O CORVO



Foi numa noite à hora sinistra... Exausto e enfermo, eu  tinha a vista  
Por sobre hieráticos volumes de antiquíssimo teor.
E a cochilar, pouco desperto, ouvi soar um toque incerto, 
Tal qual se houvesse alguém, bem perto do meu quarto. “Esse rumor
É de uma visita”, murmurei, “que bate à porta! Esse rumor
	É um toque, um toque, sim senhor.”

Nunca esqueci... Era um Dezembro glacial! Tão bem relembro
A luz do fogo produzindo sobre o chão sombras de horror... 
Por ver o fim da noite escura eu lia — Lia, e na leitura
Eu procurava (vã procura!) não pensar em Eleonor —
A  bela virgem  fulgurante que é nos céus Eleonor,
	Mas entre nós, não mais, Senhor!

E o triste e tênue movimento das cortinas do aposento
Entrou-me n'alma e pôs-me trêmulo... Em fantástico terror,
Eu, por dar calma ao peito aflito de emoção total, repito:
“É só um amigo que visita o meu solar acolhedor-
É algum tardio amigo em busca de um lugar acolhedor;
	Apenas isso, sim senhor.

E enfim, sem mais hesitação, fortalecido, eu disse então:
“Senhor, senhora? Perdoai-me pela espera, por favor.
Mas é que estava em sono tal quando batestes neste umbral
Que eu mal podia ouvir e mal, de fato, ouvi, em meu torpor,
Tão leve toque!” — E abrindo a porta por completo, em meu torpor,
	Contemplo o escuro, sim senhor... 

Por longo tempo o horror me leva a perscrutar a espessa treva,
Sonhando sonhos que ninguém, ninguém sonhou de igual teor.
Silêncio fúnebre e sem par! E é neste instante singular
Que num sussurro ouço soar um nome vago: “Eleonor!” —
Sou quem o diz, e um eco longo o repercute: Eleonor!” —
	Depois, silêncio, sim senhor...	 

Com toda minha alma a arder em fogo eu retornei ao quarto, e logo
Ouvi de novo o mesmo toque, desta vez com mais vigor.
“Não há mais dúvida!”, então digo, “Este barulho é no postigo!
Deixe-me ver se lá consigo achar a causa de um rumor
Tão violento! Tenha calma, coração, que este rumor
	Foi só do vento, sim senhor.”

Quando a janela abri depois, com muito estrépito a transpôs
De antiga estirpe um Corvo altivo, pelos ares a se impor!
Sem que do susto eu me recobre, o vejo, em pose muito nobre, 
Ao ignorar-me, pousar sobre minha porta, a seu dispor —
Bem sobre um busto alvo de Palas, junto à porta, a seu dispor,
	Como se fosse grão-senhor.

Eis que um sorriso alegra então minha tristíssima expressão,
Ao ver do Corvo a grave e austera compostura. “Embora a expor
Crista tão curta em tua imagem”, digo, “Sim, tu tens coragem...
Responde, pois, ó ser das margens em que a noite é só furor,
Qual nobre nome é o teu no império de plutônico furor?”
	E o Corvo disse: “Não senhor.”

Maravilhou-me que uma espécie tão vulgar me respondesse
Embora  fosse com palavras sem sentido nem valor.
Por mim, não sei de outra pessoa que haja visto, em noite à toa,
Um ser que vem de fora e voa até seu quarto, portador
De igual alcunha! Um  bicho posto sobre a porta, portador
	De nome tal qual “Não senhor.”

Porém o Corvo ali repousa em solidão... Diversa cousa 
Ele não diz, além daquela, a refletir-lhe o interior!
Ei-lo a silenciar comigo... Ei-lo ferrenho... —  até que digo:
“Outrora tive tanto amigo que se foi! Seja qual for
Seu rumo incerto, ele há de ir-se, seja lá para onde for!”
	E o Corvo disse: “Não senhor.”

Que uma resposta assim  tão justa quebre a paz noturna, assusta
E surpreende! Julgo então: “Ele repete isso de cor!
Ouviu  da boca de algum mestre cujo destino terrestre
Foi, talvez, do mais agreste, e fez do mestre, enfim, cantor
De um negativo e melancólico bordão! Era o cantor
	Do réquiem: “Não, ai! Não, senhor!”  

Mas já que em minha face triste o mesmo riso ainda persiste,
Vou-me sentar defronte à porta e busto e Corvo... E é com temor
Que na poltrona, imoto, quedo, eu passo a meditar no enredo
Daquela história, enquanto o medo aumenta em mim... Fico a supor
O que um grotesco, grave e grosso Corvo antigo quis supor
	Com este grasnado“Não senhor.”

É nesta questão que eu me absorvo, sem falar, contudo, ao Corvo,
Pois dele o olhar me põe agora ao coração estranho ardor.
De fato, fico em devaneio, enquanto, lento, cabeceio
Contra o sofá macio em meio à luz de pálido fulgor —
Neste sofá suave em que ela, à luz de pálido fulgor
	Não mais se deita, ai!, não, Senhor!

Nisto o ar tornou-se, achei, mais  denso, qual se houvesse  em torno incenso
Que um invisível serafim trouxesse ao quarto ao meu redor,
E eu disse: “Demo! Por piedade Deus mandou-te um anjo que há de
Trazer-te alívio à atroz saudade da perdida Eleonor!
Recebe — bebe o bom nepente, e esquecerás Eleonor!”
	E o Corvo disse: “Não  senhor.”

 “Profeta!”, grito, “Ó coisa preta! — Sim, profeta, ave ou capeta!
Se é tempestade que te traz ou Satanás, o Tentador,
Sozinho, sim, porém com tanto e audaz propósito, a um recanto
De horror interno e eterno pranto — Fala, imploro, por favor —
Existe um bálsamo em Galaad? — Fala — fala, por favor!”
	E o Corvo disse: “Não senhor!”

“Profeta!”, grito, “Ó coisa preta! — Sim, profeta, ave ou capeta!”
Pelo amplo céu — Pelo bom Deus que ambos amamos com fervor,
Dize a este espírito refém da dor se ele há de no além
Rever, enfim,  aquela a quem chamam nos céus Eleonor —
Irei revê-la? Vai, revela! Irei rever Eleonor?”
	E o Corvo disse: “Não senhor!”

“Seja isto o fim, maldito verme, ave do mal!”, grito ao erguer-me,
“Retorna à tempestade em torno à noite em trevas e pavor!
Nenhuma pluma aqui me reste a recordar-me o que disseste! 
Regressa aos ermos de onde vieste! Do meu peito imerso em dor
Retira a garra que me fere e vai-te embora, imensa dor!”
	E o Corvo disse: “Não senhor!”

E o Corvo nunca mais se ausenta. Ainda senta, ainda senta
No busto pálido de Palas, junto a porta, atordoador.
E seu olhar tem semelhança ao de um demônio que descansa
E do abajur a luz o lança em sombra ao chão de negra cor.
Sobre esta sombra está  minha alma, e presa ao chão de negra cor,
		Ela há de erguer-se — Não, Senhor!




tradução de Eduardo Andrade Rodrigues - 2000





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