida
Lira da nossa América viçosa.

Com ela torna, e, dividindo os ares,
Trépido, mole, doce movimento
Sente nas frouxas cordas singulares.

Não é a asa do vento,
Mas a sombra do filho, no momento
De entrar perpetuamente os pátrios lares.


ALENCAR

Hão de os anos volver, — não como as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os anos volver, mas como as flores,
Sobre o teu nome, vívidos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rústicos e breves,
Da indiana escreveste, — ora os escreves
No volume dos pátrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te há levado,
Já não acha a tristeza. Extinto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.

Porque o tempo implacável e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flor, o encanto...


CAMÕES, I

Tu quem és? Sou o século que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A glória resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.

Que cantou ele? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lira alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.

Nobremente sofreu? Como homem forte.
Esta imensa oblação?... É-lhe devida.
Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.

Chama-se a isto? A glória apetecida.
Nós, que o cantamos?... Volvereis à morte.
Ele, que é morto?... Vive a eterna vida.


CAMÕES, II

Quando, transposta a lúgubre morada
Dos castigos, ascende o florentino
À região onde o clarão divino
Enche de intensa luz a alma nublada,

A saudosa Beatriz, a antiga amada,
A mão lhe estende e guia o peregrino,
E aquele olhar etéreo e cristalino
Rompe agora da pálpebra sagrada.

Tu que também o Purgatório andaste,
Tu que rompeste os círculos do Inferno,
Camões, se o teu amor fugir deixaste,

Ora o tens, como um guia alto e superno,
Que a Natércia da vida que choraste
Chama-se Glória e tem o amor eterno.


CAMÕES, III

Quando, torcendo a chave misteriosa
Que os cancelos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,

Talvez uma visão resplandecente
Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba, que cantaria a ação famosa
Aos ouvidos da própria e estranha gente.

E disse: "Se já noutra, antiga idade,
Tróia bastou aos homens, ora quero
Mostrar que é mais humana a humanidade.

Pois não serás herói de um canto fero,
Mas vencerás o tempo e a imensidade
Na voz de outro moderno e brando Homero".


CAMÕES, IV

Um dia, junto à foz de brando e amigo
Rio de estranhas gentes habitado,
Pelos mares aspérrimos levado,
Salvaste o livro que viveu contigo.

E esse que foi às ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca imortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.

Assim, um homem só, naquele dia,
Naquele escasso ponto do universo,
Língua, história, nação, armas, poesia,

Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquilo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.


SONETO DE NATAL

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"


A FELÍCIO DOS SANTOS

Felício amigo, se eu disser que os anos
Passam correndo ou passam vagarosos,
Segundo são alegres ou penosos,
Tecidos de afeições ou desenganos,

"Filosofia é esta de rançosos!"
Dirás. Mas não há outra entre os humanos.
Não se contam sorrisos pelos danos,
Nem das tristezas desabrocham gozos.

Banal, confesso. O precioso e o raro
É, seja o céu nublado ou seja claro,
Tragam os tempos amargura ou gosto,

Não desdizer do mesmo velho amigo,
Ser com os teus o que eles são contigo,
Ter um só coração, ter um só rosto.


MARIA

Maria, há no seu gesto airoso e nobre,
Nos olhos meigos e no andar tão brando,
Um não sei quê suave que descobre,
Que lembra um grande pássaro marchando.

Quero, às vezes, pedir-lhe que desdobre
As asas, mas não peço, reparando
Que, desdobradas, podem ir voando
Levá-la ao teto azul que a terra cobre.

E penso então, e digo então comigo:
"Ao céu, que vê passar todas as gentes
Bastem outros primores de valia.

Pássaro ou moça, fique o olhar amigo,
O nobre gesto e as graças excelentes
Da nossa cara e lépida Maria".


NO ALTO

O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao sutil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.


NAQUELE ETERNO AZUL, ONDE COEMA

Naquele eterno azul, onde Coema,
Onde Lindóia, sem temor dos anos,
Erguem os olhos plácidos e ufanos,
Também os ergue a límpida Iracema.

Elas foram, nas águas do poema,
Cantadas pela voz de americanos,
Mostrar às gentes de outros oceanos
Jóias do nosso rútilo diadema.

E, quando a magna voz inda afinavas
Foges-nos, como se a chamar sentiras
A voz da glória pura que esperavas.

O cantor do "Uruguai" e o dos "Timbiras"
Esperavam por ti, tu lhes faltavas
Para o concerto das eternas liras.


A DERRADEIRA INJÚRIA:

I

Vês um féretro posto em solitária igreja?
Esse pó que descansa, e se esconde, e se some,
Traz de um grande ministro o formidável nome,
Que em vivas letras de ouro e lágrimas flameja.

Lá fora uma invasão esquálida braceja,
Como um mar de miséria e luto, que tem fome,
E novas praias busca e novas praias come,
Enquanto a multidão, recuando, peleja.

O gaulês que persegue, o bretão que defende,
Duas mãos de um destino implacável e oculto,
Vão sangrando a nação exausta que se rende;

Dentre os mortos da história um só único vulto
Não ressurge; um Pacheco, um Castro não atende;
E a cobiça recolhe os despojos do insulto.


II

Ora, na solitária igreja em que se há posto
O féretro, se alguém pudesse ouvir, ouvira
Uma voz cavernosa e repassada de ira,
De tristeza e desgosto.

Era uma voz sem rosto,
Um eco sem rumor, uma nota sem lira.
Como que o suspirar do cadáver disposto
A rejeitar o leito eterno em que dormira.

E ninguém, salvo tu, ó pálido, ó suave
Cristo, ninguém, exceto uns três ou quatro santos,
Envolvidos e sós, nos seus sombrios mantos,

Ninguém ouvia em toda aquela escura nave
Dessa voz tão severa, e tão triste, e tão grave,
Murmurados a medo, as cóleras e os prantos.


III

E dizia essa voz: — "Eis, Lusitânia, a espada
Que reluz, como o sol, e como o raio, lança
Sobre a atônita Europa a morte ensangüentada.

"Venceu tudo; ei-la aí que te fere e te alcança,
Que te rasga e te põe na cabeça prostrada
O terrível sinal das legiões de França.

"E, como se o furor, e, como se a ruína
Não bastassem a dar-te a pena grande e inteira,
Vem juntar-se outra dor à tua dor primeira,
E o que a espada começa a tristeza termina.

"És o campo funesto e rude em que se afina
Pugna estranha; não tens a glória derradeira,
De devolver farpada e vencida a bandeira,
E ser Xerxes embora, ao pé de Salamina.


IV

"No entanto, ao longe, ao longe uma comprida história
De batalhas e descobertas,
Um entrar de contínuo as portas da memória
Escancaradamente abertas,

"Enchia esta nação, que aprendera a vitória
Naquela crespa idade antiga,
Quando, em vez do repouso, era a lei da fadiga,
E a glória coroava a glória.

"E assim foi, palmo a palmo, e reduto a reduto,
Que um punhado de heróis, que um embrião de povo
Levantara este reino novo;

"E livre, independente, esse áspero produto
Da imensa forja pôde, achegando-se às plagas,
Fitar ao longe as longas vagas.


V

"Era escasso o torrão; por compensar-lhe a míngua,
Assim foi que dobraste aquele oculto cabo,
Não sabido de Plínio, ignorado de Estrabo,
E que Homero cantou em uma nova língua.

"Assim foi que pudeste haver África adusta,
Ásia, e esse futuro e desmedido império,
Que no fecundo chão do recente hemisfério
A semente brotou da tua raça augusta.

"Eis, Lusitânia, a obra. Os séculos que a viram
Emergir, com o sol dos mares, e a poliram,
Transmitem-lhe a memória aos séculos futuros.

"Hoje a terra de heróis sofre a planta inimiga...
Quem pudera mandar aqueles peitos duros!
Quem soubera empregar aquela força antiga!"


VI

E depois de um silêncio: — "Um dia, um dia, um dia
Houve em que nesta nobre e antiga monarquia,
Um homem, — paz lhe seja e a quantos lhe consomem
A sagrada memória, — houve um dia em que um homem.

"Posto ao lado do rei e ao lado do perigo
Viu abater o chão; viu as pedras candentes
Ruírem; viu o mal das cousas e das gentes,
E um povo inteiro nu de pão, de luz e abrigo.

"Esse homem, ao fitar uma cidade em ossos,
Terror, dissolução, crime, fome, penúria,
Não se deixou cair co'os últimos destroços.

"Opôs a força à força, opôs a pena à injúria,
Restituiu ao povo a perdida hombridade,
E donde era uma ruína ergueu uma cidade.


VII

"Esse homem eras tu, ó alma que repousas
Da cobiça, da glória e da ambição do mando,
Eras tu, que um destino, e propício, e nefando,
Ao fastígio elevou dos homens e das cousas.

"Eras tu que da sede ingrata de ministro
Fizeste um sólio ao pé do sólio; tu, sinistro
Ao passado, tu novo obreiro, áspero e duro,
Que traçavas no chão a planta do futuro.

"Tu querias fazer da história uma só massa
Nas tuas fortes mãos, tenazes como a vida,
A massa obediente e nua.

"A luminosa efígie tua
Quiseste dar-lhe, como à brônzea estátua erguida,
Que o século corteja, inda assustado, e passa.


VIII

"Contra aquele edifício velho
Da nobreza, — elevado ao lado do edifício
Da monarquia e do evangelho, —
Tu puseste a reforma e puseste o suplício.

"Querias destruir o vício
Que a teus olhos roía essa fábrica enorme,
E começaste o duro ofício
Contra o que era caduco, e contra o que era informe.

"Não te fez recuar nesse áspero duelo
Nem dos anos a flor, nem dos anos o gelo,
Nem dos olhos das mães as lágrimas sagradas.

"Nada; nem o negror austero da batina,
Nem as débeis feições da graça feminina
Pela veneração e pelo amor choradas.


IX

"Ah! se por um prodígio especial da sorte,
Pudesses emergir das entranhas da morte,
Cheio daquela antiga e fera gravidade,
Com que salvaste uma cidade;

"Quem sabe? Não houvera em tão longa campanha
Ensangüentado o chão do luso a planta estranha,
Nem correra a nação tal dor e tais perigos
Às mãos de amigos e inimigos.

"Tu serias o mesmo aspérrimo e impassível
Que viu, sem desmaiar, o conflito terrível
Da natureza escura e da escura alma humana;

"Que levantando ao céu a fronte soberana,
— "Eis o homem!" disseste, — e a garra do destino
Indelével te pôs o seu sinal divino".


X

E, soltado esse lamento
Ao pé do grande moimento,
Calou-se a voz, dolorida
De indignação.

Nenhum outro som de vida
Naquela igreja escondida...
Era uma pausa, um momento
De solidão.

E continuavam fora
A morte, dona e senhora
Da multidão;

E devastava a batalha,
Como o temporal que espalha
Folhas ao chão.


XI

E essa voz era a tua, ó triste e solitário
Espírito! eras tu, forte outrora e vibrante,
Que pousavas agora, — apenas cintilante, —
Sobre o féretro, como a luz de um lampadário.

Era tua essa voz do asilo mortuário,
Essa voz que esquecia o ódio triunfante
Contra o que havia feito a tua mão possante,
E a inveja que te deu o pontual salário.

E contigo falava uma nação inteira,
E gemia com ela a história, não a história
Que bajula ou destrói, que morde ou santifica.

Não; mas a história pura, austera, verdadeira,
Que de uma vida errada a parte que lhe fica
De glória, não esconde às ovações da glória.


XII

E, tendo emudecido essa garganta morta,
O silêncio voltara àquela nave escura,
Quando subitamente abre-se a velha porta,
E penetra na igreja uma estranha figura.

Depois outra, e mais outra, e mais três, e mais quatro.
E todas, estendendo os braços, vão abrindo
As trevas, costeando os muros, e seguindo
Como a conspiração nas tábuas de um teatro.

E param juntamente em derredor do leito
Último em que descansa esse único despojo
De uma vida, que foi uma longa batalha.

E enquanto um fere a luz que as tênebras espalha,
Outro, com gesto firme e firmíssimo arrojo,
Tomas nas cruas mãos aquele rei desfeito.


XIII

Então... O homem que viu arrancarem-lhe os braços
Poder, glória, ambição, tudo o que amado havia;
Esse que foi o sol de um século, que um dia,
Um só dia bastou para fazer pedaços;

Que, se aos ombros atara uma púrpura nova,
Viu, farrapo a farrapo, arrancarem-lha aos ombros;
Que padecera em vida os últimos assombros,
Tinha ainda na morte uma última prova.

Era a brutal rapina, anônima, noturna,
Era a mão casual, que espedaçava a urna
A troco de um galão, a troco de uma espada;

Que, depois de tomar-lhe esses sinais funestos
Da sombra de um poder, pegou dos tristes restos,
Ossos só, e espalhou pela nave sagrada.


XIV

Assim pois, nada falta à glória deste mundo,
Nem a perseguição repleta de ódio e sanha,
Nem a fértil inveja, a lívida campanha,
De tudo o que radia e tudo que é profundo.

Nada falta ao poder, quando o poder acaba;
Nada; nem a calúnia, o escárnio, a injúria, a intriga,
E, por triste coroa à merencória liga,
A ingratidão que esquece e a ingratidão que baba.

Faltava a violação do último sono eterno,
Não para saciar um ódio insaciável,
Insaciável como os círculos do inferno.

E deram-ta; eis-te aí, ó grande invulnerável,
Eis-te ossada sem nome, esparsa e miserável,
Sobre um pouco de chão do ninho teu paterno.


ENTRA CANTANDO, ENTRA CANTANDO, APOLO!

Entra cantando, entra cantando, Apolo!
Entra sem cerimônia, a casa é tua;
Solta versos ao sol, solta-os à lua,
Toca a lira divina, alteia o colo.

Não te embarace esta cabeça nua;
Se não possui as primitivas heras,
Vibra-lhe ainda a intensa vida sua,
E há outonos que valem primaveras.

Aqui verás alegre a casa e a gente,
Os adorados filhos, — terno e brando
Consolo ao coração que os ama e sente.

E ouvirás inda o eco reboando
Do canto dele, que terás presente.
Entra cantando, Apolo, entra cantando.


A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, — restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes