|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Rubens Rodrigues Torres Filho (Botucatu SP 1942)

Caso singular das últimas duas décadas do século, é personalíssimo quando coloca a filigrana filológica a serviço da fisionomia filosófica. Sonetisticamente tem sido escasso, mas seus exemplos compensam e sopesam volumosos repertórios. Ei-los, garimpados com a achega de Donizete Galvão, outro que, como eu, cultiva essa poesia:


OFICINA FEROZ

Agido por teu ferro, fantasia,
e revirado ao vivo, se te agrada,
verei algum soneto, ao fim do dia,
acrescentar-se à coleção minguada.

Assim, de madrugada em madrugada,
botões para florir a antologia
irão desabrochando, a um tostão cada.
Chorava o coração? A rima ria.

E por amor da rima continua
batendo a tecla da melancolia
algum suspiro, algum clarão de lua.

— Vale um soneto! exclama, estrampsicado,
o poeta, à frente da lâmina nua,
feroz, talvez. Mas ele é mais afiado.


O PEQUENO DESCONSOLO

O pequeno desconsolo
que entrava nosso peito
foi abrindo seu caminho
para instalar sua fenda.

Ah fundo de um cego espelho
onde anteontem perdemos
nossos olhos inocentes.

Agora sentimos grades
em vez dos braços, sabemos
o desemprego dos gestos
com que nos aninharíamos

um no outro, sãos e salvos,
se a natureza seguisse
a clara lei do desejo.


QUINHENTISMO

De tanto haver mentido por amor,
de tanto haver amado, por mentir,
encerro minhas contas, dor por dor,
como quem fecha o livro do sentir.

Ah sentimento, filho de uma boa
mentira própria-alheia, reversível,
o tempo que gastei amando à toa
me separou do mundo do visível.

Agora a claridade fere o puro
olhar de minha dor c'o saldo frio
dessa doce viagem pelo escuro

e me custa aprender que é caro o juro
que tenho de pagar, dias a fio,
a caminhar no claro, no vazio.


SEISCENTISMO

Atro clarão: na cara da pantera
minha simplicidade se abre em fera
e, pura boca, escancarando a espera
enxuga, enxuga a cântaros o rio.

Cantiga antiga, este soneto espera
ter fôlego, equilíbrio e desvario
para o que der e for, vier e frio,
para o que fio e flor, em que me afio.

Ai, antes e depois, por onde andamos
a onda é vaga e a vaga vagabunda.
Ao ouvido do tempo sussurramos

tais exigências, nos abandonamos
a tais velocidades que a profunda
superficialidade disto nos inunda.


OITOCENTISMO

Onde pousou o olhar, sonho de um ninho,
o côncavo restou, exposto a assalto.
Se venta, ou há algum frio, esse escaninho
desenha a bico fino seu formato.

Dê-lhe almofadas, calce sua sede
dos mais macios e engenhosos calços.
Não sei se distraí-lo não agrava
o gume que ele tem e ainda o cava.

O tempo não o acalma, antes afia,
e nem dormindo cessa o seu trabalho.
Fosse ferida! que cicatrizasse

como uma boca que por fim se cala
e não esse prenúncio que se instala,
crucificado, entre o bálsamo e a faca.


EXISTENCIALISMO

No fim das contas, que me resta? O sono,
o despejar meus restos na privada,
o querer tudo, não poder mais nada,
não responderem mais se eu telefono.

Ir à cozinha, no meu abandono,
comer um pote dessa marmelada,
voltar ao quarto, pôr o meu quimono,
deitar na minha África sonhada.

Ler um pouco de Sartre, abrir a boca.
Riscar num bloco uma bacante feia.
Ligar o rádio: uma cantora rouca.

Sentir meus olhos grávidos de areia.
Sentir no fundo uma saudade (pouca).
Ir olhar que horas são. Duas e meia.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes