|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

José Martins Fontes (Santos SP 1884-1937)

Não dá para ser chamado de "rei do superlativo" porque outros grandes (como Augusto dos Anjos) foram pródigos nos "íssimos", mas este primoroso conterrâneo de Vicente de Carvalho sobreviveu ao modernismo e contabiliza duas soberbas façanhas: foi amigo de Bilac e respeitado por Mário de Andrade, e rarefez um precioso esquema de rima (AAAB CCCB DDE FFE, ou, ainda mais difícil, AAAB AAAB CCD EED) ao mesmo tempo que ultrapassava o limite do alexandrino, chegando ao extremo deste soneto de catorze sílabas, um perfeito diamante lapidado no verso bárbaro:


NUTRISCO ET EXTINGUO (divisa de Francisco I)

A Salamandra, quando a fogueira ferve e flameja,
Dentro da noite, negra e silente, no quiriri,
Valsa nas chamas, brinca e delira, cor de cereja,
Cor de ametista, cor de topázio, cor de rubi!

E o Fogo exalta-se e, endoidecido pela peleja,
Um potro imita, parece um galo, lembra o saci!
Lambe-a, saltando, dá gargalhadas, e a aperta e beija!
E amante jovem, demônio alegre, canta e sorri!

E a Salamandra, tendo mil cores, toda amarela,
Ou verde toda, rola nos braços do seu senhor,
E tresvaria na ronda ardente da tarantela!

E ao se estreitarem, com tanta freima, tanto furor,
Ele, demonstra sentir-se amado, mas só por ela,
E ela que vive somente dele, tal qual o Amor!


Alguns exemplos de sua rara rima tripla:


INCONSOLAVELMENTE

E desfolhou-se a flor. Tombam as folhas,
Rolam no chão, dispersas, como bolhas
De água, sem que as apanhes ou recolhas,
Sem teres tempo de as colher na mão.

Frias, brancas, translúcidas, partidas,
Aquelas trinta pétalas queridas,
Soltas na viração das avenidas,
Noivas, virgens defuntas, lá se vão.

E choraste, em silêncio, amargamente.
Mal conheceras essa Irmã dolente,
Mas por ela sofreste em teu amor.

Sem ter consolo a mágoa que sentiste,
Ficaste, poeta, para sempre, triste,
Apiedado da sorte de uma flor.


DENTRO DA NOITE, LONGE DE TI...

Nunca invejei a sorte das Estrelas...
Amo-as! Contemplo-as, soluçando pelas
Arcarias claustrais — e fico a vê-las,
À procura da causa que as conduz...

Nos conventos do azul enclausuradas,
Solitárias sorores desamadas,
Choram, rezando místicas baladas,
E são seus raios lágrimas de luz...

Virgens mortas ou Noivas esquecidas,
Curtem nos corações, pobres queridas,
Ingratitudes que curtimos nós...

Possuidoras de múltiplas riquezas,
Embora sejam Castelãs-Princesas,
Não as invejo — porque vivem sós...


CANÇÃO AROMAL

A mocidade tem perfume, cheira
A nardo, a cravo, a flor de laranjeira!
E teu corpo é tal qual uma roseira,
Sorrindo ao sol, festivamente em flor!

E o perfume trescalas de maneira
Que, impressionando a redondeza inteira,
Até quem não te vê, faz que te queira,
Aspirando-te o aroma sedutor!

Sai do rosal da tua pele a essência
Da juventude em superflorescência!
E eu inspiradamente o pressenti!

Dizem que sempre vivo perfumado,
Sem pensarem que, andando enamorado,
O perfume que tenho vem de ti!


Para mim Martins tem ainda o curioso aspecto de mimetizar Delfino, seja
glosando-lhe uns tercetos manólatras, seja seguindo-lhe os passos
podólatras. Exemplo de terceto delfiniano glosado:


"Chego-me a ti com medo, a voz tardia,
O passo incerto, a mão trêmula e fria,
E acho mais fria a tua própria mão." [Luís Delfino]


[GLOSA DA MÃO FRIA] [Martins Fontes]

Como está fria a tua mão, querida!
Por que? Que tens? Que estranha peripécia
A deixou, de repente, arrefecida?
E tu, sorrindo, me disseste: — Aquece-a.

E a tua mão na minha protegida,
Esquecendo que a sorte é iníqua e néscia,
Teve logo a quentura apetecida
Que há nas plumas e luvas da Suécia.

Qual um pássaro tímido e com frio,
Que encontrasse um frouxel quente e macio,
Foste tu, meu amor, e assim fui eu.

Trêmula e branca de fadiga e sono,
Na tarde triste, no final do outono,
A tua mão na minha adormeceu.


Exemplo de soneto podólatra à maneira de Delfino:


ESCANDALOSIDADE DISCRETÍSSIMA [Martins Fontes]

Penetrei no teu quarto, sorrateiro.
Entreabri do teu leito o cortinado.
Invejei, morno e fofo, o travesseiro
Em que teu sono dormes, perfumado.

Delicadezas vi do teu apeiro
De prata. E, entre cem jóias, perturbado,
Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro,
Como um ávido amante alucinado.

E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo,
A fronte, a face, o cálice vermelho
Da boca em flor, os cílios de veludo...

E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho,
E alfim beijei, enternecido e mudo,
O lugar dos teus pés no teu espelho.



Outros sonetos de Martins Fontes:


INTROIBO AD ALTARE

O livro para mim lembra um cofre encantado,
Relicário oriental do esoterismo antigo.
Supersticiosamente, ao senti-lo a meu lado,
Sob a sua atração, conjeturo, investigo!

Um livro aberto é como um anjo iluminado,
De asas espalmas e que, em êxtase, bendigo!
Quantas vezes, orando, eu lhe tenho chamado
— Meu Pai e meu Irmão, meu Mestre e meu Amigo!

O livro, belo e bom, desde a essência ao formato,
Deverá sempre dar, aos olhos como ao tato,
O prazer que produz a impressão de um primor.

Tendo-o louvado assim, ao fechar do soneto,
Peço que ele também, como aconselha Hamleto,
Seja sempre uma jóia e nos fale de amor.


DE JOELHOS E DE MÃOS POSTAS (a Décio de Almeida Prado)

Amas! Não pode haver bênção mais pura
Do que amar e sentir-se benquerido!
Ter o encanto, a recíproca ventura
De humanamente ser correspondido!

Amas! Sofres a máxima tortura!
Foste por teu amor desiludido!
E esvazias o Cálix da Amargura,
Abafando, em silêncio, o teu gemido!

Amas! E não conheces, em verdade,
O amor, que, em sua luminosidade,
O infinito num beijo condensou!

Porque sejas embora sábio, ou santo,
Nunca hás de amar a tua Mãe, no entanto,
Como sempre, e em segredo, ela te amou!


MÃE D'ÁGUA

No Rio Negro. Esplende a ninféia-sereia,
Como jamais se viu, nem jamais se sonhara...
Sobe, desabrochada, a boiar, alta e clara,
A flor das águas, que abre tarde, a lua cheia!

Entre nuvens, do alvor iridiante da areia,
Só à Vitória-Régia a visão se compara:
Branca e giganta assim, faz-nos pensar na Uiara,
Quando emerge desnuda e os cabelos penteia!

Tal qual a Assombração, essa luaça deslumbra!
E seu encantamento a floresta prateia...
A uivar, o canguçu abandona a penumbra.

Sobre a enchente trevosa, a tremulina ondeia...
E, no lago do céu, em contraste, reslumbra
A flor das águas, que abre tarde, a lua cheia!


NUDEZ

Frágil, diante de mim, teu escravo e senhor,
Porque eu assim o quis, para que eu te possua,
Aos poucos te despiste e te mostraste nua,
Virgem, baixando o olhar, mal vencendo o pudor.

De orgulho estremeci. Redobrando o calor,
Meu sangue se acelera e, a explodir, tumultua...
E, a ouvir-te murmurar: — "Eu te quero! Sou tua!"
Insuflou-me de um deus o poder criador.

Triunfo nunca haverá que se iguale à vitória,
Ao consolo divino, à incomparável glória
De adorar a nudez que se oferece em flor!

E houve um Poeta imortal, no sonho de um momento,
Que realizou na vida este deslumbramento
De beijar a Beleza, encarnada no Amor!


EXISTIR É SENTIR

Mais do que à própria vida, deveremos
Amar a Vida em sua plenitude.
A inconstância no amor não condenemos,
Porque esta falta pode ser virtude.

Ser fiel a um amor, se nunca o pude,
Fui ao Amor fiel, nos seus extremos:
Este, sendo imutável, não ilude,
E os desvios daquele são supremos...

Seja a forma de amor que se pressinta,
Por mais tênue, mais tímida e indistinta,
Deve-se bendizer, sem comparar.

Como a ausência produz o desengano,
Sobreenobrece o coração humano
Ser inconstante, sem deixar de amar.


BEIJOS NO AR

No silêncio da noite, alta e deserta,
Inebriante, férvido sintoma,
Uma fragrância feminina assoma
E tentadoramente me desperta.

Entrou-me, em ondas, a janela aberta,
Como se se quebrara uma redoma,
Da qual fugira o delirante aroma,
Que o mistério do amor assim me oferta.

De que dama-da-noite ou jasmineiro,
De que magnólia em flor, em fevereiro,
Se exalava esse cálido desejo?

Ela sonhou comigo: esse perfume
Vem da sua saudade, que presume,
Embora em sonho, ter-me dado um beijo!


PREEXISTÊNCIA

Ardem recordações em minha vida
De inumeráveis vidas anteriores:
A essência do meu ser guarda, incontida,
Milhões de anseios e milhões de dores.

Sinto que, eternamente renascida,
Minh'alma palpitou, entre esplendores,
No coração das águias encendida,
Refulgindo nos surtos dos condores.

Quando os segredos da nudez te vejo,
Diante do orgulho do teu corpo amado,
Sinto que eu os criei, que eles são meus.

Assim, pelos eflúvios do desejo,
Enamoradamente astralizado,
Tenho a certeza de ter sido um Deus!


AFINIDADES ELETIVAS (a Antônio de Almeida Prado)

Para se bem querer não é preciso
Nenhuma impressão forte ou singular:
O amor, às vezes, nasce de um sorriso,
O amor, às vezes, nasce de um olhar.

Mas, esse acaso, simples, indeciso,
Por mais fugaz que o seja, faz pensar:
Não atua o destino de improviso:
Quem ama, estava predisposto a amar.

Ninguém faz versos quando o quer; as rosas
Desabrocham, tais quais as afeições,
Por efeitos de leis maravilhosas:

Afinidades, aproximações,
Simpatias que afloram carinhosas,
Do coração dos nossos corações.


GULA

Em meus olhos não viste, por acaso,
Não percebeste quanto sou sincero,
Em que furor satânico me abraso,
De que modo carnívoro te quero?

Poder, sem conseguir, eis o meu caso,
Sederento, a vagar, Tântalo-Aasvero!
E, como um rio túrbido, extravaso,
E, diabolicamente, me exaspero!

Com os olhos te dispo, em vivo anseio,
Com o olhar te desnudo, alucinado,
Provando o fruto virgem do teu seio!

E esse adorável pomo do pecado
Tem sempre o gosto, quando o saboreio,
De um uruguaio pêssego doirado!


SUPERPRODÍGIO

A mil metros de altura, em hidro-avião. Reflama,
Incendiando-se em ouro, o Rio de Janeiro!
O espetáculo, ao sol, faz supor o braseiro
Da via-láctea a arder dentro de um cosmorama!

Pelas tubas da luz, Guanabara conclama
Os seus poetas titãs, sobre o despenhadeiro!
Insufla-lhes no sangue o furor condoreiro,
Orgulhece os pajés, filhos de Ibotirama!

Se a vida é similar nos páramos profundos
À que existe na terra, através de outros mundos,
Jamais, em qualquer céu, no infinito radioso,

Nenhum quadro haverá que consiga, assombrando,
Comparar-se a este abismo, espacial, formidando,
Fantástico, ultra-verde, híper-miraculoso!


DEMONÍACO

Quando o cansaço físico me abate,
E redobrar preciso de energia,
Dou à fadiga rápido remate,
Por efeito da própria fantasia.

Faço que o meu desejo se retrate,
Numa visão de pura alegoria!
Sonho um divã forrado de escarlate,
Ao centro de uma sala ampla e vazia.

E, sobre esse sofá, à flor do estofo,
Como um lótus esplêndido, emergindo
Do goderim de seda, fundo e fofo,

Emoldurada em nácar, na luz crua,
Uma clara odalisca entredormindo,
Voluptuosa, totalmente nua.


VENTUS TEXTILIS (a Monteiro Lobato)

Vi no Museu de Nova York um chale,
Guipura d'Alençon, renda francesa,
Que, feito há mais de um século, equivale
A uma brisa ao luar pela fineza!

É a luz tecida! Nada sei que iguale
A essa obra-prima de delicadeza!
Nele a perícia fez que se intercale
Na teia da doçura a gentileza!

Dir-se-ia de uma sílfide o agasalho
Essa névoa de seda colorida,
Pontilhada de pérolas de orvalho!

Não é de uma mulher desconhecida
O mais sutil e anônimo trabalho,
Porque é o trabalho da mulher na vida!


FLOR! POESIA CONCRETA E SONHO DA MATÉRIA!

Incomparável flor! Maravilhosa
Graça, em plena vivez, desabrochada!
Tens na pele a frescura luminosa
Que no céu anuncia a madrugada!

Pela inédita forma primorosa,
Pelo aroma inefável, não há nada
Que se compare à rosa cor-de-rosa,
Senão a boca da mulher amada!

A rosa espelha o coração do poeta.
É a poesia puríssima, concreta,
A mocidade que a sorrir viceja!

Amo-te! E ao ver-me, extático, adorá-la,
Pela voz do perfume ela me fala,
E com os lábios das pétalas me beija!


PELOS CAMINHOS DA AURORA (a Affonso Schmidt)

Nada sou. Nada tenho. E, noite e dia,
Meu espírito vive a imaginar
O consolo indizível que eu teria
Em dar, em dar, continuamente dar.

E povoa-me o sono esta alegria,
Enche-o de sonhos o prazer sem par
De ser um raio de ouro e de harmonia
Em cada coração e em cada lar.

Dar tudo, a todos, com fervor fraterno!
Só possuir para distribuir,
O meu tesouro astral, prodígio eterno...

Dar, não olhando a quem, sem refletir:
Ser como o sol, que lembra o amor materno,
Multiplicado, sem se dividir.


PELOS CAMINHOS DA AURORA (II) (a Oduvaldo Vianna)

Porém dar, mesmo assim, poeticamente,
Para a nossa razão é ineficaz:
A generosidade se ressente
De obrigar a ser grato a quem a faz.

Tudo é de todos. Quanto é diferente
Esta moral, justíssima aliás,
Da caridade egoística do crente,
Que em aguardar o prêmio se compraz!

Os embustes sepultem-se nas covas
Da estultícia; e levante-se o simum
Irreligioso das idéias novas...

A luz, o ar, a terra, a água — sem um
Indício só de dúvida — são provas
De que a vida infinita é o bem comum.


PALADINESCA (a João Luso)

Quando ele rutilou, Satanás redivivo,
Esgrimista infernal, clarinando em combate,
Tudo nele, a esplender, era sempre escarlate,
De estridente grená, de rubor explosivo!

O vermelho vivaz, para esse sensitivo,
Relembrando o rubi, evocava o granate:
E a gema, a fulvecer, do mais raro quilate,
Parecia encarnar-lhe o fulgor invectivo!

Depois, ao se tornar sábio beneditino,
Artista hipersutil e hipermago entre nós,
Tudo, no seu dizer, era doce, era fino.

Fino era o seu cantar, fluida era a sua voz...
E a fineza, a finura o sagraram divino.
E Satã fez-se um Deus em Eça de Queirós!


OURIVESARIA

Numa alvíssima taça de cristal,
De Louès Falize ou de Lalique, deitas,
Em obediência a fórmulas perfeitas,
Um vinho de ouro, de flavor floral.

Dás, aos teus olhos, o prazer sensual
De provar pedrarias liquefeitas,
Num excitante espumejar, desfeitas
Em semitons de pérola e coral.

Sentes, nessa delícia das delícias,
O perfume das tâmaras fenícias,
O adorável sabor da uva de Cós...

A esse encanto dos deuses se compara
O gosto artístico, a volúpia rara
De ler um livro de Eça de Queirós!


CRÍTICA

Sempre me impressionou e encantou esta idéia:
Ter Olavo Bilac, aos vinte anos de idade,
Escrito, no Brasil, o seu livro de estréia,
Obra-prima de amor e impecabilidade.

Foi a intuição genial da cultura européia,
Do espírito francês que, em sua mocidade,
Lhe permitiu fugir à trivial melopéia,
E bordar essa flor de sutil raridade!

Se ele nos revelou a elegância, a harmonia,
É justo que, ao sentir-lhe o perfume, a poesia,
A nossa adoração o bendiga e consagre!

Só Eça de Queirós em seu volume — O EGITO,
Aos vinte anos também, e de modo inaudito,
Fez, com a mesma vidência, esse claro milagre!


LES POÈTES SONT DES POÈMIERS (a João Carlos de Azevedo)

Entre os poetas e as árvores os elos
São tais, há tão estreitas alianças,
Que revelam, nas verossimilhanças,
Os sentimentos líricos mais belos.

A cumprirem destinos paralelos,
Em confraternidade, sem mudanças,
Na primavera se enchem de esperanças
E no outono de pomos amarelos.

Ambos, continuamente, fazem versos.
Na aparência mostrando-se diversos,
São seus pontos discordes diminutos.

Em colaboração, inspiradores,
Tendo a mesma pureza, nos dão flores,
Tendo a mesma bondade, nos dão frutos.


GOTA D'ÁGUA

Despertar. O dilúculo termina.
A alba rufa os tambores pelos montes...
Afã. A claridade matutina
Rasga os céus, abre novos horizontes.

Outra ilusão os ares ilumina.
Fulvo, jorrando das perpétuas fontes,
O dilúvio do sol enche a campina,
Inunda estâncias, recobrindo pontes...

Perturba o coração este epicínio!
Mas, julgando improfícuo o sacrifício,
Nestas horas de ação, formidolosas,

Gota d'água no mar da Humanidade,
Continuo a rimar na soledade,
Ouvindo estrelas, cultivando rosas.


AUTOCRÍTICA

A palavra me pesa. O arcabouço da forma,
Pela sua estrutura, é de veras espesso.
A rigidez da regra, o invariável da norma,
Dão, ao tato ocular, a aspereza do gesso.

O virtuosismo estrito o contorno deforma.
E, ao surto inspirador, se transmuda em tropeço.
Nunca em fluidez ondeante a idéia se transforma,
Perdurando, em conjunto, o lavor do adereço.

Eu quisera fazer versos que fossem rosas,
Pelo tênue dos tons, pelo azul do perfume,
Pelo encanto sutil das gradações sinuosas...

Torno sempre a expressão rebuscada e concreta.
Quem, perspícuo, observar, desde logo, presume
Quanto o artista é terreno e celestial o poeta...


ASAS PARTIDAS

Cego, enfermo, vibrando heroicamente,
Seja qual for a angústia que o quebranta,
O pintassilgo, enamorado ardente,
Deixa a mágoa evolar-se da garganta.

Tanto mais infeliz, quanto mais crente
De que a nossa harmonia é sacrossanta.
Mas, se uma asa partir, subitamente
Desencantado, o pássaro não canta.

Insula-se. Emudece. A desventura,
De perder a ilusão, fá-lo, entre os ramos,
Procurar no silêncio a noite escura...

Somos assim nós todos que sonhamos:
Transformamos em música a tortura,
— Porém de asas partidas não cantamos.


Ó GOTA D'ÁGUA, IMENSIDADE!

Sob a chuva lunar estreleja o cascalho:
De ouro, o chão do jardim reluz, no intercolúnio
Dos repuxos iriais, do arvoredo grisalho,
Faiscando, a estreluzir, dentro do plenilúnio.

Vendo a areia a eferver, eu que ao seixo equivalho,
E em outra encarnação fui Fantásio ou Fortúnio,
Senti que, na unidade, a pérola do orvalho
Da água máter contém o rebrilho netúnio.

Tudo, em toda a criação, na esplendência espelhante,
Para quem sabe amar, julga compreendê-la,
É eternamente igual, desde o sol ao diamante.

E essa glória vivaz todos poderão tê-la,
Porque, no estrelecer da matéria micante,
Por mínima que o seja, a mica é irmã da estrela.


OTELO

Quem amar deste modo antes prefira
Morrer, do que sentir a desventura
De não saber, nas vascas da loucura,
Distinguir a verdade da mentira:

Infrene dúvida, implacável ira,
Esta que me alucina e me tortura!
Ter ciúmes da luz, formosa e pura,
Do chão, da sombra e do ar que se respira!

Invejo a veste que te esconde! A espuma
Que beijando o teu corpo, linha a linha,
Toda do teu aroma se perfuma...

Amo! E o delírio desta dor mesquinha
Faz que eu deseje ser tu mesma, em suma,
Para ter a certeza de que és minha!


[DO TÍTULO DE UM LIVRO]

À última luz que doira as tardes calmas,
À última luz de amor que beija o poente,
Se dá, no meu país, poeticamente,
A denominação de "Sol das Almas"!

Na montanha, a palmeira, de repente,
Brilha! O mistério lhe incandesce as palmas!
Para outro mundo leva o pó das salmas
A luminosidade comovente!

Vai morrer e ainda fulge! Ainda! Ainda!
Como um sorriso, finda a claridade,
Como um soluço, a claridade finda!

Adeus! Adeus! É o fim da Mocidade!
Nunca mais! Nunca mais! E era tão linda!
Qual é teu nome, Luz do Azul? — Saudade.


A MORTE DO CISNE

O Cisne arensa. Chora o violoncelo.
Pablo Casals faz evocar a bruma.
A alma se evaporiza — e o "ritornello"
Em surdinas etéricas se esfuma.

Num parque antigo, o lago de um castelo
Lembra um espelho de um palor de espuma.
Tudo, tudo é tão triste, mas tão belo
Que da essência do sonho se perfuma.

A paisagem prateia-se, encantada,
Em multieflorações de alvuras frias,
Sob a neve da luz polarizada.

Há liliais, lunárias nostalgias,
E um volar, um chover, em orvalhada,
De plumas brancas, pétalas macias.


ESPELHADO EM TEUS OLHOS

Quando no espelho me contemplo, a frio,
Notando o ultraje que produz a idade,
Sou como quem suporta, ao desafio,
A afronta iníqua da fatalidade.

Mas se em teus olhos, cheios de bondade,
Me revejo, ante a análise, sorrio;
Volvo ao fulgor da antiga mocidade,
Em subitâneo e alegre desvario!

Espelhado em teus olhos, estremeço!
Aos teus olhos, feliz, rejuveneço,
Revibrando de espanto e de alvoroço!

Porque sempre que os beijo e os interpelo,
Por sua refração, me torno belo,
E pelo teu amor me sinto moço!


A ILHA DO AMOR

Porque julgo impossível seres minha,
Sonho acharmo-nos juntos, em viagem,
Suceder um naufrágio na romagem,
E salvar-te, encontrando-te sozinha.

E ambos vamos parar a uma selvagem
Ilha deserta, na amplidão marinha.
E aí nos amarmos, logo se adivinha,
Livres do mundo, escapos da voragem.

Essa jornada é a — Vida, em que o — Destino,
É o naufrágio, entre suas alternâncias,
Cheio de angústias, mas também divino.

E a Ilha, oculta no enredo das distâncias,
Que nome tem? Chamemos-lhe, imagino,
Do — Acaso Amável — ou — Das Circunstâncias.


PURÍSSIMA

Homem, sujeito à contingência humana,
Rolei nos sete círculos do inferno.
Bebi, de um trago, a trágica tisana
Do amor-pecado, do desejo eterno.

Sentindo a sede da paixão profana,
Era o meu sentimento subalterno,
E, ao relembrar quanto a volúpia engana,
Ajoelhado e chorando me consterno.

Perdão, suplico. Purificadora,
És a cintila de ouro na penumbra,
Qual se um raio de sol teu riso fora.

Imaculada! és a Mulher Divina!
E, se a tua beleza me deslumbra,
É a tua perfeição que me ilumina!


LÁGRIMAS

Está cheio de lágrimas teu lenço.
Em silêncio e em segredo soluçaste.
Por minha causa, convulsivo, intenso,
O teu pranto sagrado derramaste.

Beijo este linho perfumado. Penso
Que entre nós dois nunca haverá contraste:
É igual ao teu o meu suplício imenso,
E eu também choro, como tu choraste.

Em nossas vidas tornam-se precisos
Os simulacros mundanais, terrenos,
Dos preconceitos e dos sobreavisos.

Mas o pranto jamais contém venenos,
E se é impossível confundir os risos,
Confundamos as lágrimas ao menos.


TIMIDÍSSIMA

Medo? Medo de quê? Por quê? Responde...
O amor te encanta e te amedronta? Vamos...
Tímido pintassilgo que se esconde
Entre as folhagens dos mais altos ramos...

Canta e confia, sem temeres onde
Pousas. Tu, como os pássaros que amamos,
Pensa que é num ramúsculo da fronde
Que se embalam os débeis gaturamos...

Lembra-te, sempre, colibri, que és ágil...
Tremes, arisca, mal pisando a areia,
Como se acaso andasses sobre brasas...

Não tenhas susto, beija-flor, se és frágil:
Se o balanço do galho te arreceia,
Ave, não tenhas medo: tu tens asas...


MÚSICA DE CÂMARA

O beijo! sim! que cousa deliciosa!
O olhar, o ouvido, o paladar, o olfato,
Confundindo-se, unindo-se, no tato,
Em carícias de pêssego e de rosa!

Conformando-se, a boca, primorosa,
Em corola, entreabrindo-se, ao contato,
Contém do sonho o seu perfume intacto,
Possui da carne a essência capitosa!

Tudo no beijo foi divinizado,
Porém ninguém louvou, como desejo,
O cristal musical do seu trilado!

Oh! quanto é doce o som desse solfejo,
Quanto é belo, inefável, delicado,
Ouvir cantar o rouxinol do beijo!


ELOQÜENTÍSSIMA

Como tu falas bem! O que me falas,
Nunca ninguém falou, flor da magia!
Sinto, em tuas palavras, a evocá-las,
O perfume que a música teria!

Maravilhantemente assim me embalas,
E, na rede de rosas da harmonia,
Voluteias, modulas as escalas,
Que eu cantar-te também desejaria!

Fala-me! Em tua voz há tal franqueza,
Tanta graça ela tem, tanta viveza,
Que, para ouvi-la, em sonhos, eu te chamo...

Brilhas, atrais, seduzes, — e, contudo,
Se me quero exprimir, falar-te tudo,
Só sei dizer-te, meu amor: — eu amo.


TAÇA ASTECA

Sobre que não terei eu feito versos?
E não me lembro, ainda por mero acaso,
De ter descrito, ou ter cantado o Vaso,
O copo arcaico, de florões diversos.

Um possuo, de argila, curvo e raso,
Pintalgado nos bordos e reversos
De arabescos vermelhos e transversos,
Tal qual as taças de Corinto ou Faso.

Velhos índios moldaram este tarro,
Que revela o retoque dado ao barro
Pelos mestres oleiros de Manágua.

Veio da antiga América esta bilha;
E é nela, útil e humílima vasilha,
"Que mato o ardume de uma sede d'água".


BRASIL!

Brasil! palavra mágica! Quem há
Que o não evoque, ouvindo-a? Mas quem é
Que não se abrasa de esperança e fé,
Ante esta voz que o sonho acordará?

Em — Brasil — há o sabor do cambucá,
Do caju, do ananás ou do café,
O cheiro dos jasmins no Sumaré,
Das mangas fulvas de Itamaracá!

Brasil! brasume irial, nome rubi!
Tão perfumado quanto o bacuri,
Quanto a gardênia do Caparaó!

Brasil! se és beijo, flor e fruto és tu!
Vergel que o ouro do sol transmuda em pó,
E onde canta ao luar o irapuru!


AMA, PARA QUE, ASSIM, SEJAS AMADO...

Se queres ser amado, ama primeiro,
Faze-te amar, amando com ternura,
Pois só merece a graça da ventura
Quem for capaz de um culto verdadeiro.

Sem raízes profundas no canteiro,
Em teu jardim nenhuma flor perdura.
É preciso que a terra seja pura,
Para viçar, florindo, o jasmineiro.

Sob a sideração do amor fulmínio,
Pode estar crente todo enamorado,
Que há de se realizar meu vaticínio.

Quem for constante, sendo delicado,
Pelo espírito alcança o predomínio,
Sabendo amar, para que seja amado.


A CILADA

Ao luzir o relâmpago do Amor,
Esquecemos o mal de haver nascido.
Há no assalto, tão bem preconcebido,
O ardil do vinho, a insídia do calor!

E é indefinível e arrebatador
Esse gozo sagrado em que o rugido
Mais parece o soluço de um gemido,
Ou de espasmo num último estertor!

A alma se expande fulminosamente,
E, transfundindo-se a dilatação,
É inexprimível o que então se sente!

O infinito condensa o coração,
Mas dando ao beijo o alívio equivalente
À delícia sagrada do perdão!


TOMA LÁ, DÁ CÁ

A sensação do alívio e do perdão,
Temo-la sim, mas no final, porque, antes,
O que procuram todos os amantes
É unir, fundir, aunar o coração.

Toma lá, dá-me cá. E ambos se dão.
E, em descargas, fuzis ensofregantes,
Lutam, buscam os corpos anelantes
Ser um só, conglobando-se a efusão.

Um quer ser, só quer ser, com ansiedade,
O outro, e torna-se elétrica, veloz,
A corrente de dupla intensidade.

No auge augural, quando esmorece a voz,
Anulamos a personalidade:
Nem és tu, nem sou eu, mas somos nós!


INTERJEIÇÃO

No — ah! — das cantigas orientais, neste — ah! —
Rasga-se o coração, pulsando ao vivo!
Qualquer cousa se sente de lascivo,
Que a palavra jamais exprimirá.

Voz da volúpia sustenido em lá,
Quente, acariciador, adorativo,
Desespero de um louco, ou de um cativo
Do Hedjaz, da Arábia-Pétrea, ou do Saara.

Parece um beijo que ferisse a face,
Deixando os lábios em laceração,
Sem se satisfazer, fulvo e vorace;

O rebramido de um enorme leão,
Que no fogo do cio ressangrasse,
E restrugisse numa interjeição!


EVOCAÇÃO DE UM DOS PRIMORES DE JOÃO LUSO

O Coqueiro remexe-se, o Coqueiro
Nunca repousa: impávido se libra,
Harpa eólia do solo brasileiro,
A tremer, palpitar em cada fibra.

Até na calmaria, ao soalheiro,
Não pára e nunca se desequilibra.
Durante toda a noite e o dia inteiro,
Incansável, frenético, revibra.

Oh! Coqueiro selvagem, quem, ao ver-vos,
Não acreditará que tendes nervos,
E em pulsações cardíacas fremis?

Símbolo sois da verde mocidade,
Daquela ardente nacionalidade
Das índias do Ocidente ou dos Brasis!


TAL COMO QUEM DESESPERADO ESPERA...

Conversamos num baile, uma só vez.
Mas, assim que te vi, nos declaramos.
E, entre canções e danças, nos falamos,
Abrindo os corações, sem timidez.

Tempos passaram. E a saudade fez
Que explodisse o desejo sem açamos.
E, em silêncio e em segredo, nos amamos,
Quase indecisos, trêmulos talvez.

Mas, pouco a pouco, a febre atenuou-se.
E esperamos, sentindo ser fatal
Que um motivo há de haver, próximo e doce,

Em que te possuirei, sendo tal qual
Um velho amante que beijar-te fosse
Da maneira mais justa e natural.


TABERNÁCULO

A mesa de trabalho! velha mesa
Em que estudei, rimei anos a fio,
A ressangrar, lutando ao desafio,
Em prol do Amor, em busca da Beleza!

Amo-a! Nela há uma alâmpada francesa,
De porcelana e cobre luzidio,
Equivalente ao mágico amavio
Da inebriante fantasia acesa!

Sobre este largo tabulão de imbuia,
Na paz sacerdotal, rompo a aleluia,
Dentro da noite mística, a rezar.

E oficiante extremoso, em minha igreja,
Penso, por mais humilde que ela seja,
Que também — mesa — quer dizer — altar!


O FUÃO BELTRÃO

Nas diversas censuras que nos fazes,
Há alguns defeitos que me dão prazer.
Dizes, redizes, repisando frases,
As mesmas cousas que já ouvi dizer.

E, entre dez argumentos, te comprazes
Em provar que olvidamos o dever,
E não fomos constantes nem audazes,
Desprezando as vantagens do poder.

Não temos ambições, mágoas discretas.
E te alongas em críticas banais.
Mas, de inúmeras falhas que interpretas,

Nenhum favor me lisonjeia mais
Do que clamares que nós somos poetas,
Somos um povo de sentimentais.


MORANGOS

De algumas bocas e de certos vinhos
Conservamos o gosto: seus sabores
Assemelho aos morangos dos caminhos,
Que, sendo frutas, mais parecem flores.

Escondidos nas moitas, entre espinhos,
São, por isso, talvez, mais tentadores.
E, quem sente o dulçor dos seus carinhos,
Recorda o paladar dos seus amores.

Quando de mim um dia te esqueceres,
E eu lembrar-me de ti, mas sem ressábios,
Suspirarei, desfolharei meus ais.

Evocando o passado e os seus prazeres,
Guardarei a carícia dos teus lábios,
Se acaso tu não me beijares mais.


JAMBO-ROSA

Linda e requintadíssima, tão rara
Que a um duplo sentimento nos condena:
Se a apetecesse alguém, dera-nos pena,
Mas se a beijasse, inveja nos causara.

Fruta da tentação, fruta-pequena,
Quem, colhendo esse pomo, não sonhara
Tocar a cútis, perfumada e clara,
O âmbar da tez de uma mulher morena?

Minha menina cor de jambo, minha
Iara Marabá, filha e rainha
Dos jardins redoirados do equador!

És linda e rara como o jambo-rosa,
Dele possuis a pele cetinosa,
A polpa de ouro que nos sabe a flor!


BEIJOS TRISTES

Sempre me encanta achar, se folheio um volume,
Se, ao acaso, abro um livro, uma rosa qualquer,
Uma violeta em cujo esquecido perfume
Se concentra, em segredo, uma alma de mulher.

Quem encontra essa flor, desde logo presume
Que a oferta intencional se dirige a quem quer,
E, nela, embalsamado, um voto se resume,
Lírio, cravo, jasmim, mal-me-quer, bem-me-quer.

Graça, delicadeza, adorável doçura,
Que quer dizer saudade ou quer dizer ternura,
Ou que outro nome tenha esse sonho de amor.

Bendita seja sempre a mão clara e querida,
Que, no mundo fugaz, na tristeza da vida,
Pôs, marcando um soneto, o beijo de uma flor.


RÁDIO

A substância do encéfalo transmite
Fósforo e não se esgota. A rutilância
Dá-se, em jato contínuo, sem limite,
E sem perda também, nem discordância.

Condensador, a radiessência emite,
Em fenomênica, infindável ânsia,
Pelas mesmas razões que a fulgirite
Se produz, como reza a eletromância.

Desprende luz e não se gasta. Espelha,
Em cada chamejar, cada centelha,
O poder do calor concretizado!

Há no rádio o esplendor da inteligência,
Nele o gênio revela-se, em potência,
Vive o espírito em sol diamantizado!


CIÚME

Tua flor predileta, o Amor-Perfeito,
A que os franceses, pela variedade,
Chamam de Pensamento, na verdade,
Bem merece a justez desse conceito.

Acostumado à mutação, afeito
À sua eterna volubilidade,
Sem saber qual dos dois o que me agrade,
Ambos os nomes que ela tem aceito.

Mas, como te conheço, e não invento
Transformações de humor, em cada dia,
A índole dela nem sequer comento...

E, por isso, chamar-lhe preferia,
À nossa moda, em vez de — Pensamento,
— Amor-Perfeito, sim, porque varia...


ROSA BRANCA

São para o beijo as rosas incentivo,
Porque a idéia da boca nos desperta
A carnação de uma corola aberta,
Seja vermelha ou cor-de-rosa vivo.

Somente a Rosa Branca tal motivo
Não sugere, e da carne se liberta,
Mais parecendo uma lunária oferta,
Pelo seu misticismo compassivo.

Tendo a palez da candorosidade,
O dulçor de uma Irmã de Caridade,
Mesmo quando a contemplo me constranjo.

Sóror Pureza, linda Flor de Neve,
Ninguém tocá-la nunca ousou, de leve,
Pois ninguém beija o coração de um anjo.


A ROSA NEGRA, CENTIFÓLIA

Em Sangerhausen, roseiral profundo,
Conseguiram dois químicos rosistas,
Fazer a mais estranha flor do mundo,
A — Rosa Negra — dos hipermagistas!

Rosa de Baudelaire e de Raimundo
De Lulle, após milhares de conquistas,
Em fim abre a corola em cujo fundo
Há tenebrosidades nunca vistas!

Depois de sete séculos de olvido,
E de esforço genético enfadonho,
Ressurgiu esse símbolo florido!

E hoje domina o meu rosal tristonho,
Porque, todas as cores tendo tido,
Tornou-se negra a Rosa do meu Sonho!


"OS POETAS SÃO INFANTES: COM AS IMAGENS SE ENTRETÊM..."

Quis, na minha inocência, pessimista,
Ser pensador, filósofo, e, em verdade,
Nada, nada mais sou senão artista,
Poeta, talvez, de alguma airosidade.

Sempre vivi, maravilhando a vista,
Exultando, em constante ansiosidade,
Diante da Natureza que, imprevista,
Engana e faz que eu de enganar me agrade.

O desespero de viver, condeno-o.
Nas surpresas da vida não há nada
Que não mereça o sacrifício estrênuo.

Pelo condão de uma adorável Fada,
Tanto mais velho quanto mais ingênuo,
Julgo-me uma criança deslumbrada!


EXEGESE (a Agenor Silveira, mestre Camoniano)

Camões é o Nume, o Herói, o Aedo, o Vate,
Mais, na revelação, do que o Profeta,
Porque, prevendo as forças em combate,
Canta — e a causa das causas interpreta.

Cíclico e cósmico, a sentir o embate
Da fenomênica atração secreta,
Vibra — o Gênio lhe faz que se arrebate —
E é — sobre o Tempo e além do Espaço — o Poeta.

Eco da Criação na Humanidade,
Esperanças concentra ou desalentos,
Dentro da sua universalidade.

Ruge no mar ou no fragor dos ventos,
É o Fogo, é a Terra em sua Divindade,
Transfigurado pelos Elementos.


PITÁGORAS

Tendo, mais do que todos, a mania
De olhar a altura, de adorar os astros,
Vou dos velhos astrólogos nos rastros,
Iluminado pela fantasia!

Pitagórico, amando a astronomia,
Bem como os Galileus, os Zoroastros,
Tiro, das minhas tábuas e cadastros,
Augúrios, como Tycho Brahe fazia!

Filho de Apolo, tu, no fervedouro
Dos teus jardins celestes, principados,
Ouviste os mundos, arrolando em coro!

E os teus discursos épicos, sagrados,
Vazaste em ouro puro, em versos de ouro,
Enquanto os que fazemos são dourados.


O ABRAÇO

Amo a apertura, a constrição do abraço,
Tanto mais doce, quanto mais estreito,
Que faz o coração rasgar o peito,
Pela falta de fôlego e de espaço!

A potência vital do seu efeito
Simula a da serpente, cujo laço
Imobiliza, e pelas malhas de aço,
Do seu poder, ele nos prende ao leito.

E eu que do espasmo a sensação requinto,
Tornando o amor o sonho verdadeiro,
Grandiosamente duplicando o instinto,

Senhor da carne e escravo prisioneiro
Ao dilatar-me e ao concentrar-te, sinto
Que o abraço é um beijo — mas do corpo inteiro!


ANUNCIAÇÃO

Sim, Olavo Bilac anunciava que havia
De ressurgir de nós um Poeta ardente e novo,
Eco da Natureza, alma do nosso Povo,
Filho do nosso amor e da nossa magia!

E eu sempre acreditei, como em idolatria,
Nesse Gênio da raça, inspirante renovo,
Diante de cujo altar me prosterno e comovo,
E espero, ainda que seja em meu último dia.

— Deixai passar o mundo — eliminar-se a escória,
A rolar, de roldão, como assevera Ghandi,
Desprezando a vilez da existência corpórea.

Ele, em cujo grandor a grandeza se expande,
Há de vir, viverá, para, encarnando a Glória,
Grandemente cantar quanto o Brasil é Grande!


NA ERA DE CASTRO ALVES

Nosso! estupendamente brasileiro!
Nosso! maravilhosamente nosso!
E, ao evocá-lo, estrujo e me alvoroço,
Explodindo nas fúrias do pampeiro!

Sua figura gigantesca esboço,
Arrebatado em surto condoreiro!
Único, eterno, máximo, primeiro,
Clangorejo, a exaltá-lo quanto posso!

Tenha seu nome um píncaro no Rio
De Janeiro, e demonstre a glória estranha
Da Terra-Verde, no esplendor bravio!

Por bioquímica força que se entranha,
Por geotrópico e típico alvedrio,
Chamemos nós — Castro Alves — à Montanha!


GUANABARESCAMENTE

Não quero, e minha voz, que se avoluma,
Ao coração do meu país apraza,
Que a Castro Alves se erija Casa alguma,
Por mais bela que seja qualquer Casa.

Não: com seu nome, batizemos uma
Floresta montanhaz, e não em rasa
Planície urbana, que não pode, em suma,
Conter a seiva que seu gênio abrasa.

Numa gruta, no umbror das nossas matas,
Façamos seu museu, como alto exemplo,
Que consagre a maior das nossas datas.

Só na selva libérrima o contemplo.
E é dentro dela, ouvindo-lhe as cascatas,
Que deveremos nós erguer-lhe um Templo!


SEMITOM

Qual, na paleta do crepúsculo,
A cor que mais te agradará?
O verde-mar, em tom minúsculo,
Ou azul-violeta, o rosa-chá?

Dinamizando-se, um corpúsculo
De anil, diluindo-se em grená?
Ou de coral um só ramúsculo,
Hastil de um cálice lilá?

Quanto mais tênue e vago e dúbio,
Mais me seduz, pelo ancenúbio,
Na tarde triste, a morte-cor.

Adoro o céu, quando, entre pérola
E opala, emurcha a tinta cérula,
A luz desfolha a última flor.


CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Interrogando os astros, induzindo,
Vendo que a forma contrafaz o fundo,
Analisamos, no mistério infindo,
O mecanismo ilógico do mundo.

Estudando, entendendo, concluindo,
Dói no cérebro o cálculo profundo:
Para o espírito, os anos-luz medindo,
Equivalem a menos de um segundo.

E vendo quanto a ciência é fátua e frustra,
Para a ilusão ficando de alcatéia,
Ávido, o olhar toda a amplidão perlustra.

E, sobre a Torre de Marfim da idéia,
Mudos, rugimos como Zaratustra,
No silêncio das noites da Iduméia.


SONETO PRETO

O fumo é vário. Simboliza o que era,
O que foi, ou já foi, mas não é mais,
Tudo o que, embora fosse, degenera
Em visões esqueléticas finais.

Até quando em nuvedos se aglomera,
A escapar-se do teto dos casais,
Tenta esgueirar-se em formas de quimera,
Lembra a fuga em serpentes e espirais.

Houve um doido que o fumo de um sobrado,
Dentro de um saco de aniagem, quis
Guardar, a rir por dentro, alucinado.

Que eram sonhos supunha esse infeliz,
Mas quando o saco abriu, no alto telhado,
Nada encontrou, Jean Richepin nos diz.


ULULO

Aí vem o herói. Motim. Entusiasmo. Vitória.
Boçalissimamente o entroniza a canalha.
E o inconsciente, o imbecil, nos enxurros da escória,
A enfunar-se, lá vai, de retorno à batalha.

Pilhou. Roubou. Matou. Prostituiu. A oratória
Celebra o vencedor e o vencido atassalha.
A infâmia organizada, a ferro e a palmatória,
A inocência castiga, a velhice metralha.

Horror. Execração. Generais, militares,
Fazeis que o homem, que é bom, se degrade e assassine,
Da hiena e do chacal sois vós os avatares.

Herói, é só quem faz que a razão se ilumine.
E, para outrem vivendo, almas apostolares,
É um Proudhon, é um Réclus, é um Pedro Kropotkine!


MISERICORDIOSISSIMAMENTE

Conta Buffon que o sapo é jardineiro:
Igual aos pajens, nas antigas salas,
Serve às rosas galantes de um canteiro,
Em contínuo cuidado a cortejá-las.

Dos rouxinóis, artista verdadeiro,
Estuda o virtuosismo das escalas,
E se esfalfa, e se esforça, prazenteiro,
Em senti-las, compô-las, imitá-las.

Possui o sapo a adoração da estrela:
Vendo-a na água brilhar, tenta colhê-la,
Nas profundezas turvas e enganosas.

Hugo nos diz que bem merece um culto
Quem vive a idolatrar, no mundo estulto,
As estrelas, os pássaros e as rosas.


POVO

O povo és tu, sou eu: nós somos povo.
E bendigamos a perfeita graça
De pertencer à multidão, à massa,
Diante da qual me inclino e me comovo.

Dela é que há de surgir o mundo novo.
E partícula dessa populaça,
Sinto que a prepotência me espedaça,
Mas do posto em que estou não me demovo.

Esqueço a Torre de Marfim da lenda.
E, a clarinar, me envolvo na contenda,
Ressangrando às pedradas e aos apodos.

Nada de caridade ou de piedade.
Mas de união ou solidariedade,
Sendo todos por um, sendo um por todos.


UM CRIME JUSTO E NOVO E BELO

— Matei-o por amor, porque o adorava,
Pelo pavor de vê-lo envelhecer.
Sofri, na minha carne, sendo escrava,
O que ele iria, em breve, malsofrer.

E ele morreu feliz, e me beijava,
No delírio do sonho e do prazer.
Seu jovem coração, ardendo em lava,
Pressentiu que eu cumpria o meu dever.

Não quis que a idade profanasse o poeta.
A eutanásia da paixão secreta
Demonstrou quanto é nobre o seu poder.

Morri. Matei o amante incomparável,
Mas poupei-lhe o terror inenarrável
De morrer dia a dia, até morrer. —


ABRE-TE, SÉSAMO!

As três chaves do espírito, as três chaves
Do ideal são: a cifra, a letra, a nota.
E esse trio, proclamam os conclaves,
A grandeza do símbolo denota.

Doces, profundas, líricas ou graves,
Delas a fonte do mistério brota:
Para que a selva da escurez desbraves,
Para ascenderes à amplidão remota.

Da álgebra musical, à astronomia
Da arte, da sensatez ou da poesia,
As portas rasgam, mas de par em par.

A idéia, o som e o número, na bênção,
Da encarnação, se animam e condensam
Em três verbos: saber, pensar, sonhar.


DIABO

Mestre! o meu preito estridoroso! Mestre!
Lúcifer, Belzebu, Satã, Mefisto!
Que eu nas malícias que tu tens me adestre,
E celebre o teu nome, Trismegisto!

Embora a inveja inane te seqüestre,
Prestigitador, mago imprevisto,
No teu cenário alquímico terrestre,
Fagulhejas no eflúvio do flogisto!

Mistagogos basbaques, ou tribunos
Boquiabertos, assombra o heterogêneo
Dos teus passes e rasgos oportunos!

Bravo! Atiro-te estrelas no proscênio!
Que seria de nós, os teus alunos,
Sem a flama escarlate do teu gênio?


IMAGEM DAS IMAGENS

É o meu cigarro um típico resumo
Da ilusão entre as suas mutações.
De violetas ou rosas o perfumo,
E esta é a maior das minhas distrações.

Provo-o, aspiro-o, enganando-me. E, no fumo,
Vejo em volutas as evoluções
Da fantasia a divagar sem rumo,
Dispersa em mil volatilizações.

Fulgiu, queimou, viveu, mas de fugida.
E o prazer produzido foi mendaz,
Sua consolação dissaborida.

E, finalmente, em cinzas se desfaz,
E é como tanta cousa, que há na vida,
Uma delícia que não satisfaz.


SOLITÁRIO

És voluntariamente o Solitário.
Longe de falsidades ou de intrigas,
Das convenções sociais te desobrigas,
E, alto, ascendes o teu alampadário.

Se ainda em tantos trabalhos te afadigas,
É a cinzelar aquele relicário
De São João de Segóvia, em seu sacrário,
Segundo rezam crônicas antigas.

É Solitário o Melro-Azul. Na altura,
Tendo esse nome límpido e preclaro,
Uma Constelação arde e fulgura.

Chamam-te — Solitário — porque és raro,
E, pela tua imaculada alvura,
Ao Diamante perfeito te comparo.


IGNORABIMUS

Não, não gosto de mim — e não se explica
Que, sem me conhecer, assim me queiras.
A hipocrisia torna-se impudica,
No disfarce do riso ou das maneiras.

O remorso que sinto se amplifica,
E me esforço em trabalhos e canseiras.
E a minha dor moral me crucifica,
Sem que no seu crescer tenha barreiras.

Horror! Que crimes pratiquei outrora,
Que faltas cometi, sem ter consciência,
Cujo castigo eterno me apavora?

Quem sou eu, sem perdão ou sem clemência,
Que a gemer, soluçar, expio agora
O mal que fiz talvez noutra existência?


FUMUS NIHIL

Ri-se a caveira. É justo que se ria.
Ri-se da insensatez do Eclesiaste,
Que, por mais que torture e revergaste,
Ainda exprime a vergonha da ufania.

Diz, na Quaresma, a Igreja, em liturgia,
E a presunção tomando por contraste,
A mentira com que te ensoberbaste,
Que és pó e ao pó hás de voltar um dia.

E a vaidade ainda nisto se acentua.
Nunca se viu vanglória igual à tua,
Que nem a morte faz que se desfaça.

Homem, o pó se vê, o pó se sente,
E te anulas, inteira e totalmente,
Sendo menos que pó, porque és fumaça.


OS OLHOS DA MORTE

A impressão já guardaste, de estranheza,
Já tiveste a memória da agonia,
Vendo uma luz qualquer, durante o dia,
Que, às vezes, fica, por descuido, acesa?

Causa-nos mal-estar, dando surpresa,
Uma alâmpada, a arder, serena e fria:
Enquanto o sol fortíssimo irradia,
Mete medo esse olhar, pela tristeza.

O ouro é fúnebre e fosco. Sem viveza,
A imóvel chama esbate-se, e, sombria,
Vela de crepe a imagem da beleza.

Fogo-fátuo que as campas alumia,
Essa impassível, gélida clareza,
Vem dos olhos da Morte: ela vigia.


NOITE

Noite, vens, passo a passo. Já te escuto
E vejo. O horror me assalta e me exaspera.
Deverei consagrar-te o meu tributo,
Ou maldizer-te a catadura austera?

Tremo. Avanço. Recuo. Irresoluto
Fico. Quem és, que queres tu, megera?
Por que te amantas no negror do luto,
Que, astros e astros, nas dobras, aglomera?

Pitonisa, deslumbras e amedrontas:
Em teus olhos reluzem as afrontas
Das panteras, dos tigres iracundos.

Quem saberá se és pura, arcangelesca,
Miraculosa, miguelangelesca,
De ouro e de treva amortalhando os mundos?

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes