[1] DEFINIÇÕES

[1.1] Definido como poema de catorze versos, o soneto tem comportado muito pouca variação ou experimentação para além ou aquém de seus dois moldes tradicionais: o ITALIANO (sonetto), também chamado "petrarquiano" ou "petrarquino" (fixado por Petrarca) e o INGLÊS (sonnet), também chamado "shakespeariano" (fixado por Shakespeare), sendo o primeiro dividido em dois quartetos mais dois tercetos e o segundo formado por três quartetos mais um dístico. Já que os versos são normalmente metrificados e rimados, o mais radical experimentalismo sofrido pelo soneto foi o verso branco da poesia moderna, mas outras transformações têm ocorrido, tais como a ampliação para dezessete versos pela adição dum terceiro terceto ou ESTRAMBOTE (século XVII), a relocação dos tercetos acima dos quartetos ou entre estes (século XIX), o metro irregular e a rima aleatória. No cânone clássico o soneto tem verso decassílabo e rima abraçada nos quartetos (ABBA/ABBA) e cruzada nos tercetos (CDC/DCD). Este molde é comumente designado como "camoniano" (fixado por Camões). Vejam-se exemplos de cada caso. Do camoniano o paradigma seria este: SONETO 19 [Camões] Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida, descontente, Repousa lá no céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente, Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor, que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te; Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. O próprio Camões já admite alternativa no esquema de rima dos tercetos (CDE/CDE), como neste outro paradigma: SONETO 29 [Camões] Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela: Mas não servia ao pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia. Os dias na esperança de um só dia Passava, contentando-se com vê-la: Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe deu a Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Assi lhe era negada a sua pastora, Como se a não tivera merecida; Começou a servir outros sete anos, Dizendo: Mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta a vida. Sobre o paradigma camoniano vai uma amostra de estrambote em Aretino (traduzido por José Paulo Paes), onde falha apenas uma rima do segundo terceto (CDC/DED): [SONETO 4] [Aretino] Este caralho é mais do que um tesouro! É o bem que pode me fazer feliz! Este sim é que é bem de Imperatriz! Vale esta gema mais que um poço de ouro! Acorde-me, caralho, que eu estouro! Vê se encontras o fundo da matriz; Um caralho pequeno se desdiz Quando na cona quer guardar decoro. Estás dizendo a verdade, ó mulher; Quem caralho pequeno em cona enfia Merece, de água fresca, um bom clister. Esses devem foder cu, noite e dia. Já quem o tem, como eu, brutal, feroz, Somente na boceta se sacia. — Sim, é verdade, mas O caralho nos dá tanta alegria Que nossa gula o quer na frente e atrás. Do paradigma inglês vai uma amostra de Pessoa, uma de Mário Faustino e outra de minha autoria, lembrando que a rima é sempre parelha no dístico final mas admite variações nos quartetos (ABAB/BCBC/CDCD ou ABAB/CDCD/EFEF etc.): [de Pessoa como Álvaro de Campos] Há quanto tempo, Portugal, há quanto Vivemos separados! Ah, mas a alma, Esta alma incerta, nunca forte ou calma, Não se distrai de ti, nem bem nem tanto. Sonho, histérico oculto, um vão recanto... O rio Furness, que é o que aqui banha, Só ironicamente me acompanha, Que estou parado e ele correndo tanto... Tanto? Sim, tanto relativamente... Arre, acabemos com as distinções, As sutilezas, o interstício, o entre, A metafísica das sensações — Acabemos com isto e tudo mais... Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais! DIVISAMOS ASSIM O ADOLESCENTE [Mário Faustino] Divisamos assim o adolescente, A rir, desnudo, em praias impolutas. Amado por um fauno sem presente E sem passado, eternas prostitutas Velavam por seu sono. Assim, pendente O rosto sobre o ombro, pelas grutas Do tempo o contemplamos, refulgente Segredo de uma concha sem volutas. Infância e madureza o cortejavam, Velhice vigilante o protegia. E loucos e ladrões acalentavam Seu sono suave, até que um deus fendia O céu, buscando arrebatá-lo, enquanto Durasse ainda aquele breve encanto. SPIK (SIC) TUPINIK [Glauco Mattoso] (para Paulo Veríssimo) Rebel without a cause, vômito do mito da nova nova nova nova geração, cuspo no prato e janto junto com palmito o baioque (o forrock, o rockixe), o rockão. Receito a seita de quem samba e roquenrola: Babo, Bob, pop, pipoca, cornflake; take a cocktail de coco com cocacola, de whisky e estricnina make a milkshake. Tem híbridos morfemas a língua que falo, meio nega-bacana, chiquita-maluca; no rolo embananado me embolo, me embalo, soluço - hic - e desligo - clic - a cuca. Sou luxo, chulo e chic, caçula e cacique. I am a tupinik, eu falo em tupinik. Nos casos de relocação estrófica o poema poderia ser chamado de PARASSONETO, já que a fisionomia dos catorze versos assume inúmeras máscaras alternativas. De parassoneto vão duas amostras vezeiras, respectivamente, em Luís Delfino e Paulo Henriques Britto (tercetos antes dos quartetos), seguidas doutra de minha autoria (baseada em sugestão do próprio Britto e batizada de "Paulindrômico" porque a ordem estrófica dístico / terceto / quarteto / terceto / dístico descreve um movimento palindrômico): O DESTINO [Luís Delfino] O rio vem do mar, para o mar corre: Quem sabe por que nasce e por que morre? Sabe o sol que ele faz a madrugada? Quem fez de um grão de areia este universo? Não podia fazê-lo outro e diverso? Pode cousa qualquer sair do nada? Por que nos fez assim com fome e sede, Selvagem, como a fera da floresta, E não pôs tudo numa eterna festa? Quem deu a vida, não daria a rede Em que se embala o Índio do arvoredo, Mas que ele arranca ao tronco com trabalho? Ruge em torno de nós a dor e o medo. Nada vales, Helena, e eu nada valho?!... SETE ESTUDOS PARA A MÃO ESQUERDA, III [Paulo Henriques Britto] Sou uma história, a voz que a conta, e o imenso desejo de contar outra diversa, que porém não deixasse de ser essa. Palavra que não digo e que não penso e no entanto escrevo — eu sou você? (Mas não era isso o que eu ia dizer, e sim uma outra coisa, obscura e bela, que sei, com uma certeza visceral, ser a verdade última e total — e só por isso já não creio nela, pois a certeza, tal como a memória, é por si só demonstração sobeja da falsidade do que quer que seja —) Mas isso já seria uma outra história. SONETO 406 PAULINDRÔMICO [Glauco Mattoso] Ter algo que dizer não é o que conta. O "como" é que o poeta faz de monta. Algum palestrador alega assim, que o verbo é pedra em si, não ferramenta. Mas isso não é cláusula pra mim. Prefiro achar que ter um bom motivo, além do jeito, é justo requisito. Concordo, enfim, com Paulo Henriques Britto que existe inspiração num verso vivo. Ocorre que um poema é meio e fim, porém precisa ser de alguém que enfrenta dor, fome, angústia, azar, algo ruim. Não basta o "como" em verso ou prosa pronta. Temer o tema é o medo que amedronta. [1.2] O decassílabo pode ser HERÓICO ou SÁFICO. O heróico, fixado por Camões na oitava dos Lusíadas, tem tônica na sexta e décima sílabas, com pré-tônica predominante na segunda. Seu mnemonema (gabarito fonético que proponho) seria "cobriu, descobrirá, descobrirá", onde o "iu" representa a pré-tônica e os "á" representam as tônicas, como no Hino Nacional ou nos próprios Lusíadas: Ou[VI]ram do Ipi[RAN]ga as margens [PLÁ]cidas As [AR]mas e os ba[RÕES] assina[LA]dos Quando, ocasionalmente, a pré-tônica é deslocada para a terceira sílaba, o decassílabo admite o apelido de MARTELO AGALOPADO, usual na poesia nordestina, cujo mnemonema seria "galopou, galopou, galopará", onde os "ou" representam as tônicas anapésticas e o "á" fecha o deca, como Camões emprega, vez por outra, no primeiro paradigma (soneto 19 acima) ou nos Lusíadas: Alma [MI]nha gen[TIL], que te par[TIS]te Em pe[RI]gos e [GUE]rras esfor[ÇA]dos, Também ocasional é o emprego do sáfico, que leva acento na quarta, oitava e décima sílabas, e cujo mnemonema seria, inversamente ao heróico, "descobrirá, descobrirá, cobriu", como ocorre no soneto acima, traduzido de Aretino: Estás di[ZEN]do a verda[DE, Ó] mu[LHER]; Ainda no exemplo abaixo, traduzido do italiano Giuseppe Gioachino Belli por Augusto de Campos, o paradigma é camoniano (ou seja, petrarquiano) e o deca tem pré-tônicas na segunda, mas acidentalmente pode ocorrer um martelo agalopado (Ferro [FU]mo po[RRE]te mastro [MA]lho) ou um sáfico (Mandioca [NA]bo pimen[TÃO] pe[PI]no): O PAI DOS SANTOS [Belli] O membro pode ser careca e anão Estaca espada espeto espiga falo Pavio bordão bengala pinto e galo Palmito vara vassoura pilão Mangalho manivela ou aguilhão Ferro fumo porrete mastro malho Lança-perfume fósforo caralho Espingarda cacete obus canhão Piroca pênis pau e pica e piça Priapo prego porra pito e pino Pirolito pistola pão rabiça Mandioca nabo pimentão pepino Banana macarrão peru lingüiça Maçaranduba e mano pequenino No quarto verso do soneto acima, que não é heróico mas também não é sáfico perfeito, eu pediria licença ao Augusto para passar "vassoura" ao aumentativo a fim de deslocar a tônica da sétima para a oitava sílaba, ficando assim, saficamente: Palmito vara vassourão pilão Mais raro é o soneto inteiramente composto de sáficos, como no exemplo abaixo, em que aspeio versos recorrentes em Luís Delfino: SONETO 236 DEGENERADO [Glauco Mattoso] No verso sáfico, Delfino é dez: "Da fronte à curva dos teus pés gentis". Faz no Parnaso o mesmo que hoje fiz, "Beijando as curvas dos teus lindos pés". Prefiro o heróico, sem grilhões, galés, mas sou forçado à punição feliz de rebaixar estes meus lábios vis a pés mais reles, nas cruéis ralés. "Achar na cova dos teus pés a cova", diz o Poeta, entre dois ais coitados. Mas sua musa é moça linda e nova: "Os seus pés nus, os seus dois pés nevados"; Já meu escopo é quando a língua escova o pó do couro em borzeguins surrados. [1.3] Depois do decassílabo, o verso mais encontradiço no soneto é o ALEXANDRINO, apreciado sobretudo pelos parnasianos, cujo mnemonema apenas amplia o deca heróico (tônica na sexta) com o dissílabo final: "cobriu, descobrirá, descobrirá, cobriu"; ou o próprio nome completo de Bilac, que forma um alexandrino perfeito: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Como no heróico, no alexandrino a pré-tônica na segunda não é obrigatória, e uma outra (pós-)tônica na décima também se torna optativa. Portanto, trata-se dum ritmo menos regular, mais flexível e proporcionalmente complexo, do qual vai uma amostra resistente até em Jorge de Lima: DOMÍNIO RÉGIO [Jorge de Lima] Investiguei a Grécia em Platão e em Homero. Vi Sócrates beber a taça de cicuta... Depois passei a Roma e analisei de Nero Na boca de Petrônio essa face corrupta. Conheci Santo Anselmo e São Tomás, Lutero, Estudei de Voltaire a inteligência arguta E finalmente andei como se fosse Asvero Pela Ciência e a História em requintada luta... Mas a Arte é que me impõe o seu domínio régio E é por isso que adoro a mão de Tintoretto E a sublime palheta e o pincel de Correggio... E é por isso que eu amo o verso alexandrino E burilo, Mulher, este pobre soneto Inspirado a pensar em teu perfil divino. A exemplo do decassílabo, que esporadicamente intercala um sáfico aos heróicos, também o alexandrino tem sua alternativa desacentuada na sexta: trata-se do alexandrino TRÍMETRO, mais raro e desusado, composto de três pés tetrassílabos, cujo mnemonema seria "descobrirá, descobrirá, descobrirá" e do qual vai um exemplo em Vinicius (os versos "A flor dos lábios entreaberta para o beijo" e "À flor dos lábios entreabertos para o gozo."): SONETO DA MULHER AO SOL [Vinicius de Moraes] Uma mulher ao sol — eis todo o meu desejo Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz A flor dos lábios entreaberta para o beijo A pele a fulgurar todo o pólen da luz. Uma linda mulher com os seios em repouso Nua e quente de sol — eis tudo o que eu preciso O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso À flor dos lábios entreabertos para o gozo. Uma mulher ao sol sobre quem me debruce Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente E que ao se submeter se enfureça e soluce E tente me expelir, e ao me sentir ausente Me busque novamente — e se deixa a dormir Quando, pacificado, eu tiver de partir... [1.4] Quase sempre, portanto, o soneto se mede, no mínimo, por versos de dez sílabas. Mais escassos são os versos de metro curto (redondilha, por exemplo), quando o poema recebe a designação de SONETILHO. Esporadicamente ocorrem até sonetilhos monossilábicos. Eis um exemplo recente (década de 80), do pornopoeta Eduardo Kac (lembrando que aqui as palavras são todas paroxítonas e a métrica não conta as átonas posteriores à última tônica do verso): SOMETO [Eduardo Kac] pika roxa kica coxa moça zorra poça porra coça fica roça bica grossa pika Pelo mesmo critério vai amostra de sonetilho dissilábico em Apollinaire (traduzido por José Paulo Paes): HÉRCULES E ÔNFALE [Apollinaire] O cu Onfálico (Vão cu!) Cai rápido. — Vês tu Quão fálico? — Taful! Priápico! Que sonho Medonho!... Segura!... E a fura O hercúleo Acúleo. [1.5] Sonetilhos silábicos remetem à fragmentação léxica e à verticalização gráfica típicas do concretismo e, em que pese a aversão desta corrente ao discursivo e à sintaxe, fatalmente ocorreria a algum poeta (no caso, eu mesmo) um paradoxal caso (1977) de soneto concreto: CARNE QUITADA [Glauco Mattoso]
[1.6] Se formalmente o soneto varia do molde italiano ao inglês, tematicamente varia em geral do lírico ao satírico, sendo o FESCENINO uma categoria específica na qual o lirismo se perverte em sátira através do componente pornográfico, explicitado no léxico chulo, cujo efeito obsceno se complementa pelo contexto escatológico, como ocorre em Bocage: [SONETO XIII] [Bocage] É pau, e rei dos paus, não marmeleiro, Bem que duas gamboas lhe lobrigo; Dá leite, sem ser árvore de figo, Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro. Verga, e não quebra, como zambujeiro; Oco, qual sabugueiro tem o umbigo; Brando às vezes, qual vime, está consigo; Outras vezes mais rijo que um pinheiro. À roda da raiz produz carqueja; Todo o resto do tronco é calvo e nu; Nem cedro, nem pau-santo mais negreja! Para carvalho ser falta-lhe um U; Adivinhem agora que pau seja, E quem adivinhar meta-o no cu. [1.7] Qualquer que seja, porém, seu teor, conceitualmente o soneto se resolve como um raciocínio filosófico, no qual as premissas enunciadas nos quartetos conduzem matematicamente às conclusões dum silogismo poético cujo último verso leva apropriadamente a denominação "chave-de-ouro". O encadeamento formal e conteudístico entre versos e estrofes é tão inerente à estrutura do soneto que alguns poetas se dão ao luxo de compor ciclos onde o décimo quinto soneto é constituído pelas chaves-de-ouro dos outros catorze, cada um dos quais principia pelo verso-chave do que o antecede. A tais ciclos se dá o nome de COROA ou GRINALDA de sonetos. Bem rara é a ocorrência de coroas entre sonetistas brasileiros. Geir Campos, por exemplo, exercitou o paradigma mais comum, no qual catorze sonetos se encadeiam por meio de seus versos-chaves, seguidos de um décimo quinto soneto formado pelos catorze versos-chaves. José Peixoto Júnior, por sua vez, praticou modalidade mais sofisticada, na qual, além de ser cada soneto iniciado pela chave-de-ouro do soneto precedente, o 15º soneto é iniciado pela 14ª linha do 14º soneto, seguida pela 13ª linha do 13º soneto, pela 12ª linha do 12º soneto, e assim por diante, até encerrar com a primeira linha do primeiro soneto. De quebra, esse 15º ou "soneto-chave" é um acróstico, que no caso de Peixoto forma o título SERRA DO ARARIPE. A coroa que compus, cujo acróstico forma o título CATORZE QUEIJOS, segue o modelo praticado por Peixoto, mas, enquanto o nordestino canta ecologicamente a serra do Araripe (entre o Ceará e Pernambuco), este paulistano conta gastronomicamente as aventuras amorosas de um poeta urbano, desde a infância à vida adulta. Trata-se, portanto, de requintado malabarismo formal, bem ao gosto de poetas experimentais, sejam eles barrocos ou concretos. [1.8] O próprio conceito do soneto implica um paradoxo, pois, de um lado, a estrutura rígida cerceia a liberdade criativa do poeta e, de outro lado, essa aparente camisa-de-força estimula a habilidade do sonetista e testa seu domínio vocabular. Não por acaso vários autores tematizam o desafio da composição e a responsabilidade do sonetista em exemplos que poderiam ser chamados de sonetos metalingüísticos, de "metassonetos" ou, quando descrevem a própria construção, "processonetos". Abaixo vão alguns casos de metassoneto e processoneto, entre os quais me incluo: UM SONETO [Gregório de Matos] Um soneto começo em vosso gabo: contemos esta regra por primeira, já lá vão duas e esta é a terceira, já este quartetinho está no cabo. Na quinta torce agora a porca o rabo; a sexta vai também desta maneira: na sétima entro já com grã canseira, e saio dos quartetos muito brabo. Agora nos tercetos que direi? Direi que vós, Senhor, a mim me honrais gabando-vos a vós, e eu fico um rei. Nesta vida um soneto já ditei; se desta agora escapo, nunca mais; louvado seja Deus, que o acabei. ANÁLISE-ZINHA DE UM SONETO [Evaristo da Veiga] Cá recebi, Machado, o teu Soneto, E bem que te agradeço a sã vontade; Como não queres que falte à verdade, Esta Análise-zinha te remeto. Ela há de ir num estilo assim faceto, E meio dorminhoco, que te agrade; Porque um Frade é que gosta doutro Frade, E um Preto na linguagem doutro Preto. As sílabas dos versos mal contaste, Porque uns trazem de mais, outros de menos, E os acentos também d'alguns erraste; Mas pelos grandes ficam os pequenos, Pois creio que por junto é que somaste, E o Soneto não tem, nem mais, nem menos. SONETO DE NATAL [Machado de Assis] Um homem, — era aquela noite amiga, Noite cristã, berço do Nazareno, — Ao relembrar os dias de pequeno, E a viva dança, e a lépida cantiga, Quis transportar ao verso doce e ameno As sensações da sua idade antiga, Naquela mesma velha noite amiga, Noite cristã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto... A folha branca Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, A pena não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o metro adverso, Só lhe saiu este pequeno verso: "Mudaria o Natal ou mudei eu?" FLOR INCÓGNITA [Celso Pinheiro] Por essas tardes doces de novenas, Tive um sonho de todo imaginário: Fazer das minhas rimas um rosário Para ofertar-te, irmã das açucenas! Tu, que és a inveja viva das morenas E a pérola gentil do meu rimário Guardá-lo-ias, como um relicário, No teu seio de arminhos e de penas... E se fosses ao templo, como agora, Às tuas orações de tanto enlevo, Bendiria este amor Nossa Senhora... Meu Deus, como seríamos felizes! Tu rezando os Sonetos que te escrevo, Eu rezando as palavras que me dizes. O PEQUENO JORNAL [Nóbrega de Siqueira] Sempre que abro e releio o livro do passado, Aos meus olhos avulta um pequeno jornal, Modesto e sem clichês, feio e mal paginado, — Folha do interior, simples, dominical... Nunca teve, por certo, um número esgotado. (Liam-no tão somente os filhos do local) Tratava de "excelência" o juiz e o delegado E abria com um soneto a "Crônica Social". Apesar de modesto, é com enorme saudade Que dele me recordo e também da cidade Pequenina e longínqua onde, há tempos, nasceu... Ruas sem movimento... A escola... Uma igrejinha... A farmácia da esquina... A cidade era a minha. A mais linda do mundo! E o soneto... era meu! AOS VERMES [Luís Delfino] Tendes também espaço no horizonte, Vermes, que o eterno sol redoira e anima; Dou-vos asas, subi: à minha fronte Que sombra escassa e vã lançais por cima!... Eu ato, quando quero, o vale ao monte, O Olimpo ao Céu, e os deuses que a musa intima: E estrela a estrela amarro, e lanço a ponte, Em que anda o grupo harmônico da rima. É um coche de pérola o soneto: E quando dentro dele os mundos meto, A estrofe ala-se, e canta, e canta, e o tira. No caminho saúdam-no as Quimeras: E ao vê-lo, a um tempo, calam-se as Esferas, Aos seios d'oiro atravessando a lira. O SONETO [Cruz e Souza] Nas formas voluptuosas o Soneto tem fascinante, cálida fragrância e as leves, langues curvas de elegância de extravagante e mórbido esqueleto. A graça nobre e grave do quarteto recebe a original intolerância, toda a sutil, secreta extravagância que transborda terceto por terceto. E como singular polichinelo ondula, ondeia, curioso e belo, o Soneto, nas formas caprichosas. As rimas dão-lhe a púrpura vetusta e na mais rara procissão augusta surge o sonho das almas dolorosas... DEDICATÓRIA [Emílio de Menezes] Não fora o medo de uma rima em igre E, nela, eu moldaria este soneto. Mas vejo o caso preto, mas tão preto, Que a própria tinta preta mais denigre. Eia! Alma à larga! O medo, dela, emigre Pois lá acima, já está, pronto, um quarteto, E eu creio bem que, dando um tom faceto, Alcanço um D. Xiquote e amanso um tigre. Bem! Vou ver se consegue este terceto Que o verbo "denigrar" para ele imigre (O "denegrir" já foi metido a espeto). Que um não denigra e que outro não denigre A intenção de ofertar este folheto Ao talento sem par do Bastos Tigre. TERRIBILIS (SONETO SEM VERBOS) [Monteiro de Barros] Um soneto sem verbos! Que empreitada! Bem difícil trabalho certamente! Eis aí um pedido impertinente, Além de uma grandíssima estopada! Ó alma de Satã, alma danada! — De tal soneto, para toda a gente De juízo, critério, inteligente, Qual o valor? Este, decerto: "nada"! Nesta cruel, difícil, conjuntura, Mente vazia, sem idéia, escura, De tal, capaz só vate verdadeiro. De fato, um caso assim, tétrico, preto, Como o arranjo, sem verbos, de um soneto, Só a vida no Rio sem dinheiro. ÚLTIMA PÁGINA [Júlio César da Silva] Teus os meus versos! Teus! Por mais que laves As mãos culpadas do delito vão De os haver inspirado, ei-los que vão Plumas soltas ao vento, como as aves. De ritmo duro ou de coleios suaves, Porém sinceros, algo mais serão Que o esforçado labor de um tecelão De cesuras, de agudos e de graves. Mais tarde, — porque enfim minha arte inquieta Balbucia somente e nada diz — Nada talvez há de restar do poeta Que um soneto sem cor, falho e infeliz, Mumificado por qualquer seleta Para uso das escolas infantis. [SONETO AMANHECIDO] [Salvador Novo, traduzido por Glauco Mattoso] O fácil sonetinho cotidiano que minha insônia nutre e desvanece sem tema nem dilema se oferece durante o pesadelo mais mundano. Traçando em pleno vácuo vou meu plano que sobe até o desejo e ao ódio desce. Em linhas decoradas como prece a vida vai por trilho reto e plano. A luz extinguirei, e de manhã já não há trem veloz que me transporte e o fogo consumiu a idéia vã. Soneto, não me escapas! Sou mais forte! Te findo, inda que falte ao meu afã serena perfeição, como a da morte! SONETO E SONO [Aloísio de Carvalho] É pena, mas nem sempre a gente é dono Do seu querer, senhor do seu nariz... Eu, por exemplo, agora: estou com sono Que meu verso fielmente não vos diz! Deixo correr a pena no abandono, O que, afinal, é próprio do país... Sétimo verso... Oitavo eu adiciono; E se fizer catorze, sou feliz. Quero dormir, não posso. Ainda faltam Cinco versos p'ra o termo de um soneto, Cisões, noivados, ruas que se asfaltam... Que mistura! Afinal, só faltam dois! Com sono, tudo serve num terceto... Vou dormir... Boa noite! Até depois! OFICINA IRRITADA [Carlos Drummond de Andrade] Eu quero compor um soneto duro como poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser. Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijando no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreender. SONETO OCO [Carlos Pena Filho] Neste papel levanta-se um soneto, de lembranças antigas sustentado, pássaro de museu, bicho empalhado, madeira apodrecida de coreto. De tempo e tempo e tempo alimentado, sendo em fraco metal, agora é preto. E talvez seja apenas um soneto de si mesmo nascido e organizado. Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu, pois não sei como foi arquitetado e nem me lembro quando apareceu. Lembranças são lembranças, mesmo pobres, olha pois este jogo de exilado e vê se entre as lembranças te descobres. PARA FAZER UM SONETO [Carlos Pena Filho] Tome um pouco de azul, se a tarde é clara, e espere pelo instante ocasional. Nesse curto intervalo Deus prepara e lhe oferta a palavra inicial. Aí, adote uma atitude avara: se você preferir a cor local, não use mais que o sol de sua cara e um pedaço de fundo de quintal. Se não, procure a cinza e essa vagueza das lembranças da infância, e não se apresse, antes, deixe levá-lo a correnteza. Mas ao chegar ao ponto em que se tece dentro da escuridão a vã certeza, ponha tudo de lado e então comece. SIMPLES SONETO [Anibal Beça] Desejado soneto este que é escrito sem as firulas graves do solene, que leva na palavra o simples rito da fala cotidiana. Não condene no entanto, a falta de um estro especioso, nem de brega rotule esse meu vezo. Apenas sinta o som oco e poroso do fundo mar de anêmonas, o peso rarefeito das algas nos peraus. Essa cantiga filtra nossos medos, as culpas e os tabus, e dá-me o aval para buscar o simples e em querê-lo ornamento de estética espartana na faxina ao supérfluo que se espana. SONETO XX [Sílvio Valente] Amo o soneto porque é molde antigo para dizer as cousas sempre novas; porque depois de não sei quantas provas, um pudor virginal guarda consigo. O soneto é mais puro do que as trovas. Sim, Bem-Amada, eu nele apenas digo tudo que é nobre em mim, tudo que aprovas e é meu prêmio na vida, e é meu castigo. É fino e breve, e tem segredos de arte; Uma pureza, enfim, tão cintilante que, quando um dia desejei cantar-te, os teus encantos rútilos, diversos, pus em soneto; e desde aquele instante, só sei rimar-te com quatorze versos. O NASCIMENTO DO SONETO [Eno Teodoro Wanke] Há pouco tive um pensamento estranho: "Que tal se hoje eu fizesse algum soneto?" Estou até de veia... Eis que o tamanho da inspiração já deu para um quarteto! Bobagem continuar, porém. Que ganho? Caiu-me o lápis. Já apontei. É preto. E como faz calor! — Me espera um banho gelado assim termine este soneto. Estou também com sono. Que preguiça! Mas, amanhã é domingo. Irei à missa?! Não sei. Depois, decidirei se vou. Ai, ai... Vou terminar logo em seguida com isto. Estou com sede. Puxa vida! — E o parto do soneto terminou! SONETO VAZIO [Eno Teodoro Wanke] Se este é o primeiro verso de um soneto, eis o segundo do soneto acima. Terceiro verso: Santo Deus, que meto agora aqui no quarto? Desanima! E, lido o quinto verso, lhes prometo um sexto! E atenção, que já termina! No sétimo, reparo que o quarteto acaba neste oitavo. E tome a rima! E aqui, meu nono verso, meus senhores, no décimo, sugiro-lhes paciência, do undécimo habilmente me descarto! Duodécimo: E que tal falar de amores? Mas... Décimo-terceiro! A penitência tem chave de ouro, enfim: décimo-quarto! SONETO 233 SONETADO [Glauco Mattoso] Já li Lope de Vega e li Gregório, pois ambos sonetaram do soneto, seara na qual minha foice meto, tentando fazer algo meritório. Não quero usar o mesmo palavrório, mas pilho-me, no meio do quarteto, montando a anatomia do esqueleto. No oitavo verso, o alívio é provisório. Contagem regressiva: faltam cinco. Mais quatro, e fico livre do problema. Agora faltam três... Deus, dai-me afinco! Com dois acabo a porra do poema. Caralho! Só mais um! Até já brinco! Gozei! Matei a pau! Que puta tema! SONETO 545 INUSITADO [Glauco Mattoso] Sonetos bem estranhos tenho visto agora que da lavra alheia trato: há verso que extrapola, no formato, o deca, o alexandrino, o livre, o misto. Uns fogem do padrão naquilo ou nisto: onde cabe o ditongo, vejo o hiato; varia a rima, e há nexos que, constato, vão quase à perfeição pelo imprevisto. Caso mais acabado não me ocorre que tanto se corrija quanto borre: ao de Marcelo Tápia me remeto. Está a palavra "fim" solta, sozinha, formando uma viúva quarta linha, esdrúxula, em seu último terceto!
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