E m regra, a morte não era interesse principal de W. H. Auden. Mas, ele relembrava freqüentemente o tema 1 . Além dela, ou sob ela, ou interiormente a ela como uma sombra que passa diante da face e penetra indubitavelmente pelos olhos até o âmago da alma, a morte não era a outra face da vida, a cruz por atrás da cabeça. Nem a cruz escondia uma cabeça! O homem vivo e o homem morto não representavam uma variação conotativa, senão duas instituições decididamente diversas onde alguns pontos levam a refletir ao longe suas propriedades, como se entre dois homens vivos pudéssemos reconhecer propriedades comuns sem que as identidades sejam idênticas.
Esta visão é possível, segundo uma separação entre a massa e os indivíduos que a compõe, sinalizando diligentemente uma mente a qual sustenta uma memória coletiva, que das muitas se tornou possível, mas cuja essência não é completamente participativa a ninguém. E é, ainda, da memória coletiva que a memória de um homem ganha forma, sem que a sua pessoa jamais tenha sido conhecida imediatamente. Além dos desencantamentos aos problemas da morte, sem, isto é, significar o obstáculo com a facílima conseqüência de reporta-se aos lugares comuns, respeitando as tradições ou as instâncias intelectualistas de um experimentalismo literário, Auden preferiu pegar uma via diversa, percorrendo uma série de temas contemporâneos inspirados na morte de uma grandíssima personagem do mundo literário, mas também do panorama histórico. Explicando melhor, nos indica que a morte de um homem é o momento preciso em que duas entidades [primeiramente ligadas sob qualquer aspecto] compreendem seguir dois destinos sempre pouco compartilháveis - como por uma lágrima, por uma fratura incalcificável de um fragmento de osso que permanece, e de alguém que se vai e não estará mais unido ao corpo.
Verte-se em indiscutível: o homem morto é, por definição, ainda vivo. Ao contrário, em seu legado, a fratura da morte produz duas formas: uma aberta aos quatro ventos – recolocável - a qual ampliar-se entropicamente para se permutar; e a outra que pode permuta-se a modalidade totalmente heterogênea. A primeira forma é a fisicidade do morto e dos lugares sobre o qual ele – vivo - tinha exercitado a própria influência, reproduzindo, agitando, comovendo, sugerindo, aconselhando, ordenando: penetrando, em síntese, na única memória singular e dinâmica dos vivos e das coisas, de acordo com as demonstrações biológicas e culturais. A segunda, apoiada nos mais diversos suportes físicos, resulta a integridade formal, sempre salva na concreção de uma integridade pré-unitária e mais completa [pré-unitária em relação à forma geral a qual precede qualquer particularidade interpretativa, onde diremos ser de tempo em tempo unitária, e cuja permanência em seu gênero está fora de uma unidade de compreensão estética], não fazendo parte da fisicidade do homem outras, mas, apenas aquelas que lhes são de origem. Este segunda modalidade tem pouco a fazer com o indivíduo singular e criador, entretanto, muito tem com os homens. O indivíduo em questão é – entrementes - o escritor, o artista: quem não o é, não sabe nos incluir neste segundo legado, de uma integridade sem outra inconstância aos olhos dos homens, mas que dificilmente pode se perder de si mesmo. É válido perceber a inteligência do mediador da tradição eliotiana, que desloca o fulcro do fazer poético pelo sentimento biográfico – ou melhor, biológico – à emoção coletiva e culturalmente fortalecida por uma tradição; já se distanciando da sua própria obra para se pôr como qualquer leitor, culturalmente semelhante, além da página. Fazendo assim, transfere de si uma série de acontecimentos, geralmente, particulares para apodera-se a uma série de livros de leitura pessoal, mas nem tão universais. É esta uma das questões inerentes ao uso das alegorias, cuja proximidade vale em um contexto culturalmente determinado e cuja recuperação se faz mais árdua e medianeira em relação a quem o excede em espaço e cronologicamente.
Entre formato e interpretação da forma passa uma variedade imprecisa de valores que a noção de tempo contribui para exaltar. Assim, de um lado, pela morte de um homem, há o sentimento próprio da perda onde os vivos, a seu modo, prevenindo-o familiarmente, revertem e, ainda, reverterão àquela entidade que era e teria estado viva para algum deles, antes, durante e depois da morte. De outra parte, a obra é dita conclusa ou duradoura [de acordo com forma ou conteúdo], começando a assumir uma peculiar configuração unitária, continuando a viver de maneira particular. As mãos do artista estão irremediavelmente distantes da sua criatura e os dez dedos não podem alongar-se para retocar o barro de uma vez; adaptar o aparecimento de uma clavícula ou somar um elemento à obra. O autor e a obra não comungam mais algum destino comum. Eles sofrem um trauma, uma ferida, uma aflição com a separação, como se nunca tivessem sido tocados [caso a ferida esteja, paradoxalmente, advertida por quem a observa, conforme um processo de identificação e piedade]. Do lado de cá, o homem sobrevivente se lembra, ver, ler, lança-se nas sensações e nos sonhos da vida, enquanto o mundo continua a progredir sem que ele possa interferir aparentemente no curso dos acontecimentos.
As regras das sociedades ocidentais anseiam que a obra aproxime o nome ao autor. Se for desconhecido procura-se individualizá-lo, remontando a origem - isto é, a causa que na literatura é sempre humana. Por regra, se for conhecido se previne a proteger seus direitos de autor, no caso se forem exercitáveis, celebram-se repetidas vezes em sua honra ou tenta-se cancelar cada rastro seu. Pertence a nós todo esse mundo de regras e comportamentos!
Além da ou fora da vida vivível, tudo isso não tem senso, porém nada se sabe. O além não tem razão a denominação nem ao laço estreito de identidade entre nome e o indivíduo. Explicitamente não se sabe de nada! A denominação e o laço de identidade entre o nome e o indivíduo que é o autor, o qual estava vivo, abrem um caminho limitadíssimo aos vivos, pois associam o autor a cada trabalho seu. Sobre a morte, com o passar dos anos, das gerações, dos séculos, sabemos que com tempo, amplia-se para assumir uma forma unitária e mais similar a cada fruto singular de sua obra. O olvido dos sentimentos - maturados em uma circunstância universal quando se quer - possuem também valia aos conceitos.
Também os conceitos, se não forem inatos ou inequivocamente codificados, se rendem à passagem do refazimento e ao olvidamento. Melhor dizendo, a memória de um homem, por enquanto, é geralmente breve, esquece com muita facilidade circunstâncias, lugares, nomes e datas das quais tinha tido familiaridade [Não é talvez isso que aflora com mais imediatismo nos angustiados quanto aos gestos burlescos de Krapp’s Last Tape de Samuel Beckett?]. Pois, para que possa recordar, o homem precisa repassar – isto é, repassar aonde já havia estado. Sem as passagens repetidamente reiteradas, o nome continua como um tipo de significante ultrajado. Quando nos referimos a um escritor morto, o seu nome leva sempre consigo um significado mínimo, um significado que aparta nesta hora as linhas de sua face, o dissolver do seu sorriso, as suas posturas, as suas possibilidades biológicas e culturais. O significado ulterior é que este indivíduo é autor de uma obra literária. Quer apenas no conteúdo, na forma ou, ainda, no único título da obra, caso não se possa transferir o nome do autor deste significado esquelético; na associação entre um nome próprio e um significado que tem o atributo genérico do homem criador de algo diverso dele mesmo: a obra de arte, a obra literária, que tem entretanto um valor enquanto é forma que sabe prescindir a sua materialidade.
Estão daqui avançadas as suposições: o nome de Orfeu, aquele de Homero, atribui-se trabalhos em versos e em prosa a William Shakespeare, eles nem indicam as partes originalmente de sua mão. Ainda como exemplo, os trabalhos atribuídos a Durante, como A Flor e O Lema de amor, transferidos a Dante; procura-se a mão de Casares em Borges, pesquisando-se. E investigando matura-se o distanciamento dos tempos e dos sinais. O tempo transcorrendo, as testemunhas detrás dos nomes deles se adelgaça, como membranas que a primeira ocasião se contraem ou se dilatam, assumindo dimensões inverossímeis no circuito de algumas décadas.
Há uma profunda aflição em consideração ao paradoxo da pesquisa, a via contrária para um autor que não é mais ele mesmo e que perdeu para sempre a sua exclusivíssima garganta, o domínio no qual tentou se reconhecer; e em particular deferência a isto deve se dar ao redor da obra de arte, como se não tivessem uma razão própria, um espírito deles [Pensa-se, no assunto, na atividade complexa dentro das instituições do Estado, presa ao espírito da norma legislativa.].
História e crítica, expressão, representação e arqueologia não são a mesma coisa. Para um poeta comprometido como Wystan Hugh Auden não podia ser a mesma coisa. Emprestando a sua voz em homenagem a William Butler Yeats, poeta irlandês empenhadíssimo, o escritor inglês congregava o acontecimento da morte do grande bardo irlandês para se avaliar com uma variedade de temas que passaram exatamente sobre aquele coração anglo-gaélico. A vida humana, a circunstância biológica, a obra de arte que possui vida própria, a obra humana qual construção tecnológica, a memória, a religião, a natureza, a impossibilidade do indivíduo e a obra de arte em mudar os acontecimentos históricos e naturais.
Auden escolhe três movimentos [secções]:
1) Um movimento aparentemente narrativo, livre de esquemas métricos preestabelecidos, porém incisivo no refrão de conclusão onde recupera o fim da primeira divisão;
2) Um segundo movimento é discursivo, apoiado em uma estrutura de hexâmetro que se vale de repetições para-rimáticas, apropriado para indicar que isso expresso por Auden, vem prescindi-lo em quanto autor, e cuja função conativa é apenas aparente, visto que a função metalingüística vem prevalecer o tema dominante que é a poesia 2 ;
3) O terceiro tem formação oracional com seis quartetos trocaicos a rimas emparelhadas, divididas fantasticamente em dois grupos de três. É de observar que, se não introduzido o agradecimento, a forma perde um elemento essencial para a página, enquanto se conclui realmente com exaltação, louvor, para melhor assistir o término da poesia, o louvor dos homens aos homens sugeridos por ela, e não um louvor ao autor.
Ainda podemos ler os três movimentos como:
· A Morte de W. B. Yeats;
· A Sobrevivência da Poesia;
· A Sobrevivência da Vida Natural da qual o Homem faz parte.
Nos três movimentos já há todo o senso da impossibilidade de expressar com uma única forma os próprios sentimentos. As três formas dizem: nós temos três possibilidades a expressar a razão daquele acontecimento. Mas eles teriam outras. As três, raízes da perfeição, representam, na unidade da composição, a imperfeição que impossibilita uma síntese unitária a qual exprima um senso a morte de Yeats. Os três movimentos ascensionais de morte, pós-morte e oracional não abrem nenhuma fresta à metafísica, nem a aproximam num gesto instintivo. A menos que não se queira considerar metafísico um símbolo, dado que o “Yeats” da comovente oração do terceiro movimento não é outro se não ele mesmo. Da sua vida real nada é nulo, se não a sombra de um magistério imprescindível, pelo menos por aqueles ‘poucos mil’ [de pessoas] que tem cultivado o valor moral.
A sua biografia continuará sendo escrita, mas a sua biologia está assinalada. A fratura completa, o fragmento ósseo [o homem] permanece separado de um corpo [a 0bra] a qual não pode mais se juntar. Sem dúvida, não é estranho que seja o homem real o fragmento de um esqueleto que continua vivendo de uma vida própria: é simplesmente natural e terrível, assim como a morte e a consciência da sua necessidade. O movimento ascensional, respeitando uma linha semântica completamente horizontal - sem verticalizações e ascensões, apontamentos e metafísicas -, solidifica-se no estilo e na voz, conforme um puro discernimento entre estilo e significado. Este também, é um modo, de estar na ordem das regras, de socializar a expressão a um grau posterior, de se por no interior da questão relativa a verdade e mentira, de se encontrar conscientemente além da tautologia e incoerência, das colunas de Hércules, diremos no momento, de cada semiótica.
A coisa mais fácil a qual poderia recorrer um poeta intencionado a escrever uma elegia a morte de seu congênere, deveria ser certamente aquela da identificação e da piedade. Auden seleciona a separação – na primeira parte - fotografa cruelmente uma série de cenários que circundam a morte de Yeats como os riachos, os aeroportos, a neve, as estátuas públicas, as florestas de sempre-viva, o rio, as docas, as praças, a corrente, o bosque; e ainda tipos figurativos como os lobos, as enfermeiras, os admiradores, os corretores da bolsa, os pobres. Porém destaca subitamente e ressalta-se do resto, emergindo com uma força, um elemento natural e aparentemente inocente, o mercúrio, do qual o homem faz uso para uma série de ferramentas amalgamadas, dentre as quais o termômetro. O termômetro mede a temperatura, seja a do corpo humano, a ambiental, a meteorológica, a climática. Medir a temperatura significa, ao homem comum [e agora o poeta é um homem comum], constatar um grau de conforto ou desconforto, pois a função primária da ação é aquela da consulta ao instrumento posto num lugar de interesse e finalizado com conhecimento diverso da resposta.
Na composição de Auden, o mercúrio se torna uma ponte entre conceito e sentimento, entre natureza e técnica. O termômetro é o mercúrio, a forma e o invólucro da ampola. As formas no invólucro reproduzem o valor conforme a unidade de medida eleita, estando na ordem do conceito humano. O mercúrio comporta-se com objetividade diversa, a diferença de seu comportamento está no ambiente que venha se encontrar, não no significado de sua expressão. O comportamento do mercúrio, a sua reação ao ambiente adjacente, produz no termômetro uma valia em que o homem diz ao seu propósito: a objetividade é realizada pela relação entre mercúrio [no termômetro] e o ambiente em que ele é posto. Em objetividade, nem mesmo o termômetro se aproxima da avaliação para qual é estado o produto humano. Ele não diz onde me encontro está 2 graus centígrados, portanto..., - não há um portanto adicional e conclusivo. Limita-se ao circunstancial valor bitolado. Imergindo-o (The mercury sank, I, 4), o mercúrio indica a queda da temperatura ambiente. Deste modo, ele expressa um valor objetivo enquanto o mercúrio simplesmente indica. Isso não expressa nada, já que é propriamente a expressão que lhe falta.
A língua inglesa associa a frieza à separação, o calor a alegria e a simples participação afetiva dos outros. A escolha da menção do mercúrio, na primeira parte do texto de Auden, não é outra que a re-chamada de um denominador comum a lugares e mundos [ou não-mundos] distintos que não sabem resigna-se no homem. Intencionalmente, é paradoxal a re-chamada de um denominador comum aos mundos onde o homem se encontra irremediavelmente incomensurável: aquele mundo da natureza, inexprimível nos limites de um sensorial cognitivo reconduzido aos modelos interpretativos [e daquele do espírito] que com as suas perguntas e gestos interiores estende-se a uma metafísica de portas fechadas. O mercúrio - em sua completa afasia - pronuncia a resposta de um profeta contemporâneo, fala a morte de Yeats penetrando na boca, fala, ainda, que Yeats não poderá mais oferecer aos seus congêneres uma obra posterior nem sua participação humana. É este um vaticinar do principio ao fim, rasante a cada paisagem gélida, a cada pista do aeroporto, a cada solo arborizado, a todo piso de hospital ou da bolsa. É alguma possibilidade metafísica a ser aniquilada, enquanto a estética e a poesia não sabem reerguê-la.
“O mercúrio penetrou na boca do dia agonizante” |
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Faz-se menção de uma “boca do dia”, de um “dia agonizante”, e o mercúrio presta-se a predizer ao homem em que “boca agonizante” se encontra Yeats e, ainda, do dia que se prepara para chegar. Indiferentemente, a temperatura cai, nem há sóis poentes nem espíritos que se desligam do corpo. A metáfora e a letra são trocadas de posição: é, aqui, que se encontra a coincidência entre diferentes eventos e - no duplo empréstimo metafórico, com grande posição poética e forte chamada estética, o mercúrio, o profeta contemporâneo que fornece, entre os tantos elementos da natureza, ao desejo humano de saber, podendo apenas implicar, na objetividade circunstancial do termômetro que o homem questiona, uma condição do mundo de puro valor físico, mas amórfico. Fora da mentira cuja possibilidade é elemento declarante – a cada semiótica, o profeta se permite consultar do homem qual o valor das sentenças [na língua entalhada do termômetro], trazendo-as a si para entender melhor o fenômeno. O cantor, o bardo, o poeta são também representantes metaforicamente da “boca”, que pronuncia palavras, subindo ao palco retornando a sua gente, canta os motivos da sua alma. Mas Auden destaca-se em tudo isso. Na primeira parte da composição fala do poeta Yeats, não somente no sentido negativo, de destaque as suas poesias, reconduzindo-o deste modo a um homem qualquer, onde nem o chama pelo nome: o homem e a morte, porque realmente toda conotação tem valor adicional aos vivos. Para nos pronunciar a sua profunda tristeza e a frieza, e a obscuridade da natureza que a morte chama novamente em sua inefabilidade, apenas revoca o mercúrio e os inúteis elementos humanos [inúteis por ora a Yeats], reforçando em súbito:
“Que instrumentos temos harmonizado:/ O dia de sua morte foi um dia frio e escuro” |
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A ausência de semelhanças garante a clarificação do senso de fratura entre o poeta que permanece e o homem que morreu; e entre este último [a boca agonizante] e a sua obra, uma vez que isto é firmado, não procrastinava a um ser vivo, mas a um ser que foi, ou melhor ainda, uma transformação fixada no passado (‘Ele’ tornou-se, I, 17).
Os amplos lugares insípidos, os aeroportos a ermo, os bosques povoados por lobos, são espaços em que está interrupta a linha de comunicação, por um momento pelo menos. Os enquadramentos das imagens são amplos, à distância tomam por inteiro cenários ambientais. Mas toda imagem destacada e a distância ambiental reclamam, com uma ação secundária, valores simbólicos que regressa pelo espaço natural e arquitetônico ao íntimo do homem, já que, na sua inefabilidade, a morte é algo que lhe é imediatamente externo e teologicamente analógico.
Entretanto, o único traço profundo é o ressalto do cadáver da coletividade, em quanto é, primeiramente, uma separação física a caracterizar o acontecimento. O homem que, em seu coma, podia ainda se dizer vivo, se não vital pela coletividade, na fratura da morte vem a ser outro de si e não mais exeqüível e indivisível de outros. A precipitação do mercúrio [The mercury sank] fortalece um dos juízos do morto do inverno [The dead of winter]: aquele do desaparecimento do poeta irlandês dentre vários outros “mortos do inverno. É para seguir esta acepção “d’a morte” que o inverno assume um significado secundário - é o lugar ideal e coletivo dela não somente em seu tempo individual, singular e cíclico. A escrita conservada, segundo a epígrafe do subtítulo (d. Jan. 1939), este sentido inconfesso, simbólico, de conformidade entre a morte e a estação, condição psicofísica e natural, reforço de conotações culturais à apresentação da morte qual estado inexprimível do ponto de vista metafísico, não existindo já que o ocorrido está completo.
“Desaparecer entre os mortos” e “Desaparecer no inverno” encontra-se num significado que se efetua como o máximo denominador comum expressivo, onde a realidade fenomênica e a memória humana aproximam seus perfis de sombra um dos outros, num abraço sem conforto externo a um acontecimento irreversível; já que o inverno não é a estação da morte em incidente fenomênico, mas da morte já efetuada, da morte furna de cada coisa, primeiramente gélida a cada ressurgimento seu. Como o homem agonizante ainda está vivo, assim, ao outono desperta o valor simbólico conclusivo da morte e indica alegoricamente a decadência. Nisto todas as imagens circunstanciais [os cenários] nas quais ela se completa, são reclamadas por Auden não apenas para as suas retiradas dificilmente poéticas e representativas, não só ao destaque em que ele pode se pôr sobre a morte de um outro: que era seu semelhante como homem e poeta, como voz e boca. Porém para o senso de situação mundana que a morte nos exprime.
Por esta razão, procurei sublinhar duas formas de fratura, aquela do homem comum e a do autor [compreendido no ato da resistência da obra e do nome propriamente ditos]. Os riachos apelam como conceito sintético, no primeiro movimento compositivo de Auden, a água correndo - e, analogicamente, a vida que flui. É imagem reincidente, metáfora tradicional da literatura, não exclusiva do ocidente. Os riachos (…) gélidos (The brooks were frozen, I,2) são a vida da natureza e da história (tomados em Now Ireland has her madness and her weather still, II, 4) que, está morta, congelada, o é de fato bem diverso da vida biológica do homem. Na geologia da natureza, a água dos riachos participa de uma modificação do tipo cíclico, é fluido que se faz gelo e que, novamente, poderá voltar à condição liquida. Simbolicamente, é vida que se renova, que tem esta potencialidade em si mesma, que falta à biologia linear ocidental do poeta enquanto homem.
Abaixo do fio condutor da morte de Yeats qual situação já se completara [fato], passa todo um vocabulário europeu que, em variados estados, apresenta-se como enunciação de um acontecimento ulterior do mundo e outro da escrita, recondizível com extraordinária concisão a morte e as suas implicações conotativas. A morte quer situação e quer condição, elas se diversificam uma da outra, uma vez que um homem morto se destaca da própria biologia para se introduzir a uma biografia que é diversa da sua, que não mais lhe aflige, enquanto uma expressão de desejo, consciência e fisiologia. O incipit do desaparecimento entre os mortos em pleno o inverno (in the dead of winter, I, 1) põe tudo no pretérito desapareceu, numa situação já observada [salvo a nova nota da mentira semiológica dentro do modo indicativo]. Não é o findar que acontece, mas o desaparecer [disappeared] qual é conseqüência da morte.
O "begin to be forgotten” joyciano de Ulysses 5 - que era referimento enquanto homem comum - vem aqui amplo ao maior cantor do povo aguerrido: aqueles irlandeses da independência, em 1921, que tem o mérito de colocar-se no auge entre os cantantes da língua inglesa, portanto transnacionais, de todos os tempos. A lembrança é, ao contrário, de outra ordem e direção. Descartada a intenção metafísica da morte de Yeats, vem também exclusa, como se fora citado, a identificação e a piedade. W. B. Yeats não é mais representado como objeto que se faça reviver a experiência da sua morte, nenhum dos cenários é primoroso aos seus olhos, nem se mencionados as sensações do pulso e do coração. Os recursos, isso que lo mensura é externo, eles são os parâmetros ambientais de um mundo onde a comunidade escolheu viver, e aquele pouco que merece mensurar o acontecimento finado, por fim, cada propósito metafísico. O modelo empirista vem entretanto anunciar um significado mais profundo, um sentido que vale aos poucos mil sobreviventes [A few thousand], talvez ao menos uma lembrança posterior. Nós sabemos até muito bem das chamadas doutas e mitológicas das quais Auden era capaz para não observar com vantagem a ausência de similitudes que revocam heróis do universo literário grego:
“Poucos mil pensará neste dia/ Como se pensa num dia em que se realizou algo ligeiramente singular" |
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Onde nem tanto “alguém” que pensa., que suporta a impessoalidade inglesa, se manifesta aos regulamentos do homem, mas na sua associação com o pensar [thinks]. Recordando que o pensar é faculdade essencialmente e exclusivamente humana.
As chamadas da água são recambiadas com imediato brilho para uma série de significados que da escrita passam à alegoria. É uma alegoria moderna, faz exemplo, na importância metonímica de um posterior paralelismo que tem resolução na metáfora, um fruto eloqüente, convincente e dramático cuja escrita é valida como tal; a imagem literal se faz invejável representação poética, enquanto a alegoria origina chamada de uma condição do mundo que permanece exterior aos valores metafísicos e anagógicos: o fluxo da vida congelada (The brooks were frozen – I, 2), a comunicação à distância entre as pessoas reconduzidas(The airports almost desert, I, 2) e os símbolos de uma cultura e civilização posta em discussão (And snow disfigured the public statutes, I, 3), como em uma pausa glacial do julgamento. Vale ainda notar que é a água, metamorfoseada em neve, a deformar as estátuas públicas, um fenômeno da natureza [a morte, a nevada] para pôr em discussão as obras e os símbolos dos homens.
Quando o morto se faz símbolo de um povo -o irlandês - e de uma língua [a inglesa, que a si revoca as mais variadas instâncias culturais e transnacionais], vem de si mesmo a interrupção do julgamento do gelo, do inverno profundo, da coletividade incapaz de recolocar no lugar correto os próprios mitos e de obter uma conclusão particular que, aqui, se veste de uma metáfora sazonal. Neste aspecto, Auden se reconstitui, a seu modo, em paralelo com a tradição literária ocidental [Dante, Boccaccio, Chaucer, Pulgas: os quais são estampados no mundo clássico, grego e latim], que havia encontrado em The Waste Land (1922), de Thomas Stearns Eliot, o próprio extremo, a habilidade, a contraversão. O inverno nos manteve cálidos [Winter kept us warm], conforme a dicção dos corpos no incipit do poemeto eliotiano.
Auden remete-se àquela tradição propositadamente, com um verso seco e decidido que vale uma composição, como um epitáfio gravado com força no gelo boreal ou na campa, evadindo os ritmos abusados do iambo ou as hesitações trocaicas, porém dando abertura a dicção em uma cadência dactílica a qual se prolongaria eternamente encantada e ecoaria continuamente monótona sobre se mesma, não fosse pela conclusão do pé do iambo o qual rompe a monotonia e suplica o feitiço não pronunciado, completamente, do eco cuja repetição dos pés longos acentuados no primeiro foco é sugerido constantemente.
O desaparecer entre mortos na algidez do primeiro verso [disappeared in the dead] chama a fonte (fountain, III, 22) do antepenúltimo verso da terceira parte, a sinalizar realmente o oposto hipotético, socializado, da obra sobre a vida biológica, “o falecimento” do poeta. O Yeats simbólico, o autor que metonimicamente ou pela tradução de significado se fez outro nome de si e em quanto homem, vem reputado apenas na terceira seção:
"Terra, receba um convidado honrado:/ William Yeats deitou para repousar."
A formulação da oração torna-se a terra, respeita a direção nivelada que não ascende aquele espaço metafísico do qual se é mencionado o impedimento. Mas dilata-se e amplia-se, como a obra possui a habilidade de se nivelar e de se alonga a uma outra para maior coletividade. Somente quando o homem tiver perdido para sempre o seu nome e a sua identidade pode se apropriar novamente do próprio nome “dilacerado“: o ‘objeto’ em seu sentido mais completo. É o aforismo nietzschiano segundo o qual somente depois da morte os poetas podem ser entendidos: porque não haverá mais qualquer poder da parte deles de pôr em discussão as interpretações de suas idéias. A desilusão audeniana ao curso da poesia – que se faz vaga esperança – deixa-se passar pelas duas figuras de animais, os lobos [verdadeiros seres viventes que "correm" na natureza perene] e os "cães europeus" [agora, os homens] que ladram (bark, III, 6) mostrando não serem capazes de cantar somente ["sing", III, 19] e tão pouco de falar. Na poesia inteira, só uma similitude une o reino animal ao homem, aquela dos corretores da bolsa - os brokers - que bramem (roaring, I, 25) como bestas no chão de Bourse 7 . Como a oração está voltada a “terra”, o chão não indica, deste modo, unicamente um lugar real: a inserção do chão (floor, I, 25) revoca às superfícies artificiais, planos edificados pelo homem, mas também dos planos 'influentes'. Rebatendo o conceito segundo o qual os homens [que por enquanto desejam ergue-se babelicamente] devem viver em todo momento a poucos palmos da terra e na terra, em uma superfície, onde à distância da sua face para o chão que os suporta é continuamente a mesma.
Qualquer construção do homem, qualquer propósito do homem pode transcender os limites mundanos. A colocação de espécie é uma ilusão do ser em comparação à vida, como o sucesso. Para isso, Auden justapõe imediatamente a nota conforme o qual "os pobres têm os sofrimentos aos quais estão bem acostumados 8 ”, fazendo seguir aquele homem na própria cela-célula [o homem biológico e o homem social] ‘convencido de sua liberdade’: “E cada homem em sua célula é quase convencido da sua liberdade 9 ” – onde ‘cada’ vale aquele isolamento da própria célula e na própria individualidade biológica, celular.
É nesta grande dimensão sobretudo no que lo permite sinalizar o senso do falecimento de um homem, não o restituindo à sua alma, não se introduzindo nem se identificando na sua pessoa, mas recorrendo a cruas imagens retiradas da vida real e diária. Um documentário que desenterra o que já é vivo, mas que passa involuntariamente fora da linguagem que se conserva [externa à poesia] – onde os executivos/jamais quereriam interferir (“... where executives/ Would never want to tamper...” – II / 6-7), ou, ainda mais dolorosamente e favorecendo a natureza, passa diariamente na oralidade de todos os dias e no trânsito dos cotidianos, nisso utiliza e lança a escrita impressa que não sabe isolar-se sobre um só verso [em uma única linha de jornal] e sobre uma só palavra, fazendo-a ecoar no vazio taciturno do espaço branco, na estagnação humana da pausa meditativa, no eco revocatório de uma palavra à outra que não há, àquela interseção da d-i-f-e-r-e-n-ç-a cuja palavra e o objeto sem se encontrar exigem esta volta natural e externa ao artifício, a atenção do homem.
Todavia a poesia [e a arte em geral] não deixa acontecer nada (poesia nada que fez passa, II, 5): não porque não tem nada a ver com as situações, mas porque é primeiramente uma “situação” despercebida (A modo de acontecimento, uma boca, II, 10). Variável nos seus conteúdos e intocável na sua forma.
O teu dom sobreviveu a tudo (your gift survived it all, II, 1), quer dizer: às instituições, à natureza biológica do indivíduo, ao homem talentoso, ao gênio, a Yeats. A arte se faz novamente boca, sobrevivendo, antes, a uma única boca: que passa sobre tudo e sobre todas as próprias orações as quais canta, ressona e atravessa as caixas cranianas de quem ainda está vivendo em sua dor. A poesia, não o homem. A boca de Yeats, a boca do dia e a boca da poesia tem destinos e movimentos diferentes. O dia morre e renasce a sua maneira e o homem morre [desaparece] eternamente. Inalterável em seu modelo de origem, a poesia transmuta nos conteúdos e no ritmo [podendo fazer-se cantiga], da palavra consumida semanticamente e foneticamente: ela pode fazer tudo isso em oposição ao que o poeta bardo havia lutado, a cada vírgula, a cada parágrafo e vogal. Deste modo, com frases rotas e passagens de palavras que completam o sentido dum verso para outro seguinte [enjambement], transfere a emoção do segundo movimento: um movimento que se assinala purgatorial pela contextualização de todas as imagens mundanas, pela ambientação campesina e irlandesa dos trechos, e pela contemporaneidade do verbo [no presente], em oposição ao pretérito do primeiro movimento, antes de tudo glacial e obscuro, no qual vêm indicar-nos, para alegoria, os acontecimentos mundanos presentes e as implicações “glaciais” para o futuro: estase que revoca, por metáfora, uma metástase regrada, essencial na sua firmeza.
Salvo das metafísicas, a terceira seção é paradoxal. Impressa à oração sediciosa para a “terra” [ou à “Terra”] e com pronta chamada léxica e métrica para “O Tigre”, de William Blake, ao qual Como o arado segue as palavras, assim Deus compensa as orações 10 , o movimento conclusivo é feito de instrumento congenial para sublinhar quanto há de espiritual no homem além das metafísicas. A Oração revolta a terra e o caminhar métrico de um poeta esotérico que não dera crédito à oração, também. Nota-se, de passagem, que [em “O Tigre”] Blake põe questões de interesse cosmogónico, não pede para “ter” alguma resposta da divindade, mas apenas para conhecê-las. Como o ato poético blakeiano está voltado ao conhecimento, colocando uma interrogação onde na realidade é sugestão aos seus leitores que ainda não a fizeram; assim sendo, o conhecimento de Auden não o autoriza a abrir-se às metafísicas. A oração de Auden volta-se a duas entidades: a terra e a Yeats restabelecido. O único Yeats que tenha um sentido, a sua obra poética, a sua “voz” (III, 15). No apego a verdade do dizer poético, Auden introduz o nome “William Butler Yeats” somente agora que não são mais temas: o indivíduo e a sua morte física. E nessa hora em que o fragmento de osso separou-se irremediavelmente e que nenhuma vontade do autor pode colocar em discussão a obra cuja pertença é da coletividade e o seu nome readquire um entendimento. Primeiramente, tinha-o posto no título, de acordo com a praxe funerária ocidental.
Agora “o hospede honrado” é dominado em seu valor sócio-cultural e não já biológico. Agora aquele corpo (vessel, III, 3) está vazio de suas poesias, reduzido a corpo-objeto, 'pele', 'esbulho' [neutro até o pronome its]. Agora que é inanimado, desfalecido e, agora, que biologicamente não mais se pertence. Além do pseudônimo e do nome de arte, naquele ato de redefinição nominal de si, o homem biológico tem um nome que não o pertence em sentido real, um nome que é bastante social, um nome que serve a outros.
Antes da expressão do próprio desejo, e antes ainda que a linguagem se concretize nesta língua nativa, o recém-nascido recebe, no mundo Cristão, o batismo. É um nome da coletividade que é imposto ao indivíduo para distingui-lo dos outros membros. É um nome do qual se poderia em parte procurar um componente divino, remetendo-o a uma raiz genealógica ancestral cuja relembrança aos nossos longos passos, os condutores linfáticos, venalizam a corrida ao avesso da sua origem metafisicamente significativa, para a última intervenção sobre a origem de deus. Portanto, o nome como toda forma nominal e na ótica audeniana é arbitrário. No Cristianismo, se poderia supor que depois da criação de Adão [o deus ex-máquina] esteja novamente a origem. Contudo, não se há sinais para isso. Diante da ausência de linhas, Auden separa o nome do indivíduo e o reassume por uma analogia à sociedade [na qual vive], naquilo que tem ou tinha a fazer com o ser.
Por todo o poema, ele se absteve em denominar Yeats, ou William Yeats, ou William Butler Yeats. Concluso nas variadas formas pronominais [he, him, his, himself] Yeats não podia ser um homem-comum contemporâneo, um ‘everyman’ excelente que perdera toda característica excepcional em quanto homem biológico. Na terceira seção o nome é impróprio ou enganoso. Por conveniência, devemo-lo chamar de Yeats, pois “Y- E- A- T- S” significa agora e antes de tudo o símbolo da poesia produzida por um homem biológico, uma poesia que se nota:
“[…] sobrevive / No vale de sua criação onde os executivos / Jamais quereriam interferir […]”
O nome de Yeats, na angustiada oração final, é introduzido a morte por inteira e sobre o sentido do gelo. O gelo é tudo nos olhos dos intelectuais, encobertos pelo frio das lágrimas e do encarceramento. É, na opinião de Auden, um infortúnio intelectual (III, 9) que fitares de toda face humana, enquanto os mares da piedade jazem / cerrados e gelados a cada olho .. (III, 11-12).
No real destino do nascimento e da morte, não só o homem está fechado em sua própria condição biológica. Porém, aquilo que se soma à prisão dele é sua mente. E, também, o encontro das mentes no uníssono duma mentira, naquele lie que se reaproxima ao each, na “célula” que confirma a prisão expressa por cerrado: “E em cada homem em sua célula é quase convencido de sua liberdade” [I,27], “E os mares da piedade jazem / cerrado e congelado a cada olho”. A Cela-célula e o jazer-mentir: cell e lie - liberdade, mentira, testemunho e encarceramento. A mente individual e a mente coletiva que tudo aplaina em uma tirania da desumanidade do homem ou na humanidade de uma “digestão 11 ”.
Em oposição ao “cantar” do poeta Yeats, ou de sua poesia, há [como mencionado com antecedência] o “ladrar” dos homens (Todos os cães da Europa ladram, III, 6), daqueles homens que não sabem pronunciar palavras mas uivar ou, ainda, “rugir”. É o léxico consistente do encarceramento [primeiramente de si mesmo] que cruza a composição. Não só a cela-célula, mas também, a célula de quem está presa em ódio, as nações existentes e ao indivíduo [each man], a sociedade e ao cidadão, ao intelectual cerrado e congelado como um cadáver [locked and frozen] e os corretores atarefadíssimos da bolsa que - rugindo como bestas - ainda sugestionam a imagem logística que homem segregaria a estes seres da natureza socializada: a gaiola 12 .
Para finalização, Auden reserva aos incisivos trocaicos três influentes e regulares quartetos tetrâmetros finais. A primeira razão de toda a composição, a razão que supera a ocasião. Yeats é feito a este ponto, e sem nenhuma dúvida, símbolo; é, nesta primeira sublevação a Yeats, onde Auden chama-se poeta [em segunda pessoa contra a terceira seção verso I, 11: “(T)he death of the poet was kept from his poems”], nenhum homem biológico, nenhum homem biográfico. Retomando a imagem dos dois primeiros quartetos da terceira seção, a “nightmare of the dark” [o pesadelo da escuridão, da obscuridade como no “dia” da morte de Yeats estava “frio e escuro”, “dark cold day”]. Auden pede agora ao poeta, isto é à poesia para ir ‘ao interior da noite’ [“To the bottom of the night”, III, 14] e persuadir-nos a regojizar [“persuade us to rejoice”, III, 16], indicando-nos como “natural”, isto é, que não coage, a voz do poeta para a libertar a nação e cada homem “preso no seu ódio”. A Terra e a poesia estão unidas, a biologia e a arte vivem realmente além das imanências e constrangimentos humanos:
“Com o cultivo de um verso / De uma maldição faz um vinhedo” |
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Mas a poesia pode apenas, em última instancia ou no melhor dos casos, persuadir [“persuade”]; pode sanar [healing], fazer regojizar [e não seria pouco, se não fosse pela ameaça nazista as portas das nações européias] e ensinar ao homem livre como louvar. É evidente que o tiro baixo da poesia em comparação à enunciação de verdade avança as pretensões éticas - e é peculiar a um poeta como Auden, sintético e pontual ao associar os movimentos mais significantes das coisas mundiais. E ressuscita espontâneo ao sinalar que é a poesia [não obstante a Auden] que se volta à poesia [a de Yeats e a poesia em geral], onde Auden mesmo nela [a poesia] como autor, destaca-se como objeto e estabelece uma relação irônica na qual o assunto só é recordado na pluralidade do tipo: «us» [nós]. Assim a poesia de Auden se coloca como ‘meio’ de uma libertação - superando o nós-homens do newspaper sobrevivente ao esfarelamento da escrita impressa da crônica diária - à palavra da escritura de quem usa e lança. Em si a poesia pode vir 14 ao homem livre, apesar daqueles pares humanos como uma condição em si a qual aprisiona, segrega, prende. Deste modo, Auden abre o caminho a toda questão relativa ao imediatismo da escrita poética: de um lado pensa-se nela como fotográfica, descritiva que capta a exterioridade, filtra-a com as sensações e propõe-na ao senso comum, a uma mentalidade e uma cultura para que saibamos recebê-la em primeira instância [como aquela simplicidade expressiva que eles, os trintenas, tinham posto na sua linguagem e a atenção às atrações sociais e política do tempo deles]; de outro lado, como refinadíssima implicação, uma linguagem que tem outra contextualização histórica dos temas tratados, a biografia, as vicissitudes e contingências humanas.
Como toda grande composição poética, Em memória de W. B. Yeats 15 coloca a nudez às mesmas estruturas de ‘chutes’ dos quais está composto o senso da expressão lingüística, as motivações (aqui tácitas) do comportamento. A conclusão extrema que se reconhece à cerca do destino biológico de William Butler Yeats dar lugar a uma afirmação sobre o destino do comportamento poético, a respeito de um comportamento poético que já se pode pôr nas sua seqüência de valores de estilo e dos registros. Rebocando realmente a sensação da ‘oração’ e confiando a um estilo metricamente regulado, Auden desloca-se ao máximo da sua linguagem, se esconde numa forma que porém sabe bem dizer o que quer sugerir. A conclusão social a que Auden procrastina é aquela de uma liberação de cada morto na morte, e uma libertação da poesia do constrangimento vocal do autor, do poder que tem o autor em vida de intervir sobre seu trabalho. A “terra” e o “poeta” a quem Auden volta-se, são os símbolos da natureza e arte, ambos livres para sempre [a natureza] e talvez ainda por sempre [a obra de arte], não obstante da obra de arte e aos seus dados - assim como se dá na lousa tumular e nos arquivos administrativos da morte de um homem – qual se fosse do mesmo gênero e compartilhasse o mesmo destino.
Poemas recordantes a morte
Em Memória de W. B. Yeats
(In Memória de W. B. Yeats)
I
W. H. Auden fotografado em seu apartamento, em New York, 1967.
Ele desapareceu entre os mortos no inverno:
Os riachos estavam gélidos, os aeroportos quase desertos,
E neves desfiguravam as estátuas públicas;
O mercúrio penetrou na boca do dia agonizante.
Que instrumentos têm harmonizado
O dia de sua morte foi um dia frio escuro.
Longe de sua enfermidade
Os lobos correram pelos bosques perenes,
O rio campesino era desregular pelos modernos molhes;
Lamentações linguais
A morte do poeta se manteve em seus poemas.
Mas para ele foi a última tarde como si mesmo,
Uma tarde de enfermeiras e rumores;
As províncias de seu corpo se revoltaram,
As quadras de sua mente estavam vazias,
O silêncio invadiu os subúrbios,
A corrente de seu sentimento falhou; tornou-se aos seus admiradores.
Agora é difundido dentre cem cidades
E entregue inteiramente aos afetos pouco familiares,
A achar sua felicidade num outro tipo de madeira
E sido castigado sob um código estrangeiro da consciência.
As palavras de um homem morto
Modifica-se nos intestinos do viver.
Mas na importância e clamor do dia seguinte
Quando os corretores estão bramindo no chão como bestas do Bourse 16 ,
E os pobres têm os sofrimentos aos quais estão bem acostumados,
E cada homem em sua célula é quase convencido da sua liberdade,
Poucos mil pensará neste dia
Como se pensa num dia em que se realizou algo ligeiramente singular.
Que instrumentos têm harmonizado
O dia de sua morte foi um dia frio escuro.
II
Tu eras tolo como nós; seu dom sobreviveu a tudo:
A paróquia de mulheres ricas, a decadência física,
Tu. Irlanda colérica feriu-o em poesia.
Todavia a Irlanda, agora, tem sua loucura e seu tempo,
Para poesia nada que fez passa: sobrevive
No vale de sua criação onde os executivos
Jamais quereriam interferir, fluências ao sul
Dos ranchos isolados e dos atarefados pesares,
Povos crus por quem se acredita e morre; ele sobrevive,
A um modo de acontecimento, uma boca.
III
Terra, receba um convidado honrado:
William Yeats deitou para descansar.
Permita o vaso irlandês jazer
Vazio de suas poesias.
No pesadelo da escuridão
Todos os cães da Europa ladram,
E as nações viventes esperam,
Cada uma isolada pelo seu ódio;
Desgraça intelectual
Fitares de toda face humana,
E os mares de piedade jazem
Cerrados e gelados a cada olho.
Siga, poeta, siga reto
Ao interior da noite,
Com sua voz natural
Que ainda nos persuade a regozijar;
Com um cultivo de um verso
De uma maldição faz um vinhedo,
Cante o fracasso humano
Num assalto de dor;
Nos desertos do coração
Permita a saída da curativa fonte,
Na prisão de seus dias
Ensine ao homem livre como louvar.
Canção de Ninar
(Lullaby)
Deita tua cabeça adormecida, amor,
Tanto humana sobre meu braço incrédulo;
O tempo e a febre destroem
A beleza distinta das
Crianças pensativas, e o sepulcro
Prova que a criança é efêmera:
Mas, em meus braços, até o romper do dia
Permita que a estimulante criatura jaza,
Letal, culpada, mas que a mim
É completamente bela.
A Alma e o corpo não têm fronteiras:
Aos amantes que deitam sobre
O seu indulgente e encantado declive
Num desfalecimento usual,
Grave a visão enviada por Vênus
De uma sobrenatural piedade,
Amor universal e esperança;
Enquanto, um abstrato critério desperta
Entre as geleiras e as rochas
O êxtase carnal do eremita.
Certeza e fidelidade
Sobre o golpe da meia-noite passam
Como as vibrações de um sino
E os elegantes e louco alçam
Seu pernóstico e tedioso apelo:
A cada pequena moeda devida,
Tudo o que as valentes cartas predizem,
Há de ser pago, porém desta noite
Nem um cicio, nem uma reflexão,
Nem um beijo nem um olhar hão de perder.
Formosa, a meia-noite, a visão que morre:
Deixe os ventos do amanhecer soprarem
Suaves ao redor da tua cabeça sonhadora
Exibam um dia de saudações
Que o olhar e o coração emocionado abençoem,
Achem bastante o nosso mundo mortal;
Onde os meios-dias de aridez te encontrem alimentado
Pelos poderes involuntários,
As noites de insulto lhe deixem passar
Assistido por todo amor humano.
O Cidadão Desconhecido
(The Unknown Citizen)
(Para JS/07/M378 - Este monumento de mármore é erguido pelo Estado)
Ele era alguém, conforme a agência de estatística
Contra quem não havia nenhuma queixa oficial,
E todos relatórios de comportamento concordam
Que ele era um santo, como hoje, se diria,
Pois em tudo o que fez serviu ao Bem Comum.
Exceto na Guerra, até ser aposentado,
Ele trabalhou numa fábrica sem jamais ser exonerado,
Mas satisfez seus padrões, Fudge Motors Inc.
Porém, não era fura-greve nem suas opiniões bizarras,
Relata o seu sindicato que ele paga suas dívidas,
(Conforme seus relatórios, a informação é segura)
E nosso departamento de psicologia nos certifica
Que era popular entre os colegas e gostava de um trago.
A impressa está convicta: ele comprava o seu jornal
E suas reações à propaganda eram normalíssimas.
As apólices em seu nome demonstram total cobertura
E seu cartão de saúde indica: fora hospitalizado, mas se encontrou a cura.
Ambos, os Exames dos Produtores e a Qualidade de Vida anunciam:
Ele decerto reconhecia as vantagens do crediário
E tinha tudo necessário ao Homem Moderno,
Um toca-discos, um radio, um automóvel e uma frigideira.
Os nossos pesquisadores de Opinião Pública alegram-se
Por ter ele as opiniões mais adequadas ao momento;
Quando havia paz, ele era de paz; na guerra, ele ia.
Era casado e somou cinco à população,
Diz nosso Eugenista: número exato aos pais de sua geração.
E nossos mestres informam que nunca interferiu com a sua educação
Se era livre? Era feliz? A indagação é absurda:
Se algo estivesse errado, certamente teríamos sabido.
Em Memória de Sigmund Freud
(In Memory of Sigmund Freud)
Quanto tantos teremos que nos lamentar,
quanto o pesar tem feito em público, e exposto
a crítica de uma época inteira
a debilidade de nossa consciência e angústia.
De quem falaremos? Para que morram diariamente
entre nós, aqueles que estavam nos fazendo algum bem,
soube que nunca fora o bastante, mas
a esperança de melhorar era vivendo um pouco.
Assim era este doutor: ainda aos oitenta desejou
pensar em nossa vida por quem insubordinadamente –
tantos jovens talentos
com ameaças ou lisonja requer obediência,
Porém seu desejo fora negado: ele cerrou seus olhos
nesta pintura derradeira, comum a todos nós,
de problemas como familiares reunidos,
confusos e ciosos sobre nossa morte.
Por sobre ele é cultivado o mesmo fim
Aqueles que estudara, a fauna noturna,
e as sombras que ainda protelam entrar
no iluminado círculo de seu reconhecimento
voltado a alhures com as suas desilusões quando ele
foi levado dos seus interesses em vida
para voltar a terra, em Londres,
um importante judeu foi quem morreu no exílio.
Somente Hate estava feliz, e espera ampliar
sua prática agora, e sua esquálida clientela
quem pensa que eles podem ser curados matando
e vestindo o jardim com cinzas.
Todavia eles ainda estão vivos, porém o mundo ele mudou
simplesmente observando por detrás sem falsos pesares;
tudo o que fez, foi recordar
como velho és honesto como a criança.
Ele não era talentoso em nada: apenas narrou
o infeliz Presente para recitar o Passado
como uma lição prematura de poesia
já no caminho hesitaria tardiamente
há tempos começara as acusações,
e repentinamente soube por quem fora julgado,
que vida rica tivera e como um tolo,
fora em vida perdoado e mais humilhado,
capaz de aproximar o Futuro como um amigo
sem vestimentas de desculpas, sem
uma máscara fixa de retidão ou um
desagradável gesto sobre família.
Nenhuma maravilha nas antigas culturas de presunção
Em sua arte inoportuna que previu
o outono de príncipes, a síncope de
seus lucrativos padrões malogrados:
por que, se prosperasse, a Vulgarização da Vida
tornar-se-ia impossível, e o monólito
do Estado quebraria e frustraria
a co-operação de víndices.
Naturalmente que chamaram por Deus, mas ele chegou a seu modo
desceu entre os perdidos como Dante, desceu
à fétida cova onde o ofendido
conduz a repulsiva vida do rejeitado,
E mostrou-nos que o mal, não é como pensamos,
quais as ações devem ser punidas, contudo a nossa falta de fé,
nossa disposição ímproba e negativa,
à concupiscência opressiva.
Se alguns traços de pose autocrática,
ele receou ao cuidado paternal, ainda
segurou a sua elucidação e características,
era um colorido protecionista
a alguém que viveu entre inimigos durante tempos:
se errasse com freqüência e, às vezes, absurdamente,
a nós, não era mais uma personalidade
mas, por ora, um climatério de opiniões
a sombra de quem conduzimos nossas diversas vidas:
como tempo, ele pode dificultar ou ajudar,
o orgulhoso pode ainda se orgulhar, porém o descobre
um pouco mais severo, o déspota tenta
organizar com ele mas não o preocupa muito:
calmamente cerca todos nossos costumes de melhora
e se amplia, amanha o fadigado inclusive na
remota miséria do ducado
sentiu a mudança em seus ossos e cria ânimo
ainda a criança, infeliz, em seu pequeno Estado,
um lar qualquer onde a liberdade é excluída,
uma colméia cujo mel é temor e aflição,
ora sensações mais tranqüilas e de algum modo assegurou a evasão,
enquanto, eles deitam na relva de nossa negligência,
tantos objetos ao longo olvidados
revelando um brilho desalentador
que nos restitui e se faz precioso novamente;
jogos que pensáramos: devemos derrubar quando crescermos,
alarido pouco, nós não ousamos rir de
rostos feitos quando ninguém estava olhando.
Mas ele deseja-nos mais que isto. Ser livre
é sempre estar só. Ele uniria
as metades desiguais fraturadas
por nosso próprio bom-senso de justiça,
restabeleceria a maior o talento e quereria
ao menor dotes, contudo usando-os apenas
em áridos certames, devolveria ao
filho a riqueza da fonte sentimental:
porém ele nos teria lembrado de tudo
ser entusiástico durante a noite,
não só aos sentir maravilhosos
que apenas tem a oferecer, mas também
porque necessita de nosso amor. Com tristes e copiosos olhos
suas criaturas deleitáveis buscam e rogam
a nós no silêncio para que os sigam:
são desterrados que almejam o futuro
que vive em nosso poder, eles regozijariam também
se permitisse servir escólios como ele,
inclusive levar nosso grito de 'Judas',
quão ele fez e tudo agüenta a quem se serve dele.
Uma voz racional é muda. Sobre seu sepulcro
a casa de Impulso lamenta o amado afetuosamente:
triste está Eros, construtor de cidades,
e lamentando a anárquica Afrodite.
poemas traduzidos por Arndréa Santos
Copyright © by Andréa Santos.
(matéria gentilmente enviada pela autora para Pop Box)
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