|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Wilberth Claython Ferreira Salgueiro (Rio de Janeiro RJ 1964)

O conhecido e reconhecido professor de pós-graduação em letras da Universidade Federal do Espírito Santo, a par da agudeza do observador em seus livros teóricos, revela também a inventividade do sonetista contemporâneo num livro assinado pelo pseudônimo Bith, reunindo "causos" estroficamente narrados ao sabor de rimas desenvoltas na maleabilidade sonora, que enquadram caricaturalmente os mais estranhos (e familiares) tipos humanos, alguns dos quais certamente reais. Tal como Fernando Marques e outros artífices do soneto anedótico/ficcional, Bith desempenha, com seus "personecontos", uma das facetas mais pós-modernas do gênero: a interação do conto com o poema, ou aquilo que chamo de "transficcionismo". Abaixo vai uma amostra.


PAULO E PAULUS (personeconto #1)

Quando Paulo se viu naquela selva escura,
pensou estar perdido. Uma luz ao fundo
serviu-lhe então de guia. Percebeu-se nu,
excitado, com frio. De repente, um

gato preto aparece e, sorrindo, lhe diz,
entredentes, na treva: "Lembra-se de mim?"
Era Paulus, meu Deus, recordou o perdido
poeta, pasmo e trêmulo, qual um noctívago.

"A luz que você vê são meus olhos abertos,
como faróis, espelhos negros que revelam
o caminho do inferno." E sem mais nem menos,

sorrindo, sumiu. Paulo apalpa a própria cara,
procurando na mata da memória a cara
do gato preto Paulus que outrora matara.


BARTOLOMEU (personeconto #5)

Bartolomeu levava um solo quando
um ovo, vindo da primeira fila
do bar Viagens, varou o ar em anti-
musical ato: atingir-lhe o ouvido.

Bartolomeu, saxofonista fun-
dador da Banda Oveeneí,
soprou com mais força o sax, como num
gesto que vira, na tevê, de um ídolo.

Bartolomeu prossegue o jazz, mas outro
ovo e mais outro acertam o sax e o rosto.
"Quem fez... Quem fez isso é um homem morto!"

Bartolomeu avança e vê, de sax
em punho, o pai, que se matara, após
assassinar a mãe, Natasha, a gás.


MARIA (personeconto #8)

Falecidos, seus pais, uns intelectuais,
deram-lhe de nascença: Verana Ravena.
Assim sem sobrenome, sem crisma, sem pena.
Um dia, sem que tais, se disse: nunca mais!

Sim, odiava o próprio nome. No cartório,
o escrivão Carlos Vaz, de cor: "Você faz
conforme o seu doutor advogado. É só."
Mudaria afinal os nomes infernais.

Mas seu destino estava escrito em alexandrino:
casou-se com Edgar, poeta e da garrafa.
A vida imita a arte? Não quero ser partner

(pensou, rindo da rima, tão rica e bilíngüe)
em tramas de sinais. Agora sou Maria
—  anagramas jamais —  Maria de Maria...


CAIO (personeconto #20)

Vivia cometendo trocadilhos
—  e por isso acabou pagando ao Pato.
Brindava: "Tomo coca-cola em lato...
senso...", e ria, líquido, do chiste.

Se jogava na frente o nome: "Caio...
Rolando..." - viajava - "da... da.... Rocha!"
Tinha seus bordões: "fé demais", "cá, brocha",
"tem pão, fresco?", "o pé, louro", "trocadalho

do carilho, mais trágico que a peça
"Antigona", de Sófodes, o cego",
rá, rá, ria, da própria "eros-dição".

Um sem-graça porém atravancou-lhe
o caminho. "Meu nome é Caio Ro..."
"O meu é Pato Fui Tocaio Não!"


ADEMIR DA GUIA (personeconto #22)

Sou bonito, sensível, paciente,
educado, poeta - autocrítico.
Tenho quase dois metros, olhos pretos,
quarenta anos, jogo tênis, pinto.

Procuro moça, como eu, modesta,
inteligente, alta, jovem, linda.
Não precisa ser loura. Saber rir
—  e dançar bem boleros —  é o que peço.

Na cama, imagino mil loucuras.
Gosto de futebol, e de pseudônimos.
Se te agrada o perfil, estou aqui:

sete, dois, dois; setenta, sete, um.
Enfim, sou possessivo, fino, dono.
Procure-me, nas rimas. Ademir.


ROSAUARDA (personeconto #23)

Mire veja, Ademir: também sou fã
de poesia, tênis, futebol,
pseudônimo, pintura, sexo, dança.
Parece que nascemos um pro outro.

(Talvez não dance bolero tão bem,
mas na cama compenso essa falha.)
É árabe meu nome - Rosauarda.
Mas me chame de Rosa, dá no mesmo.

Sou vaidosa: não posso com espelhos
—  sinto-me num papel folhetinesco.
Mas prefiro Machado a Alencar

(nada me agrada a arte de chorar...).
Enfim, li suas guias, pintas, rimas:
entre mim e você, você vai vir?


TUBI OU DIEGO (personeconto #25)

Foi tudo muito rápido. Arqueu
saiu jogando a bola pra Tomé
que, da lateral, viu Tubi correndo
em baita impedimento, sem zagueiros,

mas o juiz deixou passar por causa
de ter sido assim rápido. Então
atacante e goleiro se miraram,
no segundo possível de um olhar

antes do gol fatal. Eis que Tubi
hesita: tenta o drible, tenta o chute...
Foi um átimo: feito um vento sul,

Diego dá o bote, chega em cima.
A torcida, de muda, grita uuhh...
quando, antes de entrar, a bola fura!


BITH (personeconto #34)

Acabo de ter uma grande andréia:
e se você quisesse benjamim?
Feito raimundo ou dó ré mi fabíola
(isso tudo é assunto muito sérgio)...

Poderia ter lido ali no lino:
meu coração-bandeira é sempre flávio
perdido por aí, um são bernardo
náufrago de garrafas e marílias.

Profundissimamente de memelli,
meio dura lex sed lex, vou-me orlando
de bandanas, antonios e fernandas.

Valdo lá! E o que não coube cá, bith,
bardo falto de aurélias? Vem com mig,
gladsons, copoanheiros: vam'bebel!


JULIO, CARLOS, MERCEDES, AGUIAR E EU (personeconto #38)

Desceu pra comprar pão e não voltou.
Julio, em geral calmo, sentiu pânico,
pois Carlos, mesmo sendo o seu Eu Outro
(brincavam), nunca o abandonara tanto.

Desceu pra procurá-lo —  e não voltou.
Mercedes, mãe dos dois, sentiu um tédio
(brincavam), pois os gêmeos eram loucos
e viviam jogando de esconder.

Desceu pra bronquear, e não voltou.
Aguiar irritou-se com os três
(brincavam). Sem trabalho, foi atrás.

Desceu pra dar um fim (e não voltou).
Fiquei aqui, no quarto. Epiléptico,
até quando estarei só, sem brincar?


BERGER (personeconto #43)

Caminhava no parque quando viu.
E viu que a vida já não era a mesma.
A mesma, sempre outra, feito um livro.
Que, sentado na pedra, ele leu:

"(...) Ao léu, imaginou-se uma cebola
misteriosa, em camadas, compacta.
Mas em cada camada (cada capa)
uma dor que, no tempo, se esconde.

Berger, cebola, quis: ao temperar
ia surpreender todos os dentes
rindo, em vez das cortantes (facas) lágrimas. (...)"

Cebolas, pedras, lágrimas voltavam
—  risos, temperos, páginas também.
E Berger viu que o mundo era ele em verso...


Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes