|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Alexei Bueno Finato (Rio de Janeiro RJ 1963)

Um dos poucos contemporâneos que levam a sério o soneto e outros gêneros fixos, tão a sério que arca com o ônus da incompreensão dos confrades contrafeitos — postura que ele próprio fomenta ao rodar a metralha e alvejar civis com balas perdidas. Mas sua atitude estética, como os estudados passos retroativos de José Albano ou Abgar Renault, tem consistência e competência, o que me levou a refletir sobre o isolamento político-poético neste soneto:


SONETO 506 ENSIMESMADO

Quando Alexei Bueno se insurgiu
contra os pós-pós que a pó reduzem tudo,
poetas outros creram-no posudo
e tomam-no por curto de pavio.

Sustenta ele, contudo, em pleno Rio,
o centro dos modismos, seu escudo
heróico e solitário, que um estudo
isento e sério espera e inda não viu.

Que seja extemporâneo simbolista
e que em soneto o meta-tema meta
reputo como histórica conquista.

Ser único (eu que o diga) no planeta,
filósofo ou pornógrafo, é o que dista
uma sublimação duma punheta.

Glauco Mattoso Alguns exemplos do tirocínio de Bueno: EU FUI UM LOUCO Eu fui um louco que viveu cem anos Compondo um gigantesco manuscrito... Madrugadas profundas de proscrito Gastei sobre o papel dos meus enganos. Memórias dos delírios mais insanos, Razões petrificadas de algum grito, Anotei, registrei, pus por escrito Na chama congelada dos meus planos. Quando enfim fui chegando junto à morte Vi que tudo escrevera, e ri da sorte, Que as páginas tocavam já nas sancas. Foi aí que enxerguei, oh! dor distinta! Que nunca na caneta houvera tinta, E a morte entre um milhão de folhas brancas! LEVANTO-ME EM MEU QUARTO Levanto-me em meu quarto, escuto as teias Soprando, e abro a janela num impulso... Lá embaixo a lua estranha toma o pulso Do lago que tem febre em suas veias... O vento então abraça-me as candeias, E as chamas a chorar um choro insulso Transformam-me as paredes num convulso Festim de mais de mil sombras alheias. Jamais eu fui tão só! Em torno a mim Vultos riem e bebem, mas nas águas Cabelos vão ao fundo, e tudo rui! Barcos choram rondando o próprio fim. Oh! lua! Oh! meu festim de tantas mágoas! Ah! sombras dos luzeiros que eu não fui! O VENTO E AS ERVAS O vento e as ervas que não sonham nunca, Que há anos se encontram, mas não se conhecem; O vento e as ervas que jamais se esquecem Pois nem recordam do que o chão se junca; O vento e as ervas que há um milênio tecem Em se enfrentando uma imutável voz Sem nunca ouvi-la, e que dão medo aos pós Com gestos vãos que nem lhes obedecem, A eles pertence a glória e o reino eterno Pois não são nada, e nada dói ao nada, Nem vão tão longe as maldições do inferno... Rindo entre os gritos, se enforcando ao chão Como bufões cuja alma foi roubada... O vento e as ervas permanecerão. QUANDO A MANHÃ Quando a manhã traspassa os ventres dos vitrais Reis e rainhas de ninguém, sangrando as bocas, Lembram com sede das suas taças... sons, cristais... Onde o vazio é hoje o licor das cortes ocas. Mas estas que ardem num museu, nem sabem mais Dos seus senhores que não são, mas que usam toucas, Pois, vinho ou vida, o nada é um só, a estranha paz Que causa espanto nos cadáveres das loucas. Ah! condenados a fingir... quando anoitece Vítrea e menor uma outra morte apaga a dor Dos seus semblantes de detrás, nunca esquecidos... As mesmas faces onde um ódio enorme cresce Se sopra alguma tempestade, e têm no alvor Débeis sorrisos sem depois, desiludidos. O INALCANÇADO (II) Que visão horrorosa esta que eu sinto! É a morte? Um fantasma? Um esqueleto? Não! É o sonho, o meu sonho, sobre um preto Veludo feito em luz, claro e distinto. Mas se o vejo, no entanto, eu tenho asco Como a barata o tem de um prato honroso, Como a razão a um crime incestuoso, Ou a vítima à mão do seu carrasco. A verdade, porém, não seja dita, Que eu o cego de mim, visão do mundo, Odeio é a esta mão que eu trago dura. E o não vê-la em meu sonho é o que me irrita E o não ver-me ao seu lado é o negro fundo, Que da sombra onde estou a luz é escura. O MAGO Eu amo os bosques e as ruínas e os conventos E toda parte onde o mistério nos destrua, Pois nada vale ir decifrar com gestos lentos A mão sem causa que fez tudo e a tudo estua. Era impossível que algo houvesse, e tais tormentos Vêm de ainda assim este algo haver, enquanto a lua Que por verdade não nascera assopra os ventos Aos nossos olhos também falsos desta rua. Oh! alamedas, catedrais, sombras pendentes, Por ser sem fruto ainda buscar nos entregamos De uma só vez a este mistério que encarnamos, Numa volúpia de esquecer, da noite ausentes, Como o mendigo que sem forças para a sorte Se entrega inteiro à sua garrafa e à sua morte! ORGULHO De entre essas tantas faces cruas Que nunca viste e nem te viram, Desses pés todos que feriram Num sonho oculto as pedras tuas, Dessas mil mãos que à luz das luas Atrás de alguém por ti seguiram E em ti com outras mãos fremiram Por sob os magros tetos, nuas, Desses milhões de olhos sem brilho Apenas eu, teu mais vil filho, Fui quem te ergueu, Cidade informe, Porque és em mim, enquanto afundas Junto às legiões de que te inundas, Morta, vivente, eterna, enorme! METEMPSICOSE Eu fui pária do Elam na hostil Mesopotâmia, Na guerra um cão de Assur partiu meu crânio em mil, Levaram de troféu nosso membro viril Para Assurbanipal medir a sua infâmia! Marinheiro no Egeu, por uma jovem sâmia Me apaixonei, casei-me. Um mês depois o hostil Poseidon me bebeu. Logo Hades, no antro vil, Mostrando-me a que amei, gritou-me: Agora ame-a! Em Roma converti-me, e fui entregue às feras... Nas grutas de Bizâncio, um já senil asceta, A peste me levou. Passadas muitas eras, Lutando por ideais, findei sob as esporas. Depois fui rufião. Matei-me. E agora, poeta, Invento estas mentiras para encher as horas... A FLORBELA ESPANCA Amada, por que eu tive a tua voz Depois que o Nada teve a tua boca? A lua, em sua palidez de louca, Brilha igual sobre mim, e sobre nós!... Porém como estás longe, como o algoz De um só golpe sem fim — a Morte — apouca Os gritos dos que esperam, a ânsia rouca Dos que atrás têm seu sonho, os grandes sós! Aqui não brilha o mundo que engendraste Como o manto de um deus, e astros sangrentos Não nos rolam nas mãos da imensa haste. E só estes olhos meus, que nunca viste, Se incendeiam, vitrais na noite atentos, Voltados para o chão aonde fugiste! DE TANTO VER De tanto ver o que se perde e ser assim O meu olhar é o se lembrar seco de um lago Onde este quarto e este meu ser afundo e apago No haver dos mortos feitos tela e próprio fim. E o vento leva em meu armário o que há de mim, O que nas roupas do que é morto sou um vago Rosto de bronze que vomita um mar aziago No qual me esqueço de onde vou pelo que vim. Taça de vinho sem o vinho e sem a taça, Segunda sombra que não vibra mas me vela Quando em memória até o haver de hoje se passa... E como um louco lembro ser o que é agora Igual aos mortos recordando-me na tela Em seu silêncio que é o meu Deus e a nossa hora. DOIS SEGUNDOS Dois segundos marcaram-me no mundo E em meio a esses dois muros esmagado Não quero nada mais, que o desejado Só vale em não se ter seu ser imundo. Ausência e vácuo são meu bem profundo E nem o nada espero, pois, sonhado, Pode até mesmo o nada ser negado Com algo que o exista no seu fundo. É inútil respirar... à nossa frente A vida é como o imóvel sol presente E tudo às nossas costas se perdeu. Lá atrás, onde esqueci-me de o sonhar, Meu futuro ainda insiste em procurar Alguém que o levaria e não fui eu. SE NUNCA A UM CEGO Se nunca a um cego nato alguém falasse As palavras cegueira, ou vista, ou cor, E do mundo a feição falsificasse De um modo em que normal fosse o negror, E das artes do ser só lhe ensinasse As que as trevas têm forças de compor, De forma que o universo aparentasse Ser lógico no escuro esmagador, Este cego, educado em outra História Sem pintores, sem astros e sem glória, Forjada em mãos e sons, mesquinha, aqui, Um dia, a colher ervas, preso à estrada, Sentiria em seus olhos mais que o nada, E o horror de algo que falta. Igual a ti. POBRES PORTAS Pobres portas negras das carpintarias Recendendo a cedro... portas das quitandas Pondo sacos sujos no ar entre as lavandas Que sobem das portas das perfumarias... Cheiros a sangrar tão cedo quanto os dias Das portas dos talhos, a alma das viandas, Perfumes de pães se erguendo em nuvens brandas Lácteas quais lençóis, portas das leiterias Com o odor da aurora, portas dos bazares A barbante e a pano, dedos dos manjares Nas portas de pasto, anônimas fragrâncias De outro mundo e mofo a vir dos antiquários, Portas do além, velas, cera, e sob os vários Umbrais, o ar do porto, a porta das distâncias! RONDA (II) Oh! almas miseráveis, que adornais esquinas, Vagabundos velhos, que ninguém mais cura, Sarnas e gangrenas numa ruela escura Onde os prédios fedem, como as vossas sinas. Quem me dera ver-vos a escarrar nas tinas... Meretrizes gordas, roxas de tintura, Peles que se soltam sob uma atadura, Almas com piolhos... Babas assassinas... Quanto custa crer que em vossos corpos tortos, Quando os vejo à noite, pode vir o sol!... Esta carne agora já cheira ao formol... Lá ela boiará quando vós fordes mortos... E eu que estarei vivo chorarei então Ao tocar com nojo o vosso coração. TUDO QUE AO HOMEM Tudo que ao homem com dor ou nojo Feriu um dia, cairá no chão Como uma fruta que tem no bojo Dentes gritando três letras: não! Tudo que do homem fez um estojo Para a imundície, arderá então Com mil esgares, e o que um despojo Moldou de um ser, será o seu irmão! Como uma fruta podre e pesada, De rosto horrendo, a boca amarrada, O mal cairá no chão, possuído. E os pés da vida pisarão nele Esmigalhando-o, nem pó, nem pele, Até que nunca tenha existido!

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes