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Renata Pallottini (São Paulo SP 1931)

Versátil artesã de diéreses e sinéreses no decassílabo, passa por escrito o mesmo poder de persuasão que sua voz performa ao declamar. Seus temas recorrentes, marítimos ou bíblicos, abrem espaço para a sensualidade e o afeto. Pequena amostra:


SONETOS DE VILA REAL, VI

Casam-se bem as pompas a este rito;
o morto pousa e tudo o mais flutua
e é leve, entre as colunas de granito
por onde o som do órgão se insinua.
Assim as flores fáceis, porque feitas
em ramo acidental, Antonio, e os prantos
igualmente fortuitos, e as perfeitas
álgidas vozes que constroem os cantos
não me tocam no cerne. Não me incluem.
Estou ausente desta ambígua festa.
Bom que os cantos e a música flutuem,
pois o que resta é apenas o que resta:
flores e formas, lágrimas e insídias.
Ah, o cheiro fanado das orquídeas!


SONETOS DE VILA REAL, VII

Há um mar entre esse porto e o nosso porto,
um mar de olvido e de distância, um mar
que faz o esposo sombra, o filho morto,
e da esposa e da mãe, o recordar.
Há nesta terra o ardor dos frutos verdes,
não espereis de volta o vosso irmão;
se o amais, consolai-vos de o perderdes
que ele é conquista e planta deste chão.
Se permitis que se desligue o laço,
(se o permites, Antonio) que se corte
a potência comum do vosso braço,
contai que está desfeita a antiga sorte:
distantes do renovo que vos deixe,
tereis áspero o fruto e amargo o peixe.


MEMÓRIA

A luz habitual tornou-te um mito:
o mago precursor de estranhas lavas
com que, gênio do amor, iluminavas
o, entre outros leitos, simplesmente grito.

Por sereno que foste, e por bendito
ficaste, e ninguém soube que ficavas.
Hoje há muito de ti sobre as aldravas
e tua voz floresce do granito.

Os livros crescem tua esplêndida ilha,
sombrios exemplares do teu porte,
testemunhos da em ti nobre vertigem;

herança frágil deixas para a filha:
a efígie vaga em aparente morte
e a sensação do amor, morta na origem.


SONETO DA PARTIDA

Que golpe decisivo ou força nova
arrasta assim um homem para a treva?
Que estranho impulso a um mundo estranho o leva
que enorme sonho o sonho seu renova?

Não é o gélido ouro, nova lava,
de excessivos vulcões deusa excessiva,
não é o quente amor que prende e priva,
nem coroa de ouro excelsa e flava.

Morto, se for, será perdido e pobre,
vivo, se vier, será tão pouco nobre
como se não partira e não tornara.

Que força, então, seus membros nus recobre,
que o faz surgir como uma estátua rara
e enche de luz sua pupila clara?


SONETO DO PESADELO

Lá numa praia escura e impossível,
em angra morta e negra, onde os mistérios
marítimos misturem-se ao terrível
dos obscuros viajantes aéreos,

onde o mar não sussurre, estronde e grite,
onde o vento construa pesadelos
e entre os negros rochedos precipite
mulheres infernais pelos cabelos,

e de onde um miasma bruto se levante
entontecendo a vista e o pensamento,
e as árvores se curvem, como diante

de um deus de medo e fúria e de tormento,
terra de onde não se volta mais,
nessa praia, marujo, aportarás.


SONETO DO FINAL

Com lâminas de espadas pactuei
e entre punhais esguios fiz meu canto.
Meu coração é um malfadado rei
que depôs, roto e pálido, o seu manto.

Cores de antigamente abandonei,
abandonei-vos, flâmulas, e entanto
morre dentro de mim (onde não sei)
tudo o que outrora conheci de santo,

tudo o que conheci de antigo e puro
(ah, o último veleiro deixa o porto...)
oceano de fadigas, mar escuro,

silêncio, meus vassalos, tudo é findo,
não desperteis o marinheiro morto,
vede como é sereno e como é lindo!


ÊXODO

Aqui repousa o bicho; nasce o homem
da mão que tenta o gume e prova o sopro.
Aqui, da fonte se elevou um corpo
e as águas claras o saudaram, ontem.

Aqui te amo inútil, sutilmente,
provo o gume e o sopro e sobrevivo,
sou mesquinha, soberbo é ser vivente,
aqui resisto à morte e ao seu convívio.

Musgo de pedra são as oferendas,
líquida é a voz com que te banqueteio
e, farto, és uma ânfora perfeita.

Permites-me te amar sem que te ofendas;
tua serena integridade odeio:
— amor, total, a forma com que é feita.


II SAMUEL

Por amor deste amor e ser amado,
por graça deste bem que hás concedido
a quem amou, por obra do vencido
no amor, e pelo amor do torturado,

por alma de quem foi reconhecido
como irmão de minha alma e do meu fado,
e a quem, por meu destino e meu pecado
perdi, antes que o houvera merecido,

por esse que meu lábio ainda canta,
que já não me conforta neste mundo,
no meu resto de vida triste e nua,

pague eu em pão e vinho e terra, tanta
quanto me foi o seu amor profundo
e sua morte dolorosa e crua.


LIVRO DE JÓ

O cervo que suspira pela sombra
e o homem que trabalha e espera a paga
sonham com o leito; duro e cruel, meu sonho,
és tu: sonhar a noite e após o dia;

pois se me deito e a fronte se me ensombra
repouso não me dá, nem forma vaga
de vão sonhar, o leito onde me ponho;
meu pobre corpo esquálido vigia.

Luz e luz, noite e noite, areia e tempo
deu-me Deus; essa dádiva persiste
mais além do que é sonho o pesadelo.

E deu-me a boca com que me lamento,
a carne com que sangro e sinto triste,
o sal que choro e a força de fazê-lo.


CÂNTICO DOS CÂNTICOS

O meu amor é meu e eu sou dele.
O linho horizontal é nossa casa
e eu me aninho a dormir sob sua asa;
amo-o com minha boca e minha pele.

Ele é quem vela e não me diz que vele
porque sua é a chama e minha a brasa.
O seu fervor ao meu fervor se casa,
clara coma de luz que nos impele.

Desci ao campo raso: ele é meu campo
onde me deito e a erva se derrama;
é meu olhar que voa, pirilampo.

Sem terra irei por terra; ele me chama.
Vou, sem saber por onde, ao mar ou monte.
Sem sua boca eu já não sei ser fonte.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes