|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

COTRIM, LUPE (pseudônimo)
Maria José Cotrim Garaude (1933-1970)

Conhecida de alguns pela TV, de outros como professora da ECA (USP), para a poesia deixou o que seu filho selecionou mais de uma década após sua morte prematura. A parcela correspondente aos sonetos dá idéia do domínio que só teria a ganhar em quantidade caso a autora vivesse e publicasse mais:


NEM UM PROFUNDO MAR

Não sou uma vitória ou uma derrota,
mas me conquisto sempre cada dia,
procurando essa forma mais remota
do que em mim nos instantes se perdia.
Nem um profundo mar, nem superfície,
nem vento ou pedra: leve, na existência,
balanço entre as montanhas e a planície
com asas no sentir, preso à consciência.
Tudo o que é meu anseia uma amplidão,
de um céu inacabado a nostalgia.

É o peso desta terra em minha mão.
E enquanto espero o mundo na Poesia
enfim suprir, eu luto e mais persigo
esta idéia de mim, que não consigo.


IDADE DO SONHO

Tens perfil de alameda. Nos teus olhos correm
gotas de luz e mel, a procurar o dia,
e como a terra e o mar, que estranhos se percorrem,
és líquido e perene em minha fantasia.

De ti, uma pantera surge no menino
em que descansas. Braços de floresta antiga
são teus gestos de musgo onde teço meu hino
e em teu mistério verde o meu medo se abriga.

Por certo vou temer-te. És pântano selvagem
embora de doçura; se eu seguir teu rumo
afundarei sozinha em névoas de miragem.

Para poder tocar-te é necessária a idade
do sonho. Mas em vão eu ando e te resumo
pisando em minha volta a espessa realidade.


SONETO CAMONIANO

Se anunciada foi vossa partida
e por clarins de lírios proclamada,
se sangrais nessa ausência minha vida
que o vosso ardor retém aprisionada;

se em vosso ser eu vejo-me represa
— livre corrente em posse perturbada —
se soubestes ao ver-me derrubada
erguer em mim a vossa fortaleza,

como quereis, senhor, que eu me liberte
só porque desejais assim partir
a uma nova paixão que vos desperte?

— Quisestes que eu tivesse a vossa crença
e me exigistes tanto ao possuir,
que eu sigo junto a ser vossa presença.


DESTINO MINERAL

Sou feita de uma carne perecível
futuro de outra carne, sem nenhuma
eternidade. A rocha é uma invencível
parte da terra; que ela me resuma
no seu mesmo destino mineral.
A solidez ausente que tortura
nossa matéria frágil, no final
se renderá: serei de pedra dura.
Nunca mais chorarei nessa passagem

de poesia. Com nítida certeza,
recorto nas montanhas minha imagem
mais que raiz, expressa na beleza.
Pela terra em que não me desfiguro,
hei de surgir um dia em cristal puro.


A RAIZ COMUM

Esse equilíbrio incerto em que vario,
fechada num consciente paradoxo,
esse saber instável e ortodoxo
e a angústia de ser porto e ser navio.

Essa ambição contínua do meu gosto,
esse céu, em que não confraternizo,
essa dor escondida no seu riso
e essa paz defendida no meu rosto.

E dentro de mim, gritando em atropelo,
desejo de presenças e raízes,
desejo de ser mais do que a partida.

Mas o cenário frio ao nosso apelo
e esses homens partidos em países
e a morte, um grito surdo desta vida.


A RAIZ COMUM (II)

Só quero ver o meu conhecimento
capturado em instantes, não a esmo,
precisarei de ser, a tudo atento,
um objeto e sujeito de mim mesmo.

Sujeito sou, entregue ao sentimento
mas objeto me encontro só em ti,
caso eu habite a mais teu pensamento
que percebe o contorno em que me ergui.

Dentro de mim, sem ter jamais saída,
sem perspectiva para a consciência,
no que conheço está minha metade.

Em ti, onde caminho refletida,
é que vou sempre, em tua referência,
unir e sustentar a identidade.


NAU DE ASSOMBRO

O teu amor decorre na procura
da mulher ideal, de tudo ausente,
que existe sem passado, e que consente
em ver-se como a vês, clara ou impura.

O juízo é teu — de como deve ser —
sem condições reclamas o ensejo
de destruí-la, moldá-la a teu desejo,
e só fechada em ti pode viver.

Mas se alguma mulher que se pareça
com aquela que sonha o teu receio
sincera a paixão se te ofereça,

desaparecerá de modo triste,
pois lhe dirás um dia, frio e alheio,
que ela é toda mentira, e não existe.


NAU DE ASSOMBRO (II)

Só restou deste amor o inacabado
das palavras. Na ausência dos limites
perdeu-se em medo. Em mim idealizado,
tornou-se pó, na carne em que resistes.

De um futuro na posse do infinito
tombou nosso cansaço. Em minha entrega
jamais te reencontraste pois teu mito,
a própria Galatéia desintegra.

De tudo só restou o espaço triste
desta perda que a nossa vida assombra.
Restou o meu olhar, refeito em aço.

Restou-me essa fuga em que persistes
e na muralha erguendo tua sombra
petrificou-se em dor o meu abraço.


NAU DE ASSOMBRO (III)

A face nova em nova circunstância.
O rosto liso. Os olhos de água pura
configuram-se em âncoras futuras
olhando persistentes como a infância.

Mal não existe que não foi sofrido;
pelos campos da face dor não houve
mais percorrida: e a este rosto aprouve
continuar intacto e renascido.

Sua expressão é porto sem saudade.
Lava-se em mágoas e no mar encanta
seu ritmo de esperança na corrente.

E entre o indeciso caos e a tempestade,
como farol de estrelas se levanta
sorrindo um mundo exato e diferente.


AMAR DE AMOR, AMOR DE AMOR

— Em mim sonhas um mar, um horizonte
murmuravas. — Ao ver-me rio e vento
sabes que ao ser apenas lago e fonte
és imóvel, e sou teu movimento.

E sonhei mais. Que em volta do teu rio
fosse eu contorno e no teu vento eu fosse
a flexível resposta de um navio
saciando essa procura que te trouxe.

E sonhei mais ainda pois sonhei
também que me sonhavas. Descobri
que nem mesmo sonhaste o que te amei.

Na manhã do teu rio em que me apago
ficaram, desse sonho onde vivi,
as águas tristes que não foram lago.


AMAR DE AMOR, AMOR DE AMOR (II)

Que o amor assim perdido se conforme
e renasça na forma de outro amor,
embora sem ser meu. Que se transforme
num sorriso distante desta dor.
Que as mãos, assim crispadas pelo sonho,
repousem finalmente na verdade
aceita e compreendida em que disponho
os limites da estreita realidade.
Que o rumo onde te amava e me perdia
em tristeza tão grande não incorra
sobrevivendo a altura em que eu vivia.
Que poesia e não lágrimas escorra
dos meus olhos. No sonho já desperto
seja água a responder ao teu deserto.


AMAR DE AMOR, AMOR DE AMOR (III)

Pouco sabeis de mim. Hoje percebo
que o segredo mais puro do que sou
vos é desconhecido. É um arremedo
apenas do que sinto o que vos dou.
Se é receio vos largar o coração,
talvez eu tema. Sei o que é silêncio,
a magia de compor a solidão
uma outra vez. E sei que não convenço
vossa distância em minha entrega. Perto
ou longe, sois limite próprio. Surda
é em vós essa paixão em que desperto
um arrepio que vossa paz perturba.
E intensa me contenho e mais não faço
para atrair-vos ao céu que vos disfarço.


AMAR DE AMOR, AMOR DE AMOR (IV)

Tudo acabou, bem sei, mas não importa.
Não é só de futuro que amor vive.
O tempo em que se amou não mais se corta
de nós; ainda sou muito do que tive.

Nessa entrega também me pertenci.
Tive dois corpos, duas almas, em braços
mais longos envolvi o mundo. Nasci
de nós, por isso levo-te em meus traços.

Não pesa que a verdade foi momento,
a presença tão breve e o desconexo
desse sonho. Restou-me o sentimento

em que de novo te surpreendo em mim.
E o que foi belo, imóvel num reflexo
me enriqueceu de haver amado assim.


ENTRE O PÁSSARO E O AZUL

Verde, vermelho, azul e novamente
verde. A cor é um murmúrio da paisagem.
Na forma mais sutil de cada imagem
a terra é sempre a mesma e diferente.

Entre o pássaro e o azul a circunstância
é o rumor de asas. Entre folha e vento
a nuance é o vôo. Entre o céu e o mar intenso
o mar é apenas líquida distância.

Em som e cor o mundo nos penetra
e sendo humano é um só. Para que habite
em tudo a voz profunda que interpreta

surge a palavra em densas sutilezas
composta e desdobrada sem limites
como se inventa em si a natureza.


SAUDADE (a Guilherme de Almeida)

A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.
Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.
Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço
num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.


ANJO BARROCO

Anjo barroco é a fonte do teu rosto
e és fiel e grave como as crianças tristes.
Pela tua alma de infância ainda persiste
a pureza, na sombra de um desgosto.

Teus olhos, de um castanho manso e denso,
têm ternura de terra e de brinquedo
e teu riso é sonoro e sem segredo
e em tudo és sempre o mesmo e sempre intenso.

A vida te perturba. A tempestade
que por vezes te rasga o sentimento
vem da aurora de um mundo sem idade

onde o homem solitário, na selvagem
surpresa do primeiro sofrimento,
tinha um deus ainda intacto em sua imagem.


MONÓLOGO IV

É o tempo meu receio; não o amor,
que este perdura. Por novos desígnios
refaz em outro aquilo que não for
mais seu momento: trama outro domínio.

Esta brisa entre nós, este sossego
agudo de desejo, esta presença
alerta, esta carne toda apego
certo se apagam: tempo algum sustenta
ou seduz uma solta intensidade.
É a hora que me assusta: o amanhã
do íntimo ser neutro, e a unidade
uma palavra a mais na posse vã.
O futuro só nasce de um invento:
nós dois, amor, nós somos este tempo.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes