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Paulo Fernando Henriques Britto (Rio de Janeiro RJ 1951)

Em Britto o soneto não se multiplica em número, mas em gênero, experimentando as possibilidades métricas e estróficas sem negligenciar as intrincadas implicações temáticas. Ao redesenhar as parnasianas relocações estróficas, Britto se inclui entre os exímios sonetistas da atualidade.
Embora apegado ao modelo petrarquiano e ao cânone camoniano, Também me rendo esporadicamente à experimentação, como no "parassoneto" abaixo, no qual homenageio Paulo Henriques Britto e seu alternativo esquema estrófico, que padronizei rimicamente em AA BCB DEED BCB AA, onde o conceito da chave de ouro abre e fecha o poema, retornando ao ponto de partida:


SONETO 406 PAULINDRÔMICO

Ter algo que dizer não é o que conta.
O "como" é que o poeta faz de monta.

Algum palestrador alega assim,
que o verbo é pedra em si, não ferramenta.
Mas isso não é cláusula pra mim.

Prefiro achar que ter um bom motivo,
além do jeito, é justo requisito.
Concordo, enfim, com Paulo Henriques Britto
que existe inspiração num verso vivo.

Ocorre que um poema é meio e fim,
porém precisa ser de alguém que enfrenta
dor, fome, angústia, azar, algo ruim.

Não basta o "como" em verso ou prosa pronta.
Temer o tema é o medo que amedronta.


Glauco Mattoso Eis uma amostra da versatilidade de Britto: SONETO INGLÊS A surpresa do amor — quando já não se espera do mundo nada em especial, e a evidência de que os anos vão se acumulando sem nenhum sinal de sentido já não dói nem comove — quando em matéria de felicidade não se deseja mais que uns nove metros quadrados de privacidade para abrigar os prazeres amenos do sexo fácil e da literatura difícil — eis que então, sem mais nem menos, como quem não quer nada, surge a cura — definitiva, radical, imensa — do que nem parecia mais doença. SONETO BLOCADO Dizer não tudo, que isso não se faz, nem nada, o que seria impossível; dizer apenas tudo que é demais pra se calar e menos que indizível. Dizer apenas o que não dizer seria uma espécie de mentira: falar, não por falar, mas pra viver, falar (ou escrever) como quem respira. Dizer apenas o que não repita a textura do mundo esvaziado: escrever, sim, mas escrever com tinta; pintar, mas não como aquele que pinta de branco o muro que já foi caiado; escrever, sim, mas como quem grafita. SONETO SIMÉTRICO Tão limitado, estar aqui e agora, dentro de si, sem poder ir embora, dentro de um espaço mínimo que mal se consegue explorar, esse minúsculo império sem território, Macau sempre à mercê do latejar de um músculo. Ame-o ou deixe-o? Sim: porém amar por falta de opção (a outra é o asco). Que além das suas bordas há um mar infenso a toda nau exploratória, imune mesmo ao mais ousado Vasco. Porque nenhum descobridor na história (e algum tentou?) jamais se desprendeu do cais úmido e ínfimo do eu. SETE ESTUDOS PARA A MÃO ESQUERDA, I Existe um rumo que as palavras tomam como se mão alguma as desenhasse na branca expectativa do papel porém seguissem pura e simplesmente a música das coisas e dos nomes o canto irrecusável do real. E nessa trajetória inesperada a carne faz-se verbo em cada esquina resolve-se completa em tinta e sílaba em súbitas lufadas de sentido. Você de longe assiste ao espetáculo. Não reconhece os fogos de artifício, as notas que ainda engasgam seus ouvidos. Porém você relê. E diz: é isso. II Tento dizer: a tarde tem o tom exato de outra tarde que conheço, mas qual? (Mas neste instante escuto o som de uma outra voz, que é minha e desconheço, e o que ela diz é belo, é certo e é bom. Mas o que digo assim não reconheço. É como um deus de bolso, esta presença que o próprio gesto de negar evoca. A voz é dela, embora me pertença a música. E mais a mão que a toca.) Naturalmente, enquanto isso a tarde se apaga, anêmica, despercebida, e vem a noite, com seu negro alarde. Desde o começo a causa era perdida. III Sou uma história, a voz que a conta, e o imenso desejo de contar outra diversa, que porém não deixasse de ser essa. Palavra que não digo e que não penso e no entanto escrevo — eu sou você? (Mas não era isso o que eu ia dizer, e sim uma outra coisa, obscura e bela, que sei, com uma certeza visceral, ser a verdade última e total — e só por isso já não creio nela, pois a certeza, tal como a memória, é por si só demonstração sobeja da falsidade do que quer que seja —) Mas isso já seria uma outra história. V Não é assim: os dias claros, noites límpidas, cada gaveta satisfeita em seu lugar, e a consciência administrando tudo isso — Nada é assim. Nada é tão bom. Na hora H algum detalhe escapa, talvez uma vírgula fatal, ou falta o risco no meio do A, e o mundo vira um caos de músculo e metal. Ou então o dia até que cumpre sua rotina sem aporias nem contradições, mas mal a noite desce as velhas dúvidas cretinas levam de volta ao estribilho inicial, ao X do problema: as coisas fora de esquadro, o desajuste entre o desejo e o vegetal da consciência, complacente, amputada. VI Nenhuma lição nesta paisagem que não o fartamente conhecido: as coisas nos lugares, engrenagens do estar-em-si, do tudo-é-relativo, etc. A mesma grafitagem inconseqüente de sempre: rabisco logo existo. — O mundo segue opaco, imune à consciência e seus lampejos de lógica, sua falta de tato, sua avidez, seus deuses e desejos. (Aqui termina o sonho. Fim das névoas, caramelos e almofadas formidáveis. Daqui pra frente, as portas sem remédio e todas as maçãs assassinadas.) VII A solução difícil. As adversárias. Escrever a contrapelo do papel. E aquela que acabou sendo riscada — calou-se, escapuliu, não se rendeu — era precisamente a procurada. Sobrou só isso que, leitor, é teu. Só isso, sim. Que ao mesmo tempo é tudo. Um suscitar de sílabas — não mais a deusa atarantada a nos soprar um vento em nosso ouvido (aliás surdo) — e no entanto cabe dentro um mundo, um universo, um homem a espernear. Um que afinal domou as adversárias, essas palavras que me deixam mudo. ATÉ SEGUNDA ORDEM (10 DE OUTUBRO) Até segunda ordem estão suspensas todas as autorizações de férias, viagens, tratamentos e licenças. É hora de pensar em coisas sérias. Deve chegar mais um carregamento até o dia quinze, dezesseis no máximo. Fui lá em Sacramento, mas não deu pra encontrar com o tal inglês — será que alguém errou o codinome? Confere aí com quem organizou o negócio todo. Bem, amanhã a gente se fala, que agora a fome está apertando. (Ah, o padre adorou o canivete suíço de Taiwan.) (9 DE NOVEMBRO) Tudo resolvido. O campo de pouso até que é razoável. Mas o tal de Carlão, hein, vou te contar. É nervoso, não sei; parece que sofre de mal de Parkinson, ou coisa que o valha. Mas isso é o de menos. O pior é que o "Almirante" desde terça tomou chá de sumiço. Não sei que fim levou; é preocupante. Chegou a encomenda de Lisboa. O número é 318. A senha: "O olho esquerdo de Camões não vale uma epopéia". (Essa é boa!) Não agüento mais ter que jantar biscoito. No mais, tudo bem. Aguardo instruções. (21 de dezembro) Sim, recebi a carta do João. Só que o seu telefonema da sexta já havia alterado a situação completamente. É, o Bento é uma besta, mas você, também... Nessas horas é que se vê que falta faz um profissional. Você nunca vai ser como era o Alex. Mas deixa isso pra lá. O principal é que o negócio está de pé, ainda. O que não pode é pôr tudo a perder a essa altura do campeonato. Não diga nada, nada, à dona Arminda. Toma cuidado. Conto com você. Aguarde o nosso próximo contato. (12 de janeiro) Por quê que ninguém me deu um aviso? Pra que que serve essa porra de bip? Assim não dá. Que falta de juízo, de... de... sei lá! Eu lá em Arembipe dando duro, e vocês aí de pândega! O deputado, é claro, virou bicho, e não vai mais ajudar lá na alfândega. Meses de esforço jogados no lixo! E agora? E o alvará do "Três Irmãos"? E os dez mil dólares do Mr. Walloughby? Não vou nem falar com o doutor Felipe. Vocês que agüentem o tranco. Eu lavo as mãos. Se alguém me perguntar, eu tenho um álibi perfeito: "Eu estava lá em Arembipe". (19 de janeiro) Até esta chegar às suas mãos eu já devo ter cruzado a fronteira. Entregue por favor aos meus irmãos os livros da segunda prateleira, e àquela moça — a dos "quatorze dígitos" — o embrulho que ficou com o teu amigo. Eu lavei com cuidado o disco rígido. Os disquetes back-up estão comigo. Até mais. Heroísmo não é a minha. A barra pesou. Desculpe o mau jeito. Levei tudo que coube na viatura, mas deixei um revólver na cozinha, com uma bala. Destrua este soneto imediatamente após a leitura. IDÍLIO Um sonho, musculoso e maternal, um sonho quer pacificar o mundo. Desejo de formas claras e puras, de nitidezes simples, minerais, certezas retilíneas como agulhas. Nada de nebuloso, frouxo ou úmido há de turvar o brilho do cristal de uma razão sem jaça e sem nervuras, sem óleos malcheirosos e carnais. O sonho, sorridente e diurnal, espargirá sobre um túmulo de dúvidas flores estritamente artificiais, entre diagonais e ângulos agudos. O sonho quer estrangular o mundo. HISTÓRIA NATURAL Primeira pessoa do singular: a forma exata da sombra difusa. Quem fala sou sempre eu a falar. A máscara é sempre de quem a usa. No entanto, é preciso dizer-se — mesmo que a moda agora mande (e a moda manda, e muito) acreditar que o eu é o esmo, o virtual, o quase extinto, o panda desgracioso da história do Ocidente, a devorar o alimento cru que já não sabe como digerir. Leitor amigo: pára. Pensa. Sente. Conheces bem o gosto do bambu, o ardor nas entranhas. Tenta não rir. BONBONNIÈRE I A seletividade da memória — a cor exata da pele, a textura, o odor de cada côncavo e orifício, o lábio, a língua, o dente, o plexo solar, a sola do pé, o suor e a saliva, a coxa arisca, a dobra escura, o beijo salobro, o sabor difícil, a carne assombrada, o esperma perplexo — falsa perfeição, mero artifício do tempo, a desmaiar todos os tons do que destoaria do desejo como um menino a retirar sem pejo da caixa que lhe deram os bombons de que ele abre mão sem nenhum sacrifício. IV Só não dói mais porque não é preciso. Se fosse o caso, a dor era pior. Não há nada nisso de extraordinário: A natureza odeia o desperdício, tal como o vácuo. Sem tirar nem pôr. É exatamente a conta necessária, até que alguma solução se encontre. O que aliás não acontece nunca. E isso também é natural. No entanto há sempre um tralalá, um deus, um bálsamo pra não perder a esperança e o bonde: A caixa de bombons. A "Marcha húngara" de Liszt. Ou Brahms. Um dos dois. Ou não. Tanto faz. A dor continua. Hoje é sábado.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes