Uma infelicidade machadiana  

 


  Cláudio Weber Abramo *

 

Só das razões do coração não é possível extrair nenhuma regra de
conduta mais ou menos válida. O erro é sempre um erro
.

Augusto Meyer, A forma secreta.
Rio de Janeiro: Grifo, 1971, p. 111.

 

índice - links:
NOTA SOBRE PRECEDÊNCIA
THE RAVEN (EDGAR ALLAN POE)
LE CORBEAU (CHARLES BAUDELAIRE)
O CORVO (MACHADO DE ASSIS)

 

 

NOTA SOBRE PRECEDÊNCIA

Cerca de um mês após o aparecimento deste artigo no DO Leitura de setembro de 1999, a crítica literária e professora aposentada de teoria literária da Universidade de São Paulo Walnice Nogueira Galvão assinou no caderno "Mais!" da Folha de S. Paulo (edição de 10 de outubro de 1999) peça comemorativa do sesquicentenário da morte de Edgar Allan Poe. Afirma ela que, "entre nós, tornou-se canônica a tradução [de 'O Corvo'] via Baudelaire feita por Machado de Assis". Não se faz menção ao presente artigo.
Nogueira Galvão era, à época, integrante do Conselho Editorial do DO Leitura.

 

A
partir do momento de sua primeira publicação, na edição de 29 janeiro de 1845 do jornal The New York Evening Mirror (onde apareceu sem a assinatura do autor e pelo qual este recebeu a quantia de dez dólares), o poema "The Raven", de Edgar Allan Poe, foi alvo de agudo interesse por parte do público. Foi publicado na imprensa onze vezes durante a vida de Poe e em um número incontável de ocasiões de lá para cá. O sucesso do poema fez com que Poe passasse a ser solicitado a falar publicamente para integrantes de sociedades literárias e clubes de senhoras. Como suporte para tais conferências, preparou um ensaio que também se tornaria famosíssimo e leitura compulsória para tantos quantos se ocupem da poesia: "The Philosophy of Composition" ("A filosofia da composição").
Em "A filosofia da composição" Edgar Allan Poe descreve o processo de confecção de "The Raven" de tal forma a induzir no leitor a noção de que teria sido projetado e realizado como um teorema matemático. Ocupa-se quase exclusivamente de questões relacionadas à métrica, às sonoridades, às rimas e assim por diante. Dedica poucas palavras às imagens usadas no poema, embora se estenda em considerações quanto ao clima. No que concerne à narrativa nele expressa, praticamente silencia.
Essa concentração nos aspectos formais da composição poética contribuiu de forma não pouco relevante para uma certa tendência acadêmica que prefere apresentar e analisar a poesia como simples ajuntamento de sons, deixando para um longínquo segundo plano questões relacionadas ao significado. "A filosofia da composição" comparece infalivelmente entre as fontes mencionadas como embasamento "teórico" por adeptos dessa concepção.
Tal atitude tem conseqüências imediatas sobre o modo como se encara a tradução de poesia. Mesmo comentaristas que não poderiam ser acusados de radicalismo esteticista examinam traduções sob o ponto de vista exclusivamente fônico e métrico. É o caso, por exemplo, do filólogo Matoso Câmara Jr. Num artigo dedicado à defesa dos dotes poéticos de Machado frente aos de Fernando Pessoa e Gondin da Fonseca ("Machado de Assis e 'O corvo' de Edgar Poe", Ensaios machadianos, Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1977), ele transcreve diversos dos trechos da tradução de Machado em que recorrem equívocos facilmente identificáveis por confronto com o original, mas sobre os quais não profere palavra. A frase conclusiva do artigo permite depreender por quê. Referindo-se a "The Raven", afirma tratar-se "de uma obra que vale quase totalmente como poesia pura, sem o esteio do pensamento filosófico nítido ou do arroubo sensual"...
Outros, como os que no Brasil seguem as doutrinas da "transcriatividade" (traduzir é "transcriar", segundo critérios íntimos do tradutor), chegam a postular implicitamente a desimportância do significado. É evidente que o que eles têm em mente é a poesia, e não a prosa (pois ficaria difícil defender uma tradução de Romeu e Julieta que resultasse em Os sertões) , mas como seria impossível reivindicar "transcriatividade" para a primeira sem também fazê-lo para a segunda, vêm-se obrigados a defender a noção em toda a sua radicalidade. Uma das conseqüências mais graves de tal operação epistemológica é que, em face da circunstância de o ato de criação ser arbitrário e suas motivações e referenciais permanecerem encerrados no âmbito exclusivo do criador, aquilo que um observador externo possa dizer sobre o que ele faz é desconsiderado como irrelevante. Nesse passo, desaparece o próprio conceito de erro. Como identificar a incidência de equívocos (ou mesmo declarar qualquer coisa de significativo) sobre algo que nos é apresentado como "transcriação"?
Em seu "O texto-espelho (Poe, engenheiro de avessos)" (em A operação do texto, Perspectiva, 1976), artigo que poderia ter sido escrito sob o modelo de Câmara Jr., com a única diferença de que o autor se situa em lado diverso da trincheira estética, Haroldo de Campos percorre o mesmo percurso comparativo, desta vez entre Machado de Assis e Fernando Pessoa. Depois de anunciar que "a tradução, aqui, será vista [...] como uma instância privilegiada de atividade crítica", Campos passa a fazer considerações de natureza métrica, rítmica e assim por diante, eximindo-se, porém, de assinalações mais substantivas sobre significados – embora, presumivelmente, estas também façam parte da "atividade crítica". Muitas palavras elogiosas a Pessoa (e suas distorções) e nenhuma quanto aos empréstimos de Machado.
Num livro publicado no início de 1998, em que se reproduzem algumas das traduções do poema ("O Corvo" e suas traduções, Lacerda), o organizador Ivo Barroso inclui um ensaio de abertura em que também silencia sobre os aspectos semânticos e se concentra nos métricos.
Como a versão de poesia é considerada o non plus ultra da atividade de tradução, esse gênero de desconsideração acaba por estimular a irresponsabilidade de tradutores de qualquer tipo de texto. Boa parte deles assume implicitamente (e, por vezes, abertamente) que seu compromisso fundamental é com eles próprios, ficando a fidelidade quanto ao original num apagado segundo plano. Num país em que a responsabilidade, se não é exercida invidualmente, não é exercida por ninguém, isso só pode levar à disseminação de barbaridades – como se vê todos os dias.


"The Raven" está entre os mais traduzidos poemas curtos da história da literatura. Encontram-se traduções dele em todas as línguas, das neolatinas às eslavas, passando pelas nórdicas, insuladas (como o basco) e artificiais (o esperanto). De todas, o francês bate o recorde, com dezenas de versões. O português conta com pelo menos treze traduções (uma delas em cordel) e provavelmente outras, escondidas em páginas de livros e autores esquecidos. "The Raven" constituiu o Waterloo de todos esses tradutores. Os gravíssimos problemas semânticos em que incorrem, não raro produzindo nonsense, são objeto de um livro mais amplo sobre a tradução e suas armadilhas, que se encontra à busca de editora. Muito se poderia escrever sobre a tradução de Fernando Pessoa, de longe a mais conhecida – mas que, das versões completas, é provavelmente a que mais mutila e distorce o original. Apesar disso, devido à reputação de Pessoa, costuma ser tomada na Europa e no Brasil como standard.
Ao leitor brasileiro não se reservou destino diferente, e pela pena de ninguém menos do que Machado de Assis (e também, entre outros, Emílio de Menezes). Para examinar a sua tradução, é necessário voltar um pouco no tempo e recorrer ao francês Charles Baudelaire, o principal divulgador da obra de Poe na França e, daí, para o resto do mundo. Em 1853, Baudelaire preparou uma tradução de "The Raven" que contém uma enorme quantidade de erros. Seu principal valor reside no fato de ter sido composta em prosa, pois Baudelaire compreendeu claramente que a força do poema reside em sua narrativa. (Em 1875, Stéphane Mallarmé, fundador do movimento simbolista – para o qual a poética de Poe, e "The Raven" em especial, contribuíram de forma significativa –, consertaria os erros de Baudelaire em sua versão muito superior, também em prosa.)
Os erros da tradução de Baudelaire foram responsáveis pela multiplicação de equívocos em uma grande quantidade de versões do poema, em todas as línguas neolatinas. É onde Machado de Assis se enquadra. Pois é possível afirmar-se, sem sombra de dúvida, que a tradução do escritor brasileiro é muito mais da versão francesa de Baudelaire do que do poema original. Isso não se depreende de similaridades vagas, mas da ocorrência dos mesmos erros, das mesmas adições, das mesmas omissões e das mesmas palavras nos mesmíssimos lugares das traduções de um e de outro. O melhor modo de constatá-lo é pela inspeção direta.


THE RAVEN (EDGAR ALLAN POE)

Complete Poems . Collected, edited and arranged with memoir, textual notes and bibliography by J.H.
Whitty. Boston e Nova York: Houghton Mifflin and Company, 1911.




Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore —
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door.
" 'Tis some visitor, " I muttered, "tapping at my chamber door —
	Only this and nothing more."

 
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow — vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow — sorrow for the lost Lenore —
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore —
	Nameless here for evermore.

 
And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me — filled me with fantastic terrors never felt before:
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating.
" 'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door —
Some late visitor entreating entrance at my chamber door —
	That it is and nothing more."

 
Presently my soul grew stronger: hesitating then no longer,
"Sir, " said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore:
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you" — here I opened wide the door —
	Darkness there and nothing more.

 
Deep into the darkness peering, long I stood there wondering fearing.
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before:
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore?"
This I whispered, and an echo murmured back the word "Lenore!" —
	Merely this and nothing more.

 
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
"Surely," said I, "surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore —
Let my heart be still a moment and this mystery explore —
	'T is the wind an nothing more!"

 
Open here i flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door —
Perched upon a bust of Pallas just a bove my chamber door —
	Perched, and sat, and nothing more.

 
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore —
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
	Quoth the Raven, "Nevermore."

 
Much I marveled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning — little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human beeing
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door —
Bird or beast upon the sculplured bust above his chamber door,
	With such name as "Nevermore."

 
But the Raven sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpoor.
Nothing further then he uttered, not a feather then he fluttered —
Till I scarcely more then muttered, "Other friends have flown before —
On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before."
	Then the bird said, "Nevermore."

 
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utteres is it only stock and store
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore —
Till the dirges of his Hope the melancholy burden bore
	Of 'Never — nevermore.'"

 
But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door,
Then upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore —
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
	Meant in croaking, "Nevermore."

 
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl, whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er
But whose velvet-violet lining with lamp-light gloating o'er
	She shall press, ah, nevermore!

 
Then methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God has lent thee — by these angels he hath sent 
thee Respite — respite the nephente from thy memories of Lenore!
Quaff, oh, quaff this kind nephente and forget this lost Lenore!"
	Quoth the Raven, "Nevermore."

 
"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird of devil!
Whether Tempter sent, or whatever tempest tossed thee ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted —
On this home by Horror haunted — tell me truly, I implore —
Is there — is there balm in Gilead? — tell me — tell me, I implore!"
	Quoth the Raven, "Nevermore."

 
"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird of devil!
By that Heaven that bends above us — by that God we both adore —
Tell his soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore —
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
	Quoth the Raven, "Nevermore."

 
"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting —
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! — quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!
	Quoth the Raven, "Nevermore."

 
And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor,
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
	Shall be lifted — nevermore!



LE CORBEAU (CHARLES BAUDELAIRE)

"Le Corbeau", Paris: L. Pichon, 1930.



Une fois, sur le minuit lugubre, pendant que je méditais, faible et fatigué, sur maint précieux et curieux volume d'une doctrine oubliée, pendant que je donnais de la tête, presque assoupi, soudain il se fit un tapotement, comme de quelqu'un frappant doucement, frappant à la porte de ma chambre. "C'est quelque visiteur, — murmurai-je, — qui frappe à la porte de ma chambre; ce n'est que cela, et rien de plus."

Ah! distinctement je me souviens que c'était dans le glacial décembre, et chaque tison brodait à son tour le plancher du reflet de son agonie. Ardemment je désirais le matin; en vain m'étais-je efforcé de tirer de mes livres un sursi à ma tristesse, ma tristesse pour ma Lénore perdue, pour la précieuse et rayonnante fille que les anges nomment Lénore, — et qu'ici on ne nommera jamais plus.

Et le soyeux, triste et vague brissement des rideaux pourprés me pénétrait, me remplissait de terreurs fantastiques, inconnues pour moi jusqu'à ce jour; si bien qu'enfin, pour apaiser le battement de mon coeur, je me dressai, répétant: "C'est quelque visiteur qui sollicite l'entrée à la porte de ma chambre, quelque visiteur attardé sollicitant l'entrée à la porte de ma chambre; — c'est cela même, et rien de plus."

Mon âme en ce moment se sentit plus forte. N'hésitant donc pas plus longtemps: "Monsieur, — dis-je, — ou madame, en vérité, j'implore votre pardon; mais le fait est que je sommeillais, et vous êtes venu frapper si doucement, si faiblement vous êtes venu taper à la porte de ma chambre, qu'à peine étais-je certain de vous avoir entendu." Et alors j'ouvris la porte toute grande; — les ténèbres, et rien de plus!

Scrutant profondément ces ténèbres, je me tins longtemps plein d'étonnements, de crainte, de doute, révant des rêves qu'aucun mortel n'a jamais osé réver; mais le silence ne fut pas troublé, et l'immobilité ne donna aucun signe, et le seul mot proféré fut un nom chuchoté: "Léonore!" — C'était moi qui le chuchotais, et un écho à son tour murmura ce mot: "Lénore!" Purement cela, et rien de plus.

Rentrant dans ma chambre, et sentant en moi toute mon âme incendiée, j'entendis bientôt un coup un peu plus fort que le premier. "Sûrement, — dis-je, — sûrement il y a quelque chose aux jalousies de ma fenêtre; voyons donc ce que c'est, et explorons ce mystère. Laissons mon coeur se calmer un instant, et explorons ce mystère; c'est le vent, et rien de plus."

Je poussais alors le volet, et, avec un tumultueux battement d'ailes, entra un majestueux corbeau digne des anciens jours. Il ne fit pas la moindre révérence, il ne s'arrêta pas, il n'hésita pas une minute; mais, avec la mine d'un lord ou d'une lady, il se percha audessus de la porte de ma chambre; il se percha sur un buste de Pallas juste au-dessus de la porte de ma chambre; — il se percha, s'installa, et rien de plus.

Alors, cet oiseau d'ébène, par la gravité de son maintien et la sévérité de sa physionomie, induisant ma triste imagination à sourire: "Bien que la tête, — lui dis-je, — soit sans huppe et sans cimier, tu n'es certes pas un poltron, lugubre et ancien corbeau, voyageur parti des rivages de la nuit. Dis-moi quel est ton nom seigneurial aux rivages de la nuit plutonienne!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

Je fus émerveillé que ce disgracieux volatile entendît si facilement la parole, bien que sa réponse n'eût pas un bien grand sens et ne me fût pas d'un grand secours; car nous devons convenir que jamais il fut donné à un homme vivant de voir un oiseau au-dessus de la porte de sa chambre, un oiseau ou une bête sur un buste sculpté au-dessus de la porte de sa chambre, se nommant d'un nom tel que — Jamais plus!

Mais le corbeau, perché solitairement sur le buste placide, ne proféra que ce mot unique, comme si dans ce mot unique il répandait toute son âme. Il ne prononça rien de plus; il ne remua pas une plume, — jusqu'à ce que je me prisse à murmurer faiblement: "D'autres amis se sont déjà envolés loin de moi; vers le matin, lui aussi, il me quittera comme mes anciennes espérances déjà envolées." L'oiseau dit alors: "Jamais plus!"

Tressaillant au bruit de cette réponse jetée avec tant d'à-propos: "Sans doute, — dis-je, — ce qu'il prononce est tout son bagage de savoir, qu'il a pris chez quelque maître infortuné que le Malheur impitoyable a poursuivi ardement, sans répit, jusqu'à ce que ses chansons n'eussent plus qu'un seul refrain, jusqu'á ce que le De profundis de son Espérance eût pris ce mélancolique refrain: "Jamais, jamais plus!"

Mais, le corbeau induisant encore toute ma triste âme à sourire, je roulai tout de suite un siège à coussins en face de l'oiseau et du buste et de la porte; alors, m'enfonçant dans le velours, je m'appliquai à enchaîner les idées aux idées, cherchant ce que cet augural oiseau des anciens jours, ce que ce triste, disgracieux, sinistre, maigre et augural oiseau des anciens jours voulait faire entendre en croassant son — Jamais plus!

Je me tenais ainsi, rêvant, conjecturant, mais n'adressant plus une syllabe à l'oiseau, dont les yeux ardents me brûlaient maintenant jusqu'au fond du coeur; je cherchai à deviner cela, et plus encore, ma tête reposant à l'aise sur le velours du coussin que caressait la lumière de la lampe, ce velours violet caressé par la lumière de la lampe que sa tête, à Elle, ne pressera plus, — ah! jamais plus!

Alors, il me sembla que l'air s'épaississait, parfumé par un encensoir invisible que balançaient des séraphins dont les pas frôlaient le tapis de la chambre. "Infortuné! — m'écriai-je, — ton Dieu t'a donné par ses anges, il t'a envoyé du répit, du répit et du népenthès dans tes ressouvenirs de Lénore perdue!" Bois, oh! Bois ce bon népenthès, et oublie cette Lénore perdue!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Prophète! — dis-je, — être de malheur! oiseau ou démon, mais toujours prophète! que tu sois un envoyé du Tentateur, ou que la tempête t'ait simplement échoué, naufragé, mais encore intrépide, sur cette terre déserte, ensocelée, dans ce logis par l'Horreur hanté, — dismoi sincèrement, je t'en supplie, existe-t-il, existe-t-il un baume de Judée? Dis, dis, je t'en supplie!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Prophète! — dis-je, — être de malheur! oiseau ou démon! Toujours prophète! par ce ciel tendu sur nos têtes, par ce Dieu que tous deux nous adorons, dis à cette âme chargée de douleur si, dans le Paradis lointain, elle pourra embrasser une fille sainte que les anges nomment Lénore, embrasser une précieuse et rayonnante fille que les anges nomment Léonore." Le corbeau dit: "Jamais plus!"

"Que cette parole soit le signal de notre séparation, oiseau ou démon! — hurlai-je en me redressant. — Rentre dans la tempête, retourne au rivage de la nuit plutonienne; ne laisse pas ici une seule plume noire comme souvenir du mensonge que ton âme a proféré; laisse ma solitude inviolée; quitte ce buste au-dessus de ma porte; arrache ton bec de mon coeur, et précipite ton spectre loin de ma porte!" Le corbeau dit: "Jamais plus!"

Et le corbeau, immuable, est toujours installé, toujours installé sur le buste pâle de Pallas, juste au-dessus de la porte de ma chambre; et ses yeux ont toute la semblance des yeux d'un démon qui rêve; et la lumière de la lampe, en ruisselant sur lui, projette son ombre sur le plancher; et mon âme, hors du cercle de cette ombre qui gît flottant sur le plancher, ne pourra plus s'élever, — jamais plus!




O CORVO (MACHADO DE ASSIS)

Obra completa, Aguilar, 1971.

Nos comentários, as dívidas de Machado (M.) para com Baudelaire (B.)
são exibidas juntamente com outras observações sobre a tradução do brasileiro.

Use o mouse sobre o texto para ver os comentários.


Em certo dia, à hora, à hora 
Da meia-noite que apavora, 
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, 
Ao pé de muita lauda antiga, 
De uma velha doutrina, agora morta, 
Ia pensando quando ouvi à porta 
Do meu quarto um soar devagarinho, 
E disse essas palavras tais: 
"É alguém que bate à porta de mansinho; 
Há de ser isso e nada mais." 

Ah! Bem me lembro! bem me lembro! 
Era no glacial dezembro; 
Cada brasa do lar sobre o chão refletia 
A sua última agonia 
Eu, ansioso pelo sol, buscava 
Sacar daqueles livros que estudava 
Repouso (em vão!) à dor esmagadora 
Destas saudades imortais 
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora. 
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando 
Das cortinas ia acordando 
Dentre em meu coração um rumor não sabido, 
Nunca por ele padecido. 
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito, 
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito, 
(Disse) é visita amiga e retardada 
Que bate a estas horas tais. 
É visita que pede à minha porta entrada: 
Há de ser isso e nada mais".

Minh'alma então sentiu-se forte; 
Não mais vacilo, e desta sorte 
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora, 
Me desculpais tanta demora. 
Mas como eu, precisando de descanso, 
Já cochilava, e tão de manso e manso 
Batestes, não fui logo, prestemente, 
Certificar-me que aí estais". 
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente, 
Somente a noite, e nada mais. 

Com longo olhar escruto a sombra, 
Que me amedronta, que me assombra, 
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado, 
Mas o silêncio amplo e calado, 
Calado fica; a quietação quieta; 
Só tu, palavra única e dileta, 
Lenora, tu, como um suspiro escasso, 
Da minha triste boca sais; 
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; 
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada, 
Logo depois outra pancada 
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela: 
"Seguramente, há na janela 
Alguma cousa que sussura. Abramos, 
Eia, fora o temor, eia, vejamos 
A explicação do caso misterioso 
Dessas duas pancadas tais. 
Devolvamos a paz ao coração medroso, 
Obra do vento e nada mais." 

Abro a janela, e de repente, 
Vejo tumultuosamente 
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias. 
Não despendeu em cortesias 
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto 
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto, 
Movendo no ar as suas negras alas, 
Acima voa dos portais, 
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas, 
Trepado fica, e nada mais. 

Diante da ave feia e escura, 
Naquela rígida postura, 
Com o gesto severo, — o triste pensamento 
Sorriu-me ali por um momento, 
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas 
Vens, embora a cabeça nua tragas, 
Sem topete, não és ave medrosa, 
Dize os teus nomes senhoriais; 
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?" 
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia 
A pergunta que lhe eu fazia, 
Fico atônito, embora a resposta que dera 
Dificilmente lha entendera. 
Na verdade, jamais homem há visto 
Cousa na terra semelhante a isto: 
Uma ave negra, friamente posta 
Num busto, acima dos portais, 
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta 
Que este é seu nome: "Nunca mais". 
 
No entanto, o corvo solitário 
Não teve outro vocabulário, 
Como se esta palavra escassa que ali disse 
Toda a sua alma resumisse. 
Nenhuma outra proferiu, nenhuma, 
Não chegou a mexer uma só pluma, 
Até que eu murmurei: "Perdi outrora 
Tantos amigos tão leais! 
Perderei também este em regressando a aurora". 
E o corvo disse: "Nunca mais!" 

Estremeço. A resposta ouvida 
É tão exata! É tão cabida! 
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência 
Que ele trouxe da convivência 
De algum mestre infeliz e acabrunhado 
Que o implacável destino há castigado 
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga. 
Que dos seus cantos usuais 
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga, 
Esse estribilho: "Nunca mais".
 
Segunda vez, nesse momento, 
Sorriu-me o triste pensamento; 
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo; 
E mergulhando no veludo 
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera 
Achar procuro a lúgubre quimera, 
A alma, o sentido, o pávido segredo 
Daquelas sílabas fatais, 
Entender o que quis dizer a ave do medo 
Grasnando a frase: "Nunca mais". 

Assim posto, devaneando, 
Meditando, conjecturando, 
Não lhe falava mais; mas, se não lhe falava, 
Sentia o olhar que me abrasava. 
Conjecturando fui, tranqüilo a gosto, 
Com a cabeça no macio encosto 
Onde os raios da lâmpada caíam, 
Onde as tranças angelicais 
De outra cabeça outrora ali se desparziam, 
E agora não se esparzem mais. 

Supus então que o ar, mais denso, 
Todo se enchia de um incenso, 
Obra de serafins que, pelo chão roçando 
Do quarto, estavam meneando 
Um ligeiro turíbulo invisível; 
E eu exclamei então: "Um Deus sensível 
Manda repouso à dor que te devora 
Destas saudades imortais. 
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora". 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

"Profeta, ou o que quer que sejas! 
Ave ou demônio que negrejas! 
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno 
Onde reside o mal eterno, 
Ou simplesmente náufrago escapado 
Venhas do temporal que te há lançado 
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo 
Tem os teus lares triunfais, 
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?" 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

"Profeta, ou o que quer que sejas! 
Ave ou demônio que negrejas! 
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! 
Por esse céu que além se estende, 
Pelo Deus que ambos adoramos, fala, 
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la 
No éden celeste a virgem que ela chora 
Nestes retiros sepulcrais, 
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!" 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

"Ave ou demônio que negrejas! 
Profeta, ou o que quer que sejas! 
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa! 
Regressa ao temporal, regressa 
À tua noite, deixa-me comigo, 
Vai-te, não fique no meu casto abrigo 
Pluma que lembre essa mentira tua. 
Tira-me ao peito essas fatais 
Garras que abrindo vão a minha dor já crua." 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

E o corvo aí fica; ei-lo trepado 
No branco mármore lavrado 
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. 
Parece, ao ver-lhe o duro cenho, 
Um demônio sonhando. A luz caída 
Do lampião sobre a ave aborrecida 
No chão espraia a triste sombra; e, fora 
Daquelas linhas funerais 
Que flutuam no chão, a minha alma que chora 
Não sai mais, nunca, nunca mais! 

 

* Publicado no DO Leitura (setembro de 1999), suplemento literário do Diário Oficial do Estado de São Paulo.

 

Copyright © by Cláudio Weber Abramo.

Ý

Comentários, colaborações e dúvidas: envie e-mail para Elson Fróes.