|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Paulo Lébeis Bomfim (São Paulo SP 1926- 2019)

Apadrinhado por Guilherme de Almeida, justificou a bandeira da paulistanidade com volumosa obra, em cujos livros o soneto é prato de resistência. O decassílabo bonfiniano é preciso e, rimado ou não, revela o traço personalíssimo do poeta ao retratar o indivíduo que (se) reflete sobre a cena urbana, no tempo e no espaço. Minha seleção seria esta:


TRANSFIGURAÇÃO, I

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.
Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.


TRANSFIGURAÇÃO, XVII

Dentro da noite fui buscar o dia
E o antípoda clarão do pensamento;
Deitei em pleno mar minha alegria,
Parti meu coração de encontro ao vento.
Dentro da noite fui transfigurado,
Tornei-me alegria e transparência.
Tocando em velho símbolo passado
No futuro guardei minha inocência.
Dentro da noite me envolvi outrora,
Na busca do meu eu quase perdido;
Nas trevas garimpei a nova aurora
E do silêncio me tornei vencido.
Da noite trago a luz desta lanterna,
E o dia já renasce em alma eterna.


SONETO DA ÁRVORE SOBRE O RIO

Deito-me em ti com ramos e folhagem
E pássaros e orquídeas de loucura;
Do musgo do meu gesto nasce a imagem
Que atiro em teus caminhos de procura.

Em meus braços aflitos a paisagem
Transforma-se no vento que murmura,
E os raios iluminam a mensagem
Fogo que morre sobre a fonte pura.

Debruço em ti a sombra e a cor das mágoas;
Sou passado e futuro na tormenta,
Raízes marcham sob um chão que é cego...

Afogo-me no espelho destas águas:
— Guarda de mim a vida que se ausenta,
E estes frutos eternos que te entrego.


SINFONIA BRANCA, II

Somos o próprio tempo encarcerado
Em paredes de carne lamentada.
Três interrogações crescem da seiva
Do passado que é a selva na manhã.

Somos o tempo materializado,
E nossas próprias mãos vão derrubando
Pedras vermelhas, muros enrugados,
Minutos cor de cal e eternidade!

Somos o corpo físico das horas:
Em nossos corações procriam noites
E esta saudade ressuscita os mortos.

Somos o próprio tempo encarcerado,
Prisão e prisioneiros transformados
Em muros carregando sentimentos...


SINFONIA BRANCA, VIII

Minha sede finita de infinito...
Ó pensamento, ó vida que se perde
Entre outras vidas, gotas sem origem,
Engrossando caudais que não têm fim.

Ó coração, ó sangue do universo,
Pulsando contra mundos que não vejo,
Cegueira pressentida por meus olhos,
Cansaços carregados de intuição!

Minha sede morrendo entre outras sedes,
A incerteza pairando entre os vapores,
Que andam flutuando sobre os precipícios:

E a consciência de ser na realidade
Início e fim das coisas pressentidas
Na lucidez do fogo sobre as águas...


SINFONIA BRANCA, XII

Em nossas mãos, dez dúvidas marcaram
A cinza das paredes calcinadas.
Os dias deitam brasas sobre a terra
E há noites de carvão tingindo rostos.

Carvoeiros do infinito, carregamos
O momento do amor em nossa morte.
Letras de treva gravam nosso nome
No feixe das estrelas que se acendem.

Em nossas mãos, dez noites despertaram.
Dez fogos iluminam o holocausto
Das piras caminhando pela sombra.

Hoje somos nós mesmos que falamos:
Amanhã nossas mãos serão de pedra,
E o fogo falará por nossas bocas.


SINFONIA BRANCA, XIII

Magros braços das árvores do outono...
Cansaço de embalar manhãs nubladas;
Na memória das aves ainda moram
As folhas mortas pela mão do vento.

Braços de espanto, sonho das raízes
Carregadas de passos e de pedras;
As almas subterrâneas da cidade
Têm pensamentos verdes sobre o asfalto.

O silêncio dos homens se recolhe,
Os capotes naufragam na neblina
E os sapatos carregam folhas mortas...

As árvores e os homens se confundem
E o frio conta histórias pelas ruas,
Do tempo em que os poetas foram árvores!


SINFONIA BRANCA, XXI

O espelho é cofre preso entre molduras...
Nele guardamos interrogações,
Despedidas, alvuras de camélia,
E as primeiras perguntas sem resposta.

O espelho é cofre. Rouba e não devolve
Encantos e crepúsculos antigos...
— Quantas manhãs de sol crescem no fundo
Das águas desses lagos verticais!

O espelho é cofre: prende nossas mãos
Entre flores azuis, aves de fogo
E véus que nossas almas já despiram.

O espelho é cofre que nos guarda vivos:
— Após a morte, rompe-se o segredo
E em memórias de prata ressurgimos.


ARMORIAL, X

Ó pousos, ó cansaços, ó jornadas,
Parnaíbas de amor que não regressam;
Candeias inflamando o breu da noite,
Cerrações, retentivas de partidas.

Tietês correndo fundo na saudade,
Rostos submersos, águas sertanistas,
Canção de remos no arraial de espumas,
Proas alimentadas de paisagem.

Ó pousos não pousados duas vezes,
Ó serras, ó martírios não falados,
Ó melros decepados em vitórias...

Longo é o sono da terra adormecida:
Imersos em nós mesmos contemplemos,
Leões brasonados perseguindo espanhas.


ARMORIAL, XI

Por certo hei de cantar esquecimento
Manhãs paulistas onde sou raízes...
Recordações ondulam neste campo
Onde o vento conduz a minha história.

Por certo nascerei em cada folha
Sonhada na madeira das canoas,
E minhas penas brilharão na fronte
De astrais caciques conduzindo noites.

Por certo cantarei pegadas mortas,
Marcando em minha carne seus caminhos
Desbravados em células remotas...

Que estes versos queimados de horizonte,
Falem dialetos puros e selvagens,
Nas manhãs mamelucas que hoje canto.


ARMORIAL, XIV

Nordestes holandeses que procuro
Nas casas-grandes que hoje trago na alma,
Socorros mamelucos desfilando,
Em calçadas de seda e porcelana.

Ruivos combates, retiradas brancas,
Sangue perdido sobre canaviais,
Calções de couro entre chapéus de pluma,
Saudades altiplanas em recifes.

Nordestes do meu sul irremediável,
Senhor de dois mil arcos fui outrora,
Socorrendo as olindas senhoriais...

Hoje sou só. Trezentos desenganos
Cobriram de ferrugem meus guerreiros.
E empurraram sobrados sobre mim.


ARMORIAL, XVI

Tapuias pressentidos nas ciladas
Que os deuses desterrados nos preparam,
Pensamentos, tocaias inimigas,
Serpes aladas devorando infernos...

Tabas extintas cercam nosso passo,
E em nuvens de lamento a chuva desce
Lembrando em nossos tetos as derrotas
De outros espaços noutras emboscadas.

Que ar pestilento sopra as finas flechas
Dos lábios já comidos pela morte,
Dos dedos descarnados pelo tempo?

A alma dos tapuias hoje assombra
Os caminhos pensados no delírio
E o destino que herdamos das partidas.


ARMORIAL, XIX

Banhemo-nos em águas de Setembro,
Nas trinta cataratas que antecedem
O espanto de nascer. Surjamos logo
Da espuma primitiva que nos chora.

Surjamos destas pedras que hoje cobrem
Chãos avoengos, tabas ancestrais;
Que é nossa a terra viva onde aportamos
Com quilhas nos sentidos enfunados.

As torres dos castelos naufragados,
Têm o lodo de tejos e de renos,
E lanças guaianases nas ameias.

Que as águas de Setembro rememorem,
Os séculos fundidos no planalto,
E as árvores sem sombra que hoje somos.


ARMORIAL, XX

Se a treva amanheceu em madrugada,
Rememoremos hoje os dias mortos,
Sentindo que o planalto é a realidade
Do sangue, mar antigo em nossa fronte.

Que às portas dos sertões depositemos
Espadas e cocares emplumados,
Para que os mortos que já fomos, voltem
Do fundo de três séculos noturnos.

Quebrado o sortilégio da floresta,
Os que partiram na manhã nublada
— O que de nós ficou sem regressar —

Serão em nosso mundo de vivências,
A intuição reencontrada no mistério,
A voz do rio na mudez do mar...


SONETO II

O livro que hoje escrevo foi escrito
Em outro plano estático e diverso,
Sei que morro no fim de cada verso
E renasço no início de outro mito.

Em cada letra tinta de infinito
Há um diálogo mudo que converso
Com nebulosas de meu universo
Onde nasceu a página que dito.

Sei que sou neste instante o que já fui,
E aquilo que recebo agora flui
De um campo superior onde me deito.

Durmo além, nessa plaga que recordo:
Só escrevo neste plano onde hoje acordo,
Aquilo que ainda sonho no outro leito.


SONETO V

Alquimia do verbo. Em minha mente
Recriam-se palavras na hora vária,
A poesia se torna necessária
E as flores rememoram a semente.

É preciso que exista novamente
A aventura distante e temerária
De em ouro transformar a dor precária
E em nós deixar correr a lava ardente.

Que uma emoção profunda e mineral
Corra nos veios desta carne astral
E encontre em mim aquilo que procura.

Na paisagem que for, já sou nascido:
Nas formas criarei o elo perdido,
E, em lucidez, serei minha loucura.


SONETO XIII

Ruas morrendo em mim subitamente.
Calçadas vêm descendo o meu destino,
Com casas onde sinto que termino
Na chuva dos beirais de antigamente.

Passos pisam de leve minha mente.
Alma das tardes longas, voz de sino
Entre lajes de sol onde germino
Dos gritos silenciosos da semente.

Ruas morrendo em mim, cheias de infância.
Árvores mortas com raízes na alma,
Deitando folhas verdes na distância...

E, à noite, este infinito que ainda medra:
A voz dos passos numa esquina calma,
A serenata nos violões de pedra.


SONETO XXV

Antes do fim o canto derradeiro
Evocando as pegadas de outra sorte,
Há de se erguer sobre o perdido porte
E falar do sentido verdadeiro.

Há de lembrar a luta, o chão guerreiro,
A fraqueza vencendo a noite forte,
A vida que passou fronteira morte,
O céu subindo do despenhadeiro.

Antes do fim, o canto despedida
Se erguerá das nascentes do futuro
Evocando a batalha já perdida.

Depois... então se faça a nobre pausa,
Para que o canto seja além do muro
O efeito imaginando nova causa.


SONETO DOS MUITOS EUS

Um eu ficou no mar aprisionado
E deixou-me por pés as nadadeiras;
Outro ficou nas nuvens caminheiras,
Por isso bato os braços no ar parado.

Um eu partiu menino ensimesmado
E ofertou-me palavras verdadeiras,
Outro amou suas sombras companheiras,
Outro foi só, e um outro de cansado

Caminhou pelos becos. Há também
Aqueles que ficaram na poesia,
Nos bares, na rotina, o eu do bem,

Do mal, o herói, o trágico, o esquecido.
Eu gerado por mim na liturgia
De um todo para tantos dividido!


CREPUSCULAR

Quando a tarde afogar toda a inocência,
É preciso partir. Galgar as dunas,
Sonhar balsas no lodo das lagunas
E sentir junto aos pés essa inclemência

De sáfaras colheitas. E a vivência
Povoá-la de infinito nas lacunas
Herdadas, e plantar outras colunas
Na colina do vento, sobre a ardência

Dos sentidos enfermos fustigados.
É preciso partir mesmo que a onda
Do que há de vir inunde os desgarrados;

Gravaremos a fogo nossa sorte:
— Entre o verbo partir e a frase — sonda,
A força de viver e o dom da morte.


SONETO DA CONTRADIÇÃO

Ardo em contradição, em ti procuro
A terra fugitiva, o céu perdido,
A calma que não tenho, o sol futuro,
As asas de meu vôo decaído.

Em meu bronze sem som o tempo é ido;
Na praia vã inutilmente auguro
Forças secretas, mar imperecido,
E tudo se transforma em chão escuro.

Entre cantos de nuvens e sereias,
Ardo em contradição dentro de abismos,
Blasfemando com punhos de inocência.

Sinto o nome apagar-se das areias,
E outro nome nascer de outros batismos
Em teu céu interior de permanência!


DA INSÔNIA SOBRE O SONO

Minhas fronhas cobrindo um grande sono
Que não identifico mas que sinto;
Lençol impenetrável, mar extinto
Onde rios se integram no abandono

Do não fluir, e a noite em seu quimono
De negação, em seu destino tinto
De olhos, de chuvas e de amor faminto,
Passa em terras sem lei, sem paz, sem dono.

Minhas fronhas insones, pervertidas
De elocubrar, indagação suspensa
Em cortiças, em penas atrevidas,

E entre painas viajeiras. Deito o rosto
Em seu sono interior. Faz-se a presença
Do reino que regressa ao rei deposto.


A CIDADE NEBLINA

A cidade neblina com seus vícios,
Seus crimes, suas flores, seus viadutos
Onde os homens se anulam como frutos
Voltando à terra, e cantam precipícios.

A cidade povoada de comícios
De amor e fome, impulsos devolutos
Florindo solitude entre fictícios
Arcabouços, e sempre dissolutos

Bosques de som. E tudo se revela
Na teia dos destinos que caminham
Para o oco das coisas, para a fonte

Onde naufragam prédios na procela,
E os fluxos de existir crescem, definham,
Como naus construídas de horizonte.


DO CAOS

Invento este soneto onde procuro
Surgir de um ventre de palavras novas,
Nascer de mim, de ti, de tantas provas
Que me iniciam como um deus futuro.

Modelo sensações num mundo escuro
Onde semeio o corpo pelas covas,
Berços de terra, fonte onde renovas
As vidas que guardaste com meu muro.

Enquanto pelo céu as grandes naves
Vão sangrando de azul as descobertas
E os anjos vão ficando inda mais graves,

Invento este soneto de granizo,
Ferindo em minhas folhas entreabertas,
O caos que se transforma num sorriso.


TEMPO REVERSO, X

Os dormentes da estrada inda galopam.
Não são potros, nem rios, nem fazendas
Onde chegar com malas e moendas
De triturar vazios, e onde tocam

Sanfonas em varandas que hoje evocam
Os mortos, as partilhas, as contendas.
São apenas dormentes, quase lendas,
Demandas e fronteiras que provocam

O cismar de meninos já crescidos.
Só paisagens subindo na mangueira,
E apitos em mourões apodrecidos.

Não são rios, nem potros, são crianças
É fumaça vestida à marinheira:
— Sonhai, dormentes! silenciai, lembranças!


TEMPO REVERSO, XIV

No desenho da planta somos feitos
De intenso imaginar. Céus e ancestrais
Terrenos se encontraram para mais
Certeza vir-a-ser, e muitos peitos

Amamentaram vigas e defeitos
(Estruturas surgindo cafezais),
E os avoengos de corpos estivais
Esculturaram dias em seus leitos.

E depois, o sonhar destes mirantes
Proibidos, alabardas de infinito
A receber sentenças. Oh! distantes

Tetos de chumbo, nuvens de concreto:
— Falai a nós da audácia, queda e grito,
Dos anjos que empreitaram tal projeto!


TEMPO REVERSO, XVIII

Nós, senhores de léguas, donatários
Do tempo que é sertão; de muitas milhas
De costa, herdeiros recebendo as filhas
Da terra descoberta em rumos vários

Mal sabemos de nós, os perdulários,
Os que esbanjam lonjuras em guerrilhas,
Fidalgos de alma ruiva, reis de quilhas
E proas apertando calendários.

Nós, senhores de léguas, e mendigos
Da chama de um momento onde pervagam
Os serros, os cocares inimigos.

E o fim, senda e regresso, pluma a arder
No gorro audaz, e os passos que se apagam
Em sesmarias do deixar de ser!

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes