|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Ronald de Carvalho (Rio de Janeiro RJ 1893-1935)

Foi o representante carioca do primeiro grupo modernista e fez a ponte entre os poetas do Rio e os paulistas. Mais interessante como ensaísta, alguns de seus sonetos têm, contudo, a formal curiosidade do metro irregular com preservação da rima. Abaixo vão exemplos, dentro e fora do cânone:


ÊXUL [OS SONETOS DO SANGUE]

Esse que sabe rir vai à festa da Vida...
— Quantos já vi passar neste longo caminho,
com os olhos postos no alto e a boca ressequida,
desejosa de sol, de pâmpanos e vinho...

Vão em busca do céu na alameda comprida
que se perde lá baixo... e eu sempre a olhar, sozinho
a audácia dos que vão para o orgulho da lida,
transpondo luar a luar, vencendo espinho a espinho...

— Caem rosas... depois... outras rosas vêm vindo...
outras rosas cairão... outras virão... e eu preso,
a ver os que lá vão pelo caminho infindo...

— Mas todos ao voltar trazem no passo triste
no lábio êxul, nas mãos senis, no olhar aceso,
a mentira imortal de tudo quanto existe...


[de OS SONETOS ÍNTIMOS]

Longas mãos que teceram meu Destino
longe de mim... sem que eu as visse, como
invisos fios de um tear divino
que procuro domar... mas que não domo...

Longas mãos com que todo me ilumino,
que vieram para mim, sem um assomo...
Meigas... como a canção de um velho sino...
— Pomo do bem... ai!... desejado pomo...

— Ânsia da minha Vida... só com ter-vos
minha Felicidade encontraria
dentro do desespero de meus nervos...

Benditas mãos que me fizeram monge
e que me acenam, na Distância fria,
como um adeus... uma asa branca... ao longe


Maldição de te amar contendo o Amor a custo...
— Sobre a lava que estua a contrição que esfria,
..o gelo para as mãos... e o desespero adusto
dentro da alma incendiada... êxul apostasia...

Cada gesto desenha a tortura de um susto,
exprime a idéia flava, uma sílaba fria,
morre a íntima expansão, como um mirrado arbusto
que, à míngua de ouro e Sol, murchasse de atonia...

Nos meus nervos pagãos a estesia se gasta,
— exsurge-me do sangue a evocação dorida
de um Templo devassado... um braço iconoclasta...

E chego... e me contenho... e o meu olhar se inflama
e, outra vez... outra vez... para a glória da Vida,
a eterna maldição de ser gelo e ser chama...


..E o veleiro partiu... para os longes, no Poente,
e o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio...
— A Saudade da luz e a Saudade da gente,
a invernia do olhar, e os nervos sem estio —

E eu me deixei ficar, contemplativamente,
olhos cheios de Sol, de ouro flavo e sadio...
— Na fluida limpidez da tarde transparente
setembro havia posto um colorido frio...

..E o veleiro partiu, de velas soltas, no alto,
para a glória do Mar, na paisagem violeta
do Outono, entre calhaus e cimos de basalto...

E, com ele, foi, também, panda, num desvario
de asas brancas, para o ar, uma última goleta...
..E o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio...


VIDA

Para um destino incerto caminhamos,
Tontos de luz, dentro de um sonho vão;
E finalmente, a glória que alcançamos
Nem chega a ser uma desilusão!

Levanta-se da sombra, entre altos ramos,
Como um fumo a subir, lento, do chão,
A distância que tanto procuramos,
E os nossos braços nunca atingirão...

Mas um dia, perdidos, hesitantes,
A alma vencida e farta, as mãos tateantes,
De repente, paramos de lutar;

E ao nosso olhar, cansado de amargura,
As montanhas têm muito mais altura,
O céu mais astros, e mais água o mar!


ROMANCE

Na névoa da manhã, tranqüila e suave
Vieste do fundo incerto do passado;
Ainda tinhas o mesmo passo de ave,
E o mesmo olhar magoado...

Entre os rosais vermelhos tua boca
Era a rosa mais linda e mais vermelha;
E como, em torno dela, inquieta e louca,
Ia e vinha uma abelha!

Mas não paraste, como antigamente,
Nem me estendeste a leve mão dolente,
A leve mão de irmã.

Passaste... E, pelos campos, que alegria!
Pássaros, águas, plantas, tudo ria
Na névoa da manhã...


DESTINO

Ainda menino, disse-me, um dia,
A voz oculta do coração:
"Terás da terra toda a alegria
Na tua mão".

Ah! duro engano, quem o diria!
Louco de espanto, de inquietação,
Só vi tortura, melancolia,
No mundo vão...

Ouve, criatura de alma inocente,
Ouve, e medita, porque não mente
Quem isto diz:

Na vida cheia de falsidade
Só quem deseja a felicidade
Não é feliz...


ONDE PUSERDES

Onde puserdes vosso Amor,
Logo achareis mágoa e tortura:
A vida é feita de doçura
E, ao mesmo tempo, de amargor.

Andam, assim, prazer e dor
No mundo vão, tão de mistura,
Que separá-los é loucura,
Sobre loucura, dissabor:

Mas é costume, infelizmente,
Costume mau, de toda gente,
Querer ventura sem travor,

Tomai, pois, tento, que, em verdade
Não vereis só felicidade
Onde puserdes vosso Amor.


QUEM TEVE À MÃO

Quem teve à mão o fruto cobiçado
Quem alcançou, bastante desejar,
No lábio triste o beijo demorado,
Na alma, o sonho feliz, o sol no olhar

Quem abismos transpôs, como um Cruzado,
Entre incêndios de luz, num rebrilhar
De aços polidos, e ouro derramado,
Brandindo a espada chamejante no ar;

É quem, dolente, e em reverência, agora,
Todo se curva, pálido, Senhora,
A fronte, e a gorra de veludo ao chão!

É quem, sob a invencível armadura,
Diante de tão serena formosura,
Sente tremer de medo o coração!


PASTORAL

O carro das vindimas, lentamente,
Com as rodas de ouro e bronze bate o solo;
Nos morros arde a púrpura do poente,
Na sombra espiam ninfas de alvo colo.

Em derredor faz ronda a rude gente
De rijos cornos, frauta a tiracolo,
Sátiros, faunos; e, num bando, à frente,
Mênades brutas roncam contra Apolo!

Dos pâmpanos virentes rompem bagos,
Nas ânforas o mosto flavo oscila,
Em reflexos metálicos e vagos.

O ar embebeda as fontes, no caminho,
E pela tarde tépida e tranqüila,
As águas, tontas, sonham que são vinho...


TRANSFIGURAÇÃO

Quando o silêncio vai crescendo, quando
O poente acende os lírios de marfim,
As tuas mãos parecem pombas, voando
Na penumbra macia do jardim,

Como um cristal ressoante vais passando,
Com perfumes nostálgicos, por mim;
E teus braços, de um talhe real e brando,
São dois pavões de espuma e de cetim.

Súbito, é um caule ideal teu corpo esguio,
Uma folha que esvoaça, no arrepio
Da ramaria ondeante dos chorões.

Mas, depois, vestes o ar de estranho luxo,
E, numa refulgência de clarões,
Lembras a chuva de ouro de um repuxo!


AVATAR

Antes, a alma que tenho andou perdida.
Por que mundos rolou, que mão sutil
Pôs tão nobre fulgor, e estranha vida,
Nesse bocado de ouro e barro vil?

De certo, árvore foi: verde jazida
De ninhos, sob o céu de espuma e anil.
E foi grito de horror, na ave ferida,
E, na canção de amor, sonho febril!

Foi desespero, sofrimento mudo,
Ódio, esperança que tortura e inferna;
E, depois de exsurgir, triste, de tudo

Veio para chorar dentro em meu ser,
A amarga maldição de ser eterna,
E a dor de renascer, quando eu morrer!


A RESPOSTA DO HOMEM

"Homem! que queres mais? Dei-te a alegria
Que move os mundos harmoniosamente;
E o céu cheio de estrelas, e a poesia
Da aurora casta, e a lágrima do poente."

"Dei-te a floresta espessa, e a pedraria
Límpida, a água das fontes, transparente,
E o vinho de ouro, a flor trêmula e fria,
E o silêncio mais sábio que a serpente..."

"Dize, que queres mais? O amor, a glória,
A força, ainda mais bela que a Beleza,
A eternidade na hora transitória?"

"Que queres mais, se as tuas mãos têm tudo,
Se é toda tua a imensa Natureza?"
E o Homem olhou a terra, e ficou mudo...

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes