O SONETO MATERIAL

Por oposição à espiritualidade (tratada em páginas como O SONETO SAGRADO ou O SONETO FILOSÓFICO) e diferentemente da eterna vitalidade da Criação (tratada em páginas como O SONETO NATURAL ou O SONETO ANIMAL), tudo que é construído pela mão do Homem é destrutível, efêmero e perecível. Nesta página seleciono casos em que, se a obra humana já não está arruinada, acha-se em vias de sofrer os efeitos da temporalidade, sem contudo abrir mão de algum orgulho pela engenhosidade de quem arquitetou, mesmo que tal orgulho seja eclipsado pela melancolia diante do inexorável. Essa sensação de impotência assalta o poeta mesmo quando não são artefatos humanos os restos contemplados, pois trata-se de constatar que a ação predatória do tempo nada poupa, inclusive coisas que o ser humano não ergueu. [GM] TAPERA [Amadeu Amaral] Numa curva da estrada, onde a luz reverbera num tanque entre ervaçais, aparece uma casa. Pombas voejam no oitão, sobre a cumeeira rasa. Tudo ali tem um ar de quem convida, e espera. Sigo. Chego ao pomar: o capim prolifera; a guaxima no juá bravo, alta e rija, se casa. Silêncio. E, no silêncio, o som mole de uma asa e o fremente chiar da cigarra. É a tapera. Bato à porta. Ninguém. Olho por uma fresta: tudo escuro; e no escuro, a descer do telhado, longas fitas de sol. Nada mais ali resta. A velha casa morre. Apenas, sobre as lombas do teto a desabar caminham sem cuidado, nos pequeninos pés, turturinando, as pombas. CINZAS [Carlos Porto Carreiro] Cinzas... Poeira que ardeu, que arrefece e que esfria... Cinzas... que em tênue bloco um milagre sustenta, E o vento desmorona e rola em tropelia E anônimas desfaz na terra pardacenta... Restos do que brilhou da vida na tormenta: Cinzas, que sois como eu, labareda vazia, Guardais no corpo iname a forma do que ardia, Mas no âmago gelado a morte se apascenta. Cinzas... nesse conjunto em que esta alma se espelha Vejo a ruína do fogo, a escória da centelha, O cadáver da luz que o vento leva a esmo. E eu, neste coração que em cinzas se esboroa, — Cinzas das ilusões — sinto levado, à toa, O cadáver do amor, que jaz dentro em mim mesmo... ONDE ESTOU? [Cláudio Manuel da Costa] Onde estou? Este sítio desconheço: Quem fez tão diferente aquele prado? Tudo outra natureza tem tomado; E em contemplá-lo tímido esmoreço. Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço De estar a ela um dia reclinado: Ali em vale um monte está mudado: Quanto pode dos anos o progresso! Árvores aqui vi tão florescentes, Que faziam perpétua a primavera: Nem troncos vejo agora decadentes. Eu me engano: a região esta não era: Mas que venho a estranhar, se estão presentes Meus males, com que tudo degenera! SOLIDÃO [Emiliano Perneta] Oh! para que sair do fundo deste sonho, Que o destino me deu, e que a Vida me fez, Se eu quando, a meu pesar, casualmente, ponho Fora os pés, a tremer, volvo, ansiado, outra vez. O meu lugar não é no meio de vocês, Homens rudes e maus, de semblante risonho, Não é no meio de tamanha insipidez, Dum egoísmo atroz, dum orgulho medonho! O meu lugar é aqui, no seio desta ruína, Destes escombros, que reluzem como lanças, E destes torreões, que a febre inda ilumina! Sim, é insulado, aqui, no cimo, bem o sei! Entre os abutres e entre as Desesperanças, E dentro deste horror sombrio, como um Rei! O POETA DEUS [Emílio de Meneses] Quando a terra volver, de novo, ao caos que a espera, À imensa escuridão da treva indefinida; Quando tudo que é som, que é luz, que é primavera, Mundo e negro fizer a eterna despedida; Quando não mais houver, no espaço, uma só esfera, Nem, na amplidão vazia, uma só luz perdida; Quando, sem água o mar, sem calor a cratera, Em nada mais houver um vestígio de vida; Hás de ver ao compor as estrofes de um hino, A Vida ressurgir ao sopro do teu Verso, Ao fecundo clangor do teu Alexandrino!... Pois tens, Poeta Supremo! em tua essência imerso, Dos Deuses, Deus também, todo o poder divino, De fazer reviver, no Nada, outro Universo! SONETO 94 GÓTICO [Glauco Mattoso] Em sonhos, como picos nevoentos, elevam-se cinzentas catedrais cortadas pelos arcos ogivais que dão leveza aos pétreos monumentos. Na vastidão da noite, uivantes ventos varrendo vão varar vãos verticais. Porém, na transparência dos vitrais, rebrilha uma rosácea de fragmentos. Convergem linhas retas para um ponto agudo, acima duma torre alçado. Em meio ao pesadelo, acordo, tonto. Agora estou na cripta, agrilhoado, lambendo o pé dum gárgula, num conto de autor medieval atormentado. CASA PATERNA [Gustavo Teixeira] Da velha casa em que a manhã da vida Passei — conservo uma lembrança exata: Antes de eu vir ao mundo foi erguida Perto da serra, quase ao pé da mata. Dá para o sul a frente enegrecida; Ao lado, para um poente de escarlata, Janelas donde, na estação florida, Se aspira o cheiro dos jasmins de prata. Perto, o bambual em cujo seio amigo Cantam graúnas, e o pomar antigo Com melros, tiés e gurundis em bando. O ribeirão, o cafezal, a horta... Ah! que saudade o coração me corta Do lar querido que deixei chorando! A MURALHA CHINESA [Hermano Brunner] Desafiando o poder dos séculos, enorme E negra, austera e rude, a grandiosa muralha, Sombra da antigüidade imorredoura, dorme, Dorme na eterna paz que em derredor se espalha. Tem rombos de canhão e sulcos de metralha No seu dorso sem fim de serpente disforme; E, em frente a cada golpe antigo, que a retalha, Não há quem no passado algum sonho não forme! No seu longo percurso afronta selvas, onde A luz solar não vai além de cada fronde; Reta, ou coleando, atinge altos montes sem vida. E, dentro da sua ruína, essa muralha imensa, No seu leito de olvido e solidão, condensa Toda a história imortal de uma raça esquecida!... APÓS O FESTIM [Ibrantina Cardona] Pouco a pouco esmorece o delírio na sala; Sob arcos de festões morre a luz de áurea esteira... De humana exsudação um forte odor trescala, E o ambiente corrompido a vinho e a nardo cheira. E resto de festim no mosaico resvala... Taças gregas, rocais e véus de bailadeira, Diademas da nobreza e túnicas de gala Rolaram na expansão da orgia derradeira... Aos acordes finais das músicas lascivas Quedou-se de cansaço a erótica loucura; No sono da embriaguez aquietam-se os convivas. Silêncio em tudo agora; e noite alta, erradia, Átrio a dentro, espalhando o luar que fulgura, Somente a lua vela os destroços da orgia. ÚLTIMO VESTÍGIO [J. G. de Araújo Jorge] Tu deves te lembrar: aquela casa antiga entre o verde bambual e a frondosa mangueira, a varanda, a esconder-se sob a trepadeira, e o riacho a marulhar sua velha cantiga... As flores... o jardim... a estrada: uma alva esteira onde nós a sonhar andamos sem fadiga olhando para o céu, — tudo isso minha amiga mudou... A nossa vida é mesmo passageira... As paisagens de outrora, estranhos transformaram: — o jardim... o bambual... a estrada, e até nem sei se as águas do regato os anos não pararam... Uma cousa porém, existe, eu vi depois: — é aquele coração com os nomes que eu gravei no tronco da mangueira a relembrar nós dois!... RUÍNAS [Jordano da Mata] Sou arquiteto, mísero arquiteto; Que ergo, de crânio aflito e mãos macias, Templos de beijos, cúpulas de afeto, Catedrais de ternuras e harmonias! Rugem depois os bárbaros... E o teto De ouro, e os zimbórios de ouro, e as arcarias, Tudo desaba... O chão sangra, repleto Do sangue branco das arcadas frias... Quebra, arquiteto, as asas do teu sonho; Para os homens, tua arte iluminada É de atro estilo e pórfiro medonho! E ermo, e triste, no horror destas ruínas, Senta-te e espera a sombra desejada Que erga de novo as construções divinas! TELA APAGADA [Luís Delfino] Como isto aqui mudou!... Agosto, o ano passado, Tinha mais sol, mais luz, mais calor, menos frio; Mas tudo o mais é o mesmo: a água do mesmo rio, A ponte de madeira, as mangueiras, ao lado, Velhas, grandes, em flor, o lanço esburacado Do muro, e o líquen nele, e a avenca, e o luzidio Lacrau, que salta, e vira, e já volta ao desvio; O cão ganindo; e a um canto, à esquerda, ao longe, o prado. Bambus em renque, em meio o caminho, e no espaço, Longe do morro, ao fundo, a casa; e no terraço Sobre o jardim, talhando o ar cintilante, a imagem De um anjo, — um áureo nimbo à coma, o olhar humano Como jamais pintou Corrégio ou Ticiano: Quem, levando-a, apagou a esplêndida paisagem!... CONVENTO DA BATALHA [Luís Delfino] Epopéia da pedra, hino em mármore escrito, Cada estrangeiro arranca um pouco do colosso; Cospe-lhe à fronte o raio o luminoso grito, Ladram-lhe aos pés a fome e as iras do molosso. Encostado aos poiais da escadaria, o moço Campônio a frauta ensaia indiferente: — ao infinito, — Águias negras — em um fantástico alvoroço Alam-se as torres sobre as asas de granito. E aquela mole imensa, arcos, aterradoras Pontes, e botaréus, e zimbórios, — luzernas De colunas trepando, orquestras triunfadoras, Cantos, que os carrilhões lhe arrancam das entranhas, Que fluem vales além, — e além enchem montanhas, Tudo ela dá na paz das construções eternas... OURO PRETO [Manuel Bandeira] Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada Ribeirão trepidante e de cada recosto De montanha o metal rolou na cascalhada Para o fausto d'El-Rei, para a glória do imposto. Que resta do esplendor de outrora? Quase nada: Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto. Esta agência postal era a Casa de Entrada... Este escombro foi um solar... Cinza e desgosto! O bandeirante decaiu — é funcionário. Último sabedor da crônica estupenda, Chico Diogo escarnece o último visionário. E avulta apenas, quando a noite de mansinho Vem, na pedra-sabão lavrada como renda, — Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho! CASTELOS DE AREIA [Oton Costa] Meus castelos, ergui-os cada dia, Nas minhas ilusões de sonhador, Dando-lhes tudo, todo o meu amor, Sem notar que a mim mesmo consumia. No meu entusiasmo de criador, Nem sequer um momento compreendia Que os meus castelos, cheios de esplendor, Não passavam de pura fantasia... Hoje, evocando as ilusões passadas, Revejo essas paisagens desoladas Como as ruínas tranqüilas de uma aldeia, E compreendo que fosse incompreendida Uma alma que pensou fazer da vida Uns castelos efêmeros de areia... RUÍNAS [Pethion de Villar] Entrei no velho templo: escombros, ruinarias! Necrópole de pedra — a nave. Espedaçados Nichos, a hera enrolando as pilastras sombrias, Troços de cruz, no chão altares derrocados. Fendidas de alto a baixo as vastas arcarias, Fustes sem pedestais, púlpitos derribados; Ainda sustida a torre aberta às ventanias, Milagres de equilíbrio em muros inclinados. Soturna e funeral, na abóbada sonora, Somente a voz do vento a gemer uns assombros, Dentro daquela igreja ameaçadora e vedra, Como a Alma do Mistério ali guardado outrora, Ainda a viver, saudosa, agarrada aos escombros Até que se esboroe a derradeira pedra! NUM VELHO CONVENTO [Raul Maranhão] No âmbito sepulcral deste convento, Na arcaria do claustro que examino, Como medita o nosso pensamento Sobre as vicissitudes do destino... Cada pedra revive um sofrimento... E neste ambiente místico e divino, São gemidos de dor, queixa, lamento, Os sons plangentes do seu velho sino... Quando ele estava sendo edificado, — Há três séculos — certo, quem o visse, Cuidaria ficasse eternizado... Agora é ruína que se desmantela, Sepultando, na queda da velhice, Os segredos de amor de cada cela! A QUEIMADA [Simas Saraiva] Lançando um estendal de flâmulas vivazes O fogo, em rubro excídio, arde, ao soprar do vento, Por toda a vasta chã; e ressangra, em gilvazes, Nas frondes, ao crispar de profundo tormento! Estupendo e brutal, em colear violento, Desdobra-se em milhões de ignívomas tenazes, Enchendo a noite brusca, em assomos audazes E reverberações, pelo alto firmamento!... Amanhã restarão nas terras comburidas Um manto cineral, destroços e borralhos, E árvores, à feição de espectros, denegridas... Mas a bênção virá das chuvas bramidoras... E as folhas surgirão dos ressequidos galhos E cantará, de novo, o verde das lavouras! DE OUTRO TEMPO [Teotônio Freire] Essa arruinada estância foi outrora Nobre castelo de esforçados pares; Hoje montão de pedras, onde a aurora Põe tons de treva e sombras singulares. O tojo cresce e os paredões colora A esverdinhada grama; sobre os lares A poeira e, além, nos robles seculares Do parque, o deus do isolamento chora. Alta noite, porém, torvos, ferinos, Batendo escudos com as agudas lanças, Surgem das ruínas bravos paladinos, E austeros, graves, frontes levantadas, Passam, jurando mortes e vinganças, Com a mão na cruz das rútilas espadas. TAPERA (ao José M. Leivas) [Vargas Neto] Alguns torrões no mais! Um cinamomo! Heróica retaguarda em retirada! Corro as chilenas no bagual que eu domo, Chego em cima dos restos da morada. Dou rédea ao pensamento, e então, eu tomo Rumo do que se foi, em disparada... Eu vou pensando que a tapera é como A saudade do rancho feito nada. Nesse rancho morou uma china linda... Quanto cabolho não atou seu flete No cinamomo que está vivo ainda!?... Quero pensar o rancho tal qual era! E alço a rédea... a tristeza me acomete No mistério crioulo da tapera.
°°°

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes