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ISGOROGOTA, JUDAS (pseudônimo)
Agnelo Rodrigues de Melo (Lagoa da Canoa AL 1901-?)

Precoce sonetista, seus primeiros versos satirizam cenas que continuam bem atuais na cultura nacional, como neste exemplo coronelisticamente político:


RECIBO

Recebi do Doutor Fernandes Lima,
Governador perpétuo de Alagoas,
Pela graça de Deus, das almas boas
Que a rota seguem dos que estão de cima,

A importância mencionada acima
De duzentos mil réis, por que as pessoas
Das urbes, dos sertões e das lagoas
Vendem seu voto de entranhada estima;

E por cuja quantia me sujeito
A votar no Doutor; e, em testemunho,
Passo o presente, por José do Coito,

Em duplicata para um só efeito.
Maceió, Jaraguá, doze de junho
De mil e novecentos e dezoito.


Mostrou-se depois capaz de versejar da forma mais angustiosa, como neste
filial exemplo:


DIVINA MENTIRA (a Rodrigues de Abreu)

Pobrezinha da mãe que teve um filho poeta
E o viu cedo partir para as bandas do mar...
Nunca mais que ele volte à mansão predileta,
Nunca mais que ela deixe, um dia, de chorar...

É como a água de um lago, inteiramente quieta,
A alma de toda mãe que vive a meditar:
O mais leve sussurro é-lhe um toque de seta,
A mais leve impressão basta para a assustar...

Eu, por sabê-la assim, quando lhe escrevo, digo:
"— Minha querida mãe, não se aflija comigo.
E eu vou passando bem... Jesus vela por mim..."

É que assim, ela — a humana expressão da bondade
Contente por saber que vou sem novidade,
Jamais há de pensar que eu vá mentir-lhe assim...


Realizou-se plenamente, enfim, como expoente do gênero quando incorporou
temas universais, como neste exemplo mitológico:


A ULISSES

Quando à manhã parti — era a partida
de um novo Ulisses à Ítaca sonhada —
eu vivia da homérica investida
e empolgavam-me os lances da chegada!

Menino, ia este sonho me levando...
Não nasci para Ulisses... melhor fora
não ouvir a sereia enganadora
e ter ficado junto ao mar, sonhando...

Mas, se voltasse a ser, numa outra vida,
a mesma criança de alma forasteira,
sempre a rolar como uma pedra mó,

certo, madrugaria na partida,
na ânsia de não ser nada a vida inteira
e ser Ulisses um minuto só...


Outros exemplos do exímio estilo isgorogótico:


FILHO PRÓDIGO (a Cleómenes Campos)

E os meus pés sangrarão... Quanto é humilhante a volta
Quando se volta assim, semi-deus abatido...
Eu próprio que direi? — "Quanto esforço perdido..."
E os mais? Os mais dirão que o meu caso os revolta...

E os amigos? Nem sei... Hão-de soltar a escolta
Dos sarcasmos atrás do homem desprotegido...
E as mulheres? Dirão em tom compadecido
Essas cousas banais que toda a gente solta...

E os meus? Que hão-de dizer vendo este trapo humano?
Minhas irmãs dirão: — "Pobrezinho do mano..."
Minha mãe chorará de alegria, coitada...

E ela, a que eu elegi para a minha ventura;
Ela, que à comoção menor se transfigura,
Ela, o que há-de dizer? Ela não dirá nada...


D. HERCÍLIA

Nesta casa morou D. Hercília... Adivinho
O que fica a pensar essa gente indiscreta:
"— D. Hercília... Quem foi essa alma predileta
Que deixou neste verso a poesia de um ninho?"

"— D. Hercília... quem foi? Talvez um passarinho
Que uma vez esvoaçou na alma azul do poeta..."
"— Um sonho que viveu num coração de asceta..."
"— A mulher que passou um dia em seu caminho..."

"— E quem sabe, também, se não foi D. Hercília
Quem fez do pobre moço ausente da família
Esse alguém que anda aí, sem ventura e sem fé?..."

E eu que a todos escuto, eu que a todos bendigo,
Digo apenas assim, de mim para comigo:
"— D. Hercília não foi... D. Hercília ainda é..."


EU ERREI MUITAS VEZES...

Eu errei muitas vezes... muitas vezes...
E muitas vezes, na ânsia de acertar,
suportei tempestades e reveses,
como uma nau desarvorada, ao mar...

sofrendo, assim, perseguições soezes,
golpes cruéis e humilhações sem par,
eu errei muitas vezes... muitas vezes...
como uma nau desarvorada, ao mar...

Mas, se tateando no horizonte escuro,
muitas vezes errei, na luta infinda
ainda pude, assim mesmo, conservar,

bem alto, o coração sereno e puro,
esta suave esperança e, mais ainda,
este doido desejo de acertar!


PONTO FINAL

"Ponho um ponto final na nossa história.
Não me escrevas jamais, que tudo cansa.
Foi aquilo uma cousa transitória,
Que já varri de todo da lembrança.

"Faze outro tanto. Apaga da memória
O nada que houve entre nós dois: a aliança,
As promessas, as juras, a esperança
Daquela idade efêmera e ilusória.

"Faze o mesmo que fiz, que te não custa;
Nessa história de amor, envelhecida,
Põe um ponto final. Adeus. Augusta".

Lendo essa carta, há muito recebida,
Meu coração cada vez mais se assusta,
Porque ela pôs o ponto... em minha vida!


SATISFEITO

Ando em pesar desfeito pelo espaço,
Como em sonâncias vesperais os sinos
Que enchem de dor os vãos por onde passo,
Fortalecido de ancestrais ensinos.

Vou-me, por isso, satisfeito... ao passo
Que eles deploram, do alto, pequeninos,
A sorte do arlequim que nalgum paço
Viveu sorrindo aos velhos e aos meninos...

De nós não sei quem se melhor congraça
Com o seu destino... Se à habitual desgraça
Eles vertendo o seu planger malsim,

Ou se eu fingindo às provações que abraço
Que eu mesmo levo, nua, no meu braço
A própria mágoa que me fez assim!


PELO SINAL DA CRUZ

À voz de "Deus o quer!", envergando a couraça,
Fiz pé com a expedição de extermínio ao Levante,
E, cruzado, lutei, contendor diletante,
Na legião dos heróis formadores da raça!

E ao clamor fidalgal dos guerreiros de guante,
Num impulso, mortal como lesões de maça,
Às dardadas, feroz, ou brandindo o montante,
Pelas levas pagãs espalhei a desgraça!

E, por fim, vencedor, foi meu brasão na terra
Perpetuado, ao clangor das trombetas, dos hinos,
Para a glória final da energia que encerra

A minha fé capaz de mudar os destinos,
E de abalar o céu com o meu grito de guerra
Pelo sinal da cruz dos braços teus, divina!


FRUTO AMARGO

Plantei há muito uma semente antiga
Para que desse sombra e frutos desse
A mim e aos meus e aos mais... aos que pudesse
Livrar da dor, da fome e da fadiga...

A semente brotou e árvore amiga
Se fez e um ribeirinho em forma de S
Eis que lhe passa à sombra e eis que lhe tece
Quase idilicamente, uma cantiga.

Um dia toda se enflorou. E um dia,
Sentindo a mesma dor que ela sentia,
Sentindo os mesmos golpes do instrumento,

Ruímos nós dois num mesmo desenlace...
É que eu não quis que às mãos de alguém chegasse
O fruto amargo do meu pensamento...


ÁGUA ENCANTADA

Dês que te foste, nunca mais nenhuma
Sombra de cisne, pálida e sedosa,
Passou por entre a sonolenta espuma
Da água encantada, tépida e amorosa,

Que nos meus olhos tristes se avoluma...
Todas se foram, véus de cor de rosa
Das fantasias últimas, à bruma
Da tua ausência amara e dolorosa...

Mas um dia virás... E quando um dia
A tua sombra pesarosa e fria,
Voltar das asperezas dos abrolhos,

De mim que encontrará?... De quando em quando,
Uns círculos concêntricos bailando
Na água encantada dos meus próprios olhos!...


NÓS DOIS

Dois túmulos, nós dois... Ambos, ao peito,
Sob a insondável lápide marmórea,
Temos sepulta a interrompida história
De um desfortúnio mais do que perfeito.

A nossa vida é um campo santo feito
Somente para nós e para a inglória
Mágoa que sinto, a mágoa intransitória
Que te traz abatida desse jeito.

Pena é que esse mistério que nos cinge
Force a vivermos ambos, lado a lado,
Como uma esfinge junto de outra esfinge...

Sem que eu saiba o porquê de teu cuidado,
Sem que saibas que é em ti que se restringe
O meu silêncio de desventurado...


MINHA ILUSÃO FUGACE DE MARFIM

Minha ilusão fugace de marfim,
Como eu amo o teu gesto singular!
Ai, como sofro quando estás assim,
Como as cegonhas, pálida, a cismar...

Mas, se é capricho de teu fado, enfim,
Deixa erigir-te em versos um altar
Dentro no coração, dentro de mim,
Onde contrita vivas a rezar...

Hei-de fazê-lo assim como quiseres!
Ornamentado de ouro e de rubim,
De cravos brancos e de malmequeres!

E diante dele hei-de rezar assim:
"Bendita sejas tu entre as mulheres,
Minha ilusão fugace de marfim!"


MADREPÉROLA (para Jayme d'Altavilla)

Guardas no seio teu, em teu ventre fecundo,
Todo o aljôfar sutil dessas manhãs de estio
Que se soltou dos céus e em teu bojo alvadio
Foi bênção exaurir do desprezo do mundo.

E na grata missão, nalma do azul profundo,
Foste a busca da paz, da vanglória, do brio...
E ora volvendo à flor e ora descendo ao fundo,
Dominaste o tritão, venceste o mar bravio...

E eu, pescador audaz, para a labuta infinda
Fui buscar-te, infeliz, em teu supremo exílio...
Mas, à dor que me vem, lá voltarás ainda...

Pois, quisera eu viver nas profundezas cérulas
Do mar, nalma guardando esta quimera linda,
E a saudade de alguém na lucidez das pérolas!


SEIOS (para Astrogildo César)

São duas ilhas os teus seios — duas
Ilhas americanas emergidas
De um mar de formas, como rijas puas
No aço da melhor têmpera fundidas.

Tropicalescamente constituídas,
Duas montanhas íngremes e nuas
Ambas as ilhas, pelas formas suas,
São de origens vulcânicas havidas.

Ilhas envoltas, às manhãs, da neve
Das rendas finas da camisa leve,
Que, assim, uma vez, como eu, as viu,

Jamais dirá que, ao plenilúnio brando,
Sejam desertos cálidos chorando
A saudade do olhar que as descobriu!


CIDADE MORTA

Culpo e não culpo aquela carta
Deste silêncio que me envolve a vida:
— "Meu amiguinho, esquece-me. Estou farta
De tantas ilusões. Incompreendida

Desde aquele momento da partida,
Esta nova quis dar-te. Como dar-t'a?
Sei bem o quanto sofre o que se aparta
De uma felicidade presumida...

Nunca te amei", pois, desde esse momento,
No vão perdido o olhar, mão sob o mento,
Fechado o coração, fechada a porta,

Vivo engolfado (quanto dói dizê-lo...)
Num pasmo, num torpor, num desmazelo,
Numa indolência de cidade morta...


CARAVELAS

São nossas almas linhas paralelas
Que para o ignoto vão, e incompreendidas
Rumam, serenas, como caravelas,
Para terras de além, desconhecidas!

Por isso, ao divisarem nossas vidas,
Vendo-as de perto, todos dizem delas:
— Como estão afastadas essas velas!
Vendo-as de longe: — Como estão unidas!

Nós, entretanto, nada disso vemos...
Se estamos perto — não nos conhecemos;
Longe — entre nós, se estende céu e mar!

E assim andamos paralelamente
Para o infinito que nos foge à frente,
Sem a esperança de nos encontrar...


DIANTE DA TUA VIDA

Como um noturno pássaro sombrio,
Olho-te a vida sossegada e, absorto
Nessa ambiência de paz e de conforto,
Todo o universo do teu lar espio.

E, no teu luto estético, no estio
Do teu divino quebra-luz, nesse horto
De margaridas — o teu jarro esguio —
Ponho os olhos parados de homem morto.

E como um peso sobre o teu ambiente,
Como uma enorme víbora infernal
Que te mirasse demoradamente

Dessas paredes pálidas de cal,
Olho-te a vida, criminosamente,
E, todavia, não te quero mal...


MEIA-LUA

Alvo e fino o seu corpo... E tão alvo e fino
É o seu corpo que tem parecença de lua
No quartel do minguante... O seu corpo, imagino,
É a humana expressão fiel da meia-lua...

Leve e branda... E tão leve e tão branda que atino
Ver uma flor de carne a passar pela rua.
Triste e meiga... E tão meiga e tão triste, que a sua
Alma acredito ver no seio pequenino...

Leve e branda, alva e fina, e meiga e triste... Vendo-a,
Suponho que hajam visto os olhos meus de amêndoa,
— Leve como uma flor, branda como um luar,

Olhos feitos de céu, lábios tintos de amora —
Alva e fina passar uma Nossa Senhora
Cujo nome ninguém pôde ainda encontrar...


PREDESTINAÇÃO

Não há fugir à predestinação:
O azorrague da vida continua
A tatuar a minha pele nua
Na sua lenta martirização...

Todo o meu corpo, que se esfalfa e sua,
Vai definhando... E ao lhe sofrer a ação,
Minha alma, a debater-se, se extenua
Dentro do extenuado coração...

Tento reagir, inutilmente... Rouca
A voz de minha angústia secular
Sobe à garganta, força o lábio e espouca,

Enraivecida por me conservar
Fechando os olhos e tapando a boca,
Fazendo esforços para não chorar...


SERENIDADE

Desde o dia em que Irmã Felicidade
Em meu quarto ingressou, com sutileza,
Lá está, velhinha, a todo instante acesa
A lamparina da Serenidade.

— "Conserva acesa essa serenidade!
Disse, deixando-a sobre a minha mesa.
Uma relíquia dessa natureza
Ilumina a bem poucos na cidade!"

Lá está, por isso, a lâmpada, em verdade;
Mas, vendo o modo por que se extermina
O azeite santo da tranqüilidade,

À frouxa luz da lâmpada divina,
Rogo a Deus por que Irmã Felicidade
Venha buscar a sua lamparina...


PARALELOS

Paralelos de dor e de desdita,
De ânsia, de angústia e de padecimento,
De tortura, de mágoa e de tormento
Na nossa predestinação bendita!

Paralelos de sonho e sofrimento,
De anseios, de ilusões e de infinita
Aspiração; de luz, de encantamento
Nesse desejo bom que em nós habita!

Paralelos nós dois... E, todavia,
Nós dois andando pela mesma via
Cheia de cardos — todavia vemos

Que embora andemos como iguais criaturas,
Nem aqui, nem além, nem nas alturas,
Nem no infinito nos encontraremos!


DESENGANO

Quando na tarde do terceiro dia
Aquela sua febre sobreveio;
E mais aquele frio e aquele anseio
Que a alma saudosa e pura lhe pungia;

E aquela tosse a abalançar-lhe o seio
E mais aquela gosma que cuspia;
A sua destra, estranhamente fria,
Buscou a mão de alguém, que lhe não veio.

E ela que estava imensa dor sentindo,
Vendo-a crispada para o céu, sorrindo,
Num riso amargo disse-lhe, à asquerosa

Mão, que inda agora uma ilusão procura:
" — Vai tu sozinha para a desventura,
Ó miserável mão tuberculosa!


O ECO

Nas guerrilhas pagãs fui um flagelo. Amasse-a
Ou não, era a planura extensa das areias
Um bem que a minha fé confiara à minha audácia
Contra as hostes cristãs, contra as ganas alheias.

E lutei, e venci. E à afoiteza e à tenácia
Do meu gênio feroz atacando as ameias,
Exultado devi, finalmente, a eficácia
Dos meus golpes de encontro às bastilhas mais feias!

E o meu nome ressoou sob intensas soalheiras.
E houve até quem meus pés beijasse, na doudice
Com que a pátria recebe as vitórias primeiras!

Ó, quanto podes, fé! Se hoje, em minha velhice,
Blasono do que fiz pelas hordas guerreiras,
Uma voz além fala atestando o que eu disse!


RENEGADO

Odeias-me; pois bem: não seja eu quem faça
Sofrer um dia mais... Move os lábios e ordena!
Que se esquive de ti a mais leve desgraça!
Que a ventura de mim se esquive, a mais pequena!

Minha condenação serenamente traça!
É réu meu coração! Ninguém dele tem pena!
Arremessa-o ao chão assim como uma taça
Em que se liba o fel da maldição terrena!

Ordena e partirei! Norte ou sul, este ou leste...
Pária, que importa ser se o sou porque quiseste!
Manda e irei mundo em fora, odiado dos meus,

Repelido dos maus, renegado de todos,
Repudiado dos bons e crivado de apodos,
Enjeitado do mundo e esquecido de Deus!

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes