O CORVO
I Em certa noite, na hora que apavora, Pensando em minha vida, tão sozinho, Eu escutei do meu quarto, nessa hora, Bater a porta bem devagarinho. E da saudade que não tem melhora, Sempre ferido pelo agudo espinho, Eu quis saber depressa, sem demora, Quem batia afinal, tão de mansinho. Mesmo com sono e cheio de fadiga, Absorto eu lia uma doutrina antiga, Talvez irmã dos meus pungentes ais; E nesse instante ouço de novo, aflito, Bater à porta e, outra vez acredito, Ter sido o vento, só e... nada mais. II Era Dezembro... E eu bem me recordava Desse que tinha encantos imortais. De Leonora, que tudo deslumbrava E que não mais a verei... nunca mais. Noite glacial... Eu triste terminava De reler essas laudas magistrais, E cheio de saudade, inda escutava Lá fora o vento, em uivos infernais. Nessa desolação que tudo arrasa, Da vetusta lareira eu assistia Agonizar a derradeira brasa; E ao passar dessas horas hibernais Eu por Leonora ao céu inda pedia, Só por Ela pedia... e nada mais. III Havia em tudo, tristemente havia Um mistério sem par naquele instante; O rumor das cortinas, o ondulante Bailar do vento em minha alcova fria. — Maior rumor e bem maior descante Dentro da alma em tumultos eu sentia: A saudade sem fim, alucinante, A vida sem amor, sem alegria.— Mas, dominar o medo procurando, Quis saber de onde vinha àquela hora, Esse estranho rumor de maus sinais; E então, pela janela o céu olhando, Que entre beijos de luz se descolora, Somente vi a noite e... nada mais! IV Sentindo então minha alma já mais forte E repousando de uma dor intensa, Muito pouco pensava em minha sorte E amava muito mais a minha crença. Mas, cheio desse amor sem recompensa, Eu disse no milagre de um transporte: — Quem há de ser, que pela noite imensa, Jamais tem medo de enfrentar a morte? — E na saudade que não mais conforta, Ouço bater de novo à minha porta, Sem saber se Quem bate, vem de paz; Ouço... E para de tudo Ter certeza, A porta vou abrir, mas com surpresa, Só vi a escuridão e... nada mais. V Leonora! Alongo o meu olhar cansado Pela noite macabra que amedronta; E teu nome de bênçãos perfumado, Em minha boca súplice desponta. Por teu amor, eterno enamorado, Suporto de viver a grande afronta; É teu nome o rosário imaculado Que desfio infeliz, conta por conta! Chamo-te! E a noite é calma e o céu é mudo, Só o silêncio é que domina tudo, Numa dança de sombras espectrais! Leonora! Chamo-te na mágoa enorme E não escuto uma voz, tudo dorme Em santa paz, só isto e... nada mais. VI Ouço bem claro uma estranha pancada Pelo meio da noite que se escoa; Ouço-a e tenho a vida amargurada Pela saudade dessa que foi boa. Ouço aflito, que a mesma é secundada Mais forte, como um pássaro que voa; E sinto que uma coisa desusada A noite imensa, lúgubre povoa. E pensando dar calma ao coração, Eu quis ter uma firme explicação Para esses fatos sobrenaturais; Abri a porta e nada vi de sério, Vi que a simples razão desse mistério Era o vento da noite e... nada mais. VII E assim, por essa grande noite aziaga, Envolvida em silêncios sepulcrais, Esse sussurro é a dolorida chaga Que resta dos meus tristes ideais. Ouço-o passar como passa uma praga, De minha velha porta nos umbrais, E sinto que minha alma chora e indaga Por Essa que jamais verei... jamais. Mas, do meu quarto, impressionado vejo A janela que se abre e, uma ave aflita Que o invade sem licença, em horas tais; E interrogo na dor em que rastejo: — De onde virá tão tarde, esta visita? — E só o caos ouvi e... nada mais. VIII Ao pé do fogo, em cismas, eu pedia Infeliz e a contar hora por hora, Que a tristeza que tanto me agonia, Da manhã, entre as névoas, fosse embora. Mas de repente, pela noite fria, Que sempre a tudo e a todos apavora, No travo da saudade que sentia, Um rumor de asas escutei lá fora. E vi na extrema dor em que me absorvo, Entrar pela janela um grande Corvo, Com a pose dos nobres senhoriais; E ao vê-lo andar sobre o busto de Palas Pergunto: De que Reino tu te abalas? E o hóspede só me olhou e... nada mais. IX Olho assombrado o negro mensageiro Que deve conhecer minha desdita; Interrogo-lhe o nome verdadeiro E seu olhar o meu olhar não fita. Na angústia em que meu sonho periclita Sofro e pergunto-lhe outra vez: Primeiro, Se é uma ""Lady", ou um "Lord" cavalheiro, E depois a razão dessa visita. Mas Ele, erguendo a exótica plumagem, Nada me diz, enfim, sobre a mensagem De uma quadra de amor e madrigais. E então, meu coração pulsa com medo, Pois ouvi-lo falar quase em segredo Esta palavra cruel: nunca mais. X Atônito fiquei por um momento, Ao compreender que o Corvo compreendia A pergunta que em ânsias lhe fazia, E a razão do meu grande sofrimento. Por mais que intente, é falho o meu intento Em aceitar até por fantasia, Que uma ave saiba do meu pensamento E me responda só com ironia. Se sois humano, ó triste solitário! Dizei-me em vosso atroz vocabulário, A verdade de tudo que grasnais! Mas Ele, altivo e sacudindo as plumas, Olha da noite as regeladas brumas E responde impassível: nunca mais. XI Fico em silêncio, quase que pasmado, Ao ver que o Corvo zomba, com frieza, De minha vida cheia de tristeza E de meu lindo sonho malogrado. Talvez por mau, ou então por esperteza, Coisa alguma me diz, de olhar gelado; Nada me diz e tenho a vida presa Ao advérbio por Ele decorado. Peço-lhe que me fale de Leonora, Dessa que amei e que Rainha fora, De encantos e sorrisos divinais; E Ele, só tem nessa noite plutônica, Um frio olhar para a minha alma agônica E a resposta tremenda: nunca mais. XII Afinal, como houvesse já perdido Afeições dedicadas e ridentes Esperanças, ao Corvo, em bom sentido, Perguntei por amigos e parentes. Pela saudade quase consumido, Supliquei-lhe entre lágrimas ardentes Que algo dissesse, mesmo dolorido, De minhas crenças já de há muito ausentes. Mas vil Demônio, Pássaro, Profeta Ou Náufrago de grande tempestade, Não fez cessar a minha dor inquieta; Só me disse com gestos desleais, Com soberba altivez e atroz maldade, Esta frase impiedosa: nunca mais! XIII Logo depois, pela resposta ouvida E que me ofereceu ligeiro susto, Quis decifrá-la por ser descabida E para ser também humano e justo. Disse comigo: A frase bem medida, Sempre grasnada sem mexer o busto, Talvez fosse aprendida, a muito custo, De um Mestre castigado pela vida. Assim eu fico sem saber, portanto, Se essa resposta é o derradeiro canto De funda mágoa e cóleras brutais; Olho do Corvo o triste olhar sem brilho E torno a ouvir este estranho estribilho Por Ele repetido: nunca mais. XIX Teimoso eu quis enfim, mais uma vez Saber do Corvo o lúgubre segredo; E procedi com muita sensatez, Para mostrar-lhe que não tinha medo. Enfrentei-o com máxima altivez Não sei se muito tarde ou muito cedo; Mas Ele, alheio ao mal que já me fez, É mudo e altivo assim como um rochedo. Muito triste, à minha alma dar procuro, Desse grasnar o sentido mais puro, Que sangra como todos os punhais; Mas de minha poltrona, a noite inteira, Ouvi somente, ao lado da lareira, O anátema implacável: nunca mais. XV Assim, depois de muito meditar Sem o menor receio ou conjetura, Sobre a poltrona me deixei ficar, Para esquecer a minha desventura. Era de fato grande o meu pesar E bem maior a dor que me tortura; Por saber que jamais hei-de encontrar Essa que foi tão bela e foi tão pura. Quis do Corvo o segredo desvendar, Mas, nada pude ver no seu olhar, Que era cheio de brilhos funerais; E perdi, afinal, as esperanças De beijar outra vez aquelas tranças De que me lembro e... não se beijam mais. XVI Chego a sentir e quase me convenço De que meu quarto fora perfumado Por um turíbulo esparzindo incenso, Talvez por Serafins, só baloiçando. Chego a senti-lo e, num clamor suspenso, A Deus imploro, já desesperado, Repouso dar, com seu amor imenso, Para meu coração amargurado. Torno a implorar ao grande Deus sensível, Para saber d'Aquela, se possível, Que era cheia de encantos imortais; Para saber somente de Leonora, Que aqui na terra quase santa fora E o Corvo só me disse: nunca mais. XVII Nunca mais... Como dói esta amargura, Por entre a dúvida e a interrogação! Como dói esta dor que sempre dura, Cheia de nobre significação! Nunca mais... É a tremenda desventura Envolvida em silêncio e solidão! É o desespero de quem só murmura O nome de Leonora, em oração! Nunca mais... Como dói esta palavra Ouvir, que desilude a vida inteira, Quando a saudade no meu peito lavra! Dizei porque a alegria me roubais Ave feia e maldita, ave agoureira, E esta resposta escutei: nunca mais. XVIII Meio acordado, nessa noite espessa, Deserta de alegria e de luar, Procurei, por covarde que pareça, Fugir do Corvo ao tenebroso olhar. Pedi que por Leonora sempre cresça Dentro de mim, a dor de recordar; Vendo-a linda pousar sua cabeça Na cadeira em que fico a repousar. E de momento, quase que dormindo, Cheguei a vê-la para o céu subindo, Amparada por mãos angelicais... E então pedi a Deus por piedade, Que matasse de vez minha saudade, Mas ouvi desolado: nunca mais. XIX Já tendo a grande mágoa pressentido Por tanta negativa e dissabores, Ao Corvo perguntei, desiludido, Sobre Leonora, a irmã gêmea das flores. Chamei-o de Profeta e, não vencido, Nada me disse a provocar temores; Chamei-o de Demônio e, empedernido, Não quis fazer cessar as minhas dores. Para esquecer, já quase sem idéia, Perguntei-lhe se havia na Judéia Um bálsamo de efeitos magistrais; E Ele, implacável, sem um gesto rudo, Alheio à vida, ao sofrimento e a tudo, Deixou-me ouvir outra vez: nunca mais. XX Ave ou Demônio, pelo céu bendito Que adoramos e o coração nos cobre, Dize-me se verei, não mais aflito, Leonora, essa donzela santa e pobre. Pedindo que minha alma não soçobre Por esse amor, porque soluço e grito, Dize-me se a verei lá no infinito, Onde há aleluias para o afeto nobre. Dize-me, Corvo aziago e feiticeiro, Porque te fazes sempre mensageiro De mau agouro e dúvidas fatais?... E Ele impassível, lúgubre, irritante A me olhar, a me olhar a cada instante, Respondeu friamente: nunca mais. XXI Sejam tuas palavras o pungente Sinal de nossa atroz separação; Volta Corvo infeliz e penitente Aos horrores de tua solidão. Volta à noite plutônica e inclemente De onde vieste, talvez por maldição; Mas antes, da mentira, suavemente O bico arranca do meu coração. Foge para bem longe do meu quarto E deixa minha casa, que estou farto De tuas negativas infernais... Mas Ele, sempre e sempre empoleirado Sobre o busto de Palas, revoltado Assim murmurou: nunca, nunca mais. XXII Meus tristes rogos afinal, jamais Vitória alcançarão nessa agonia De não saber se a frase "nunca mais" Era de amor, ou simples ironia. E nessas horas de incertezas tais O Corvo é mudo e a noite é muda e fria... E eu sinto muito como já sentia, A morte de meus puros ideais... Sim... Ave enigma... E a lâmpada velada, Deixa ver sua sombra projetada Por sobre o solo, em linhas bem reais... Sim... Leonora... Na minha dor sem calma, Choro porque não poderá minha alma Se juntar a essa sombra; nunca mais.
excerto da tradução de Benedito Lopes - 1956
Comentários, colaborações e dúvidas: envie e-mail para Elson Fróes.