leminski:
o bandido que sabia latim
*

Ademir Assunção

Numa época em que "chique é ser careta", como diz o poeta - (Santa Virgem dos Três Bigodes!!!) - publicitário Mauro Salles, a poesia de Paulo Leminski continua chovendo no piquenique entediante daqueles que insistem em fechar as portas da percepção e abrir as janelas da decepção.
Dádiva dos grandes: 10 anos após sua morte, a obra leminskiana figura lado a lado a de rebeldes como Rimbaud, Whitman ou Oswald de Andrade.
Nesta entrevista * semi-inédita (parte dela foi publicada no Estadão, dois anos antes da sua partida rumo "ao sonho de outras esferas"), o kamiquase curitibano mostra o grau de intensidade com que viveu o mistério da arte poética.



O encontro foi numa tarde de outubro de 1986, no apartamento da cantora e compositora Neusa Pinheiro, na rua Apinagés, bairro Sumarezinho. Leminski estava em São Paulo para dar um curso promovido pela editora Brasiliense: "Poesia em Cinco Noites". Não lembro se chovia ou fazia sol. Lembro bem que ele tinha pressa (mas não aquela pressa competitiva, tão em moda nesses tempos de yuppismo globalizante). Talvez porque já percebesse que sobrava pouco tempo de vida. Muito também porque era dono de uma personalidade intensa, ligada o tempo todo, marcada por um sentido de urgência.
Esta personalidade eletrificada, de um poeta em tempo integral, transparece em toda a sua obra. Em Leminski, o foco de interesses não está centrado num cânone restrito. Sua multiplicidade atrai referências de diversas épocas e culturas: da poesia clássica chinesa ao blues afro-americano, da patafísica de Jarry ao vigor samurai de Yukio Mishima, dos clássicos gregos ao rock'n'roll, do haicai japonês ao tropicalismo, de Cruz e Souza a Leon Trotsky, de James Joyce a John Fante, de Samuel Beckett à Cartola, de poemas do Egito Antigo ao videotexto, do supraerudito ao supremo popular, do universo cósmico de uma biblioteca aos movimentos mundanos.
Não se confunda essa capacidade imantadora com um simples ecletismo oportunista. Não. Ciente de que arte e cultura são matéria viva, para vivos, Leminski soube construir pontes, estabelecer links entre ricos tecidos culturais. Onde houvesse inconformismo, densidade, criatividade extremada, lá estava ele. Dono de vastíssimo repertório, está decibéis acima do neochique intelectualismo (reaça pra caralho) que graça e glosa pelas plagas brasileiras.
Embora muitos tentem minimizar a sua importância, ora situando-o como um simples apêndice concretista ou tropicalista, ora como um mero frasista de espírito polêmico (o que disseram de Oswald de Andrade?), ou ainda apontando dedos para um suposto looping decadente no final de sua breve vida, o tempo certamente vai recolocá-lo em seu devido lugar: como um dos poetas brasileiros fundamentais dessa metade de século. Se tal afirmação ainda parece exagero, que respondam: quais outros nomes poderiam substituí-lo?
Mas de afirmações de "maior poeta", "um dos mais importantes", e coisas do tipo, o inferno está cheio. O importante é saber: por quê Leminski tem tal estatura?

Anartista na Idade Mídia


Um pouco de contexto não faz mal a ninguém, ainda mais em se tratando de alguém que fez questão de alterar o texto para bagunçar o contexto: "Sou daqueles que se colocam dentro de uma perspectiva histórica" — disse em uma de suas primeiras longas entrevistas, à Almir Feijó (revista Quem,1978).
Leminski nasceu em 1944, um ano antes da explosão da bomba atômica em Hiroshima. O cogumelo atômico estilhaçou definitivamente a realidade. E imprimiu um sentido de urgência à geração que veio ao mundo sob a sua enorme sombra ameaçadora. De repente, havia a impressão de que nada poderia ser deixado para o dia seguinte, simplesmente porque não havia mais certeza de que haveria o dia seguinte.
O holocausto atômico não se resumiu à Hiroshima. Através das imagens (da fotografia, do cinema), explodiu no mundo inteiro. Com a tecnologia avançada dos meios de comunicação de massa, o planeta foi se tornando cada vez menor e uma nova era se instaurou, de maneira um tanto dramática. Bemvindos à Idade Mídia.
Tudo começou a acontecer muito rapidamente, num século que já se inaugurara deslizando sobre os trilhos dos bondes elétricos e em poucas décadas fazia as notícias voarem pelos ares via satélite. Em Understanding Media, Marshall McLuhan escreve que "a velocidade elétrica mistura as culturas da pré-história com os detritos dos mercadólogos industriais, o iletrado com o semi-letrado e o pós-letrado".
E onde está Leminski no meio dessa chuva de estilhaços? Em uma espécie de manifesto, abertura para uma antologia de poetas jovens à época (revista Pólo Inventiva, 1978), organizada com Alice Ruiz, ele se autositua, junto de seus pares de antologia, na "geração 68": uma geração marcada pela rebeldia contra cânones autoritários, por uma ampliação das experiências poéticas (e humanas), eletrificação da sensibilidade, inconformismo, utopias, mas também, já naqueles anos (conforme antevê com lentes precisas) sofrendo as conseqüências de um "acirramento da competição na luta pela sobrevivência, a níveis darwinianos". é bem esclarecedor o modo como o poeta focaliza alguns aspectos do contexto histórico e cultural em que aparece a "geração 68": "contestação, rebelião estudantil na França, "primavera em praga",/ os "powers" (black, red, gay, women's lib), a pílula, o aborto,/ o martírio do vietnã/ radicalização em sentido socialista, na américa latina,/ psicodelismo, zen, sociedade alternativa/ rock/ homem na lua, mcluhan, aldeia global, o meio é a mensagem/ contracultura".
Essa consciência do seu "ponto de partida" está expressa em uma entrevista à Régis Bonvicino (jornal GAM, 1976), na qual evidencia seu ímpeto de interferir em grandes contextos culturais, através de uma atuação crítica-criativa no jornalismo, nas letras de música, nos poemas em videotexto: "Não dá mais tempo para ser ingênuo. Puro. Inocente. Perante a investida multinacional da tecnocracia, tem que responder com uma plena consciência dos meios, códigos e linguagens".
Que esse breve esboço do contexto em que surge não sirva para reduzir Leminski a um poeta típico dos anos 60 ou 70. Ledo engano ou deslavada sacanagem de yuppies que pretendem aprisionar qualquer tentativa de rebeldia à pulsões demodée, "coisa do passado". Leminski era um erudito. Conhecia poesia profundamente. Mas não se enquadrava no modelo de intelectual bem-comportado. Era um radical. "Um bandido que sabia latim".
Tudo somado, o sentido de urgência e a necessidade de rebelião marcaram profundamente sua poesia. é da primeira safra o poema

	nunca quis ser
	freguês distinto
	pedindo isso e aquilo
	vinho tinto
	obrigado
	hasta la vista

	queria entrar
	com os dois pés
	no peito dos porteiros
	dizendo pro espelho
	— cala a boca
	e pro relógio
	— abaixo os ponteiros
		

O fraseado rápido, telegráfico, musical, chega junto, surpreendente como o golpe de espada de um samurai experiente. O mesmo tom está impresso em outra peça da mesma fase, na qual demonstra sua malandragem no trato com a "função poética":


	pariso
	novayorquizo
	moscoviteio
	sem sair do bar

	só não levanto e vou embora
	porque tem países
	que eu nem chego a madagascar

		

Num lance "quase chinês", o poeta transforma substantivos em verbos ("pariso", "novayorquizo", "moscoviteio") dando um autêntico giro pelo planeta sem sair do próprio terreno da linguagem — ao contrário: contraindo-a ao máximo. Em três versos assimila conquistas vitais dos estudos modernos de linguagem. Mas ainda, dentro desse poema, e dentro da própria linguagem, insere uma de suas marcas registradas: o humor, o nonsense.
Se Oswald de Andrade foi um dos primeiros a incorporar em sua poética a rapidez dos primeiros anos do século, e os poetas concretos a perceber a simultaneidade dos novos tempos, Leminski já faz parte de uma geração que teve a sua sensibilidade "reprogramada pelos modernos meios de comunicação de massa", como teorizou McLuhan, dando um passo além ao clássico ensaio de Walter Benjamim, "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica". Talvez seja o primeiro poeta brasileiro, junto com Torquato Neto, com plena consciência de que o mundo estava irremediavelmente interligado via satélite. Nisso, não há uma adesão a-crítica, mas uma percepção de que "os tempos já eram outros".

A Lógica virada do avesso


A par das rebeliões comportamentais, da negação da persona do intelectual clássico, Leminski sabia da necessidade de uma outra rebelião: a rebelião da linguagem. Com maestria, jogou toda a sua energia poética contra o racionalismo linear aristotélico/cartesiano. Judoca zenbudista, desconfiava das palavras e remetia seus leitores à experiência concreta: no seu caso, a experiência com o próprio texto: em vez de refletir a realidade (como um bom escritor naturalista acreditaria), transformava a escrita numa realidade em si. Com isso, seus poemas, conscientemente elaborados, vão se transformando em quase koans. As frases rápidas, carregadas de musicalidade e sentidos se encarregam de dar um nó no pensamento lógico/cartesiano e o poema vai se tornando uma experiência que compreende cada vez mais uma totalidade corporal:


		Quem nunca viu
	que a flor, a faca e a fera
		tanto fez como tanto faz,
	e a forte flor que a faca faz
		na fraca carne,
	um pouco menos, um pouco mais,
		quem nunca viu
	a ternura que vai
		no fio da lâmina samurai
	esse, nunca vai ser capaz.
		

A estratégia já estava sendo semeada desde Catatau, o primeiro livro. Não por acaso o personagem central é Descartes, assombrado pela paisagem tropical do Brasil, atacado pelo zumbido intermitente dos mosquitos e cercado por jibóias, antas e preguiças. Com seu pensamento lógico, o filósofo francês não consegue decifrar a paisagem do Novo Mundo, e espera alguém que lhe traga as explicações, como um personagem beckettiano "esperando Godot". No texto "Transmatéria Contrasenso", espécie de prefácio do livro Distraídos Venceremos (trocadilho zen com o bordão de esquerda "Unidos Venceremos"), Leminski explicita, mais uma vez, sua flecha lançada em direção a um alvo "longamente almejado: a abolição (não da realidade, evidentemente) da referência, através da rarefação". Como epígrafe ao livro, re-utiliza de maneira sintomática um trecho do próprio Catatau:

"Que flecha é aquela no calcanhar daquilo? Pela pena, é persa, pela precisão do tiro, um mestre. Ora, os mestres persas são sempre velhos. E mestre, persa e velho só pode ser Artaxerxes ou um irmão, ou um amigo, ou discípulo, ou então simplesmente alguém que passava e atirou por despautério num momento gaudério de distração".

Distraídos Venceremos foi malhado por parte da crítica. Muitos não perceberam o passo adiante na estratégia do poeta.

A utopia se fechando


O passo adiante significou também um adensamento de sua poesia e uma visível mudança de tom: o bom humor da fase inicial dá lugar ao ceticismo. Leminski já pressentia a morte se avizinhando. Os próprios títulos dos dois últimos livros de poesia que deixou organizados (publicados pós-morte) já indicam isso: La Vie en Close e O Ex-estranho. Antes, havia traduzido Sol e Aço, de Yukio Mishima, um tratado de morte, o suicídio ritual do último dos samurais, e Malone Morre, de Samuel Beckett.
Mas paralelo à constante autobiográfica, é possível ler na fase final da sua produção poética, uma profunda negação da caretice yuppie que predominou nas últimas décadas do século. Possivelmente o poeta se decepcionava com a realidade cruel, estúpida e mesquinha do Brasil oficial. Talvez não tivesse estômago, caso sobrevivesse mais alguns anos, para deparar-se com o narcisismo (muito bem remunerado) de antigos rebeldes que hoje cultivam o patético prazer de mostrar suas caras e casas na Caras, e insistem em manipular a história cultural sempre a seu favor.
Não seria uma evidente tomada de posição o que transparece no poema "1987, Tende Piedade de Nós"?:

		anos ímpares
	são anos vítimas
		anos sedentos
	de sangue e vingança
		todo gozo será punido
	e o deserto será nossa herança

E como se pode ler o poema sintomaticamente entitulado "Campo de Sucatas"?:

	
		saudade do futuro que não houve
	aquele que ia ser nobre e pobre
		como é que tudo aquilo pôde
	virar esse presente podre
		e esse desespero em lata?

Ambos os fragmentos pertencem ao livro póstumo O Ex-estranho (1996), para o qual deixou anotado um pequeno texto introdutório: "Este livro ... expressa, na maior parte de seus poemas, uma vivência de despaisamento, o desconforto do not-belonging, o mal-estar do fora-de-foco, os mais modernos dos sentimentos".
Paulo Leminski, que um dia definiu a poesia como "a liberdade da minha linguagem", deixou, de fato, uma poesia impregnada de vida e uma vida impregnada de poesia. Não se escondeu atrás dos versos: ao contrário, abriu o peito (e o cérebro) e expôs as experiências de um ser único passando pelo planeta e deixando sua marca, como fizeram Rimbaud, Pessoa, Whitman e tantos outros. Leminski tinha o que dizer e o soube dizer. Essa a diferença.

Ademir Assunção

 

*OBS.: in revista MEDUSA nº 6, p. 2-6, 1999.

 

Ý

 

Um poeta além do porquê *


A intensidade, o vigor intelectual, o frescor de idéias e a capacidade de articular raciocínios surpreendentes estão presentes na entrevista que se segue. Parte dela foi publicada no Caderno 2, do Estadão, em outubro de 86. Mas a íntegra da conversa permaneceu inédita.
Tivesse conseguido alargar um pouco mais seu tempo de vida, veria que outros "dissidentes", de gerações mais novas ou não, chegariam para desafinar "o coro dos contentes" e restaurar a alegria de viver. Ou, como já cantou Itamar Assumpção, para "afinar o coro dos descontentes". Afinal, como já sabiam os mestres taoístas, toda força em uma direção gera sua contraforça na direção contrária.



A idéia de inutensílio, de que a arte não serve a causa nenhuma, como você teorizou em um ensaio, certamente acabaria numa boa troca de sopapos num simpósio sobre o papel da poesia nas transformações sociais brasileiras. Essa rebeldia contra a transformação do prazer estético em mercadoria é uma atitude diante da linguagem?

leminski O Roman Jakobson traz uma contribuição importante quando diz que existe uma função poética na linguagem, que é quando o discurso incide sobre a própria linguagem. é o prazer do homem na prática da linguagem. é como Freud distingüia: o princípio do prazer e o princípio da realidade. O princípio da realidade, no uso da linguagem, seria a função referencial, que é quando a linguagem se refere a uma coisa exterior a ela mesma. E o princípio do prazer é quando a linguagem é o puro exercício do prazer. é um caráter lúdico da linguagem que é inegável. Porque a linguagem é a obra-prima do homem, é a condição da sociabilidade dele. Então, a poesia é realmente isso. A gente precisa resgatar a grandeza da idéia de brincar com a linguagem. Para algumas pessoas é até a brincadeira suprema, que pode ser a razão de ser da sua vida.

é esse sentido de prazer com a linguagem que impulsiona o seu trabalho?

leminski Eu faço poesia como a aranha faz sua teia. Não tem por quê. Estou além do por quê. é o resto da minha vida que tem que se explicar em relação a isso. Esse é o resultado do meu viver. A minha poesia, para mim, é uma atividade intransitiva. Como pular o carnaval. Não se pula o carnaval para alguma coisa. Simplesmente pula-se. Ou não. E pode-se fazer disso um exercício de sadismo ou de masoquismo.

O exercício da linguagem é um exercício sádico?

leminski É um exercício de poder. Porque o idioma é um fato acabado. Quando você nasce, já nasce no interior de uma determinada língua. A língua é uma fatalidade, como você ter nascido homem, mulher ou corcunda.

Existe alguma língua melhor do que outra para a poesia?

leminski Não existe nenhuma língua no mundo que seja superior a outra quanto ao seu potencial expressivo. Todas as línguas são igualmente capazes de expressar, são igualmente ricas, musicais. A questão toda se trata da experiência histórica do povo que fala essa língua. A língua grega, em si, não é dotada de propriedades que a torne superior à língua vietnamita. Tudo vai das circunstâncias. A questão toda é você perguntar , por exemplo, se Shakespeare seria o grande teatrólogo que é se ele não tivesse coincidido com o apogeu imperial da Inglaterra.

Depende da importância que o país que fala aquela língua consegue obter no contexto mundial?

leminski É. Veja o caso do português. Camões teve a sorte de escrever em português num momento imperial. A sorte que um Fernando Pessoa já não teve. Porque ele fez uma grande poesia portuguesa mas escreveu em um momento em que Portugal não é mais nada. Portugal é apenas a sombra de um passado que já houve. Então você é vítima, é uma espécie de objeto sexual da língua em que nasceu. Você não pode ser maior do que ela. Você pode escrever um grande poema épico num dialeto da índia e não adianta nada, ele não terá realmente um reconhecimento planetário. O português é uma província em nível planetário. O português é mais que o basco mas é menos que o espanhol. Nesse sentido, o poeta, o escritor, a gente que lida com a palavra, a gente é vítima da nossa língua.

Dentro disso, algum futuro promissor para a língua portuguesa?

leminski O problema não está na língua portuguesa. Está no que os falantes da língua portuguesa vão fazer de si. O dia em que o Brasil for uma grande potência mundial, em todos os sentidos, tecnológico, científico, artístico, a língua portuguesa ganhará um vulto maior. Não existe a língua portuguesa. La langue não existe. Existe a parole, naquela distinção de Saussurre. O ato de falar é que existe. Ninguém sabe onde é que está a langue. Está em Machado de Assis, em Guimarães Rosa, em você, em mim? A langue não está em lugar nenhum. Ela está em todos e não está em lugar nenhum. Ela é como Deus, é onipresente. Você só verá a parole, a manifestação. Dentro da tradição Cristã, a parole seria Jesus. Você não vê Deus. Você verá Jesus, verá a encarnação. A parole é a encarnação da langue. Onde é que está a língua portuguesa? Ela está como uma possibilidade de seus falantes, tanto em Guimarães Rosa quanto em Sebastião da Silva, que é estivador no porto de Santos. Todos eles, no ato da parole, tornam real a langue, que é a língua portuguesa, a qual não está em lugar nenhum. Então, no caso do masoquismo, é a ditadura da langue sobre a parole.

E no caso do sadismo?

leminski Em termos de texto seria o caso da poesia dita experimental, por exemplo, na qual você pode violar as regras e essa violação é portadora de uma valoração positiva. As vanguardas são momentos de sadismo, momentos em que o criador se volta contra a langue e faz imperar sua parole.

A poesia brasileira tem mais masoquistas do que sádicos?

leminski Muito mais masoquistas. Em todos os lugares. O masoquismo é a regra e o sadismo a exceção.

Esse masoquismo acontece também em outras manifestações artísticas ou apenas na cultura letrada?

leminski Se estendermos isso também às formas herdadas, e não apenas ao idioma, vamos perceber que quando você nasce já se insere no interior de uma determinada tradição — e você vai ter que se relacionar com ela. Já tem todo um estoque, um elenco de formas prontas e acabadas. Ou você as aceita, e se torna um acadêmico, ou você as nega, as agride, as estupra, as dinamita. Quer dizer, você opera artisticamente já no interior de um código. Se você quiser mexer nas formas é por sua própria conta e risco.

Seu primeiro livro, Catatau, já chegou provocando, dinamitando os limites. Não é conto, não é romance, não é poesia. Nele, o personagem central é nada menos que Descartes. E ele tem uma luneta em uma mão e um cachimbo de maconha em outra. São dois símbolos?

leminski É, são dois símbolos elementares. Um, de distanciamento crítico e outro de integração. A luneta é o distanciamento. E o cachimbo de maconha é a integração. A maconha gera uma integração. Numa roda de gente queimando fumo gera-se um tipo de comunicação diferente daquele gerado em um simpósio, por exemplo, sobre metafísica e a psicologia de Jung. é uma comunicação via substância, não via palavra.

Esse tipo de experiência, de alguma forma, tem a ver com a experiência poética?

leminski É até um lugar-comum a tradição, por exemplo, de que os poetas criam de madrugada, de que são alcoólatras. Baudelaire, por exemplo, escreveu muitos poemas numa mesa de bar, sob efeito do absinto. A idéia de que o discurso poético se produz em estados anômalos é uma coisa normal, que rima com a própria natureza anômala da linguagem poética. O normal da linguagem é a função referencial. E ela se voltar sobre si mesma, como no caso da poesia, é uma espécie de hipertrofia. Escrever um livro inteiro, em que prevaleça a função poética é um exagero, um excesso. Essa linguagem ocorre com os exagerados e os excessivos. A idéia de que os poetas são loucos é até absolutamente correta. Isso se tornou quase mitológico do romantismo em diante.

Você tem um texto interessante sobre a poesia no receptor. Trabalha com a idéia de que um bom leitor de poesia também é, de alguma forma, um poeta. Como é isso?

leminski Uma pessoa pode dizer assim: "eu sou incapaz de escrever um bom verso mas não consigo passar uma noite sem ler umas páginas de Fernando Pessoa". Para mim, essa pessoa é poeta. A poesia tem que existir nos dois pólos: no emissor e no receptor. Quem sabe ler bem poesia é tão poeta quanto quem escreve. Borges tem uma frase magistral sobre isso. Ele diz: "outros se orgulham dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que li".

Você se lembra quando começou a fazer poesia?

leminski Já fazia versinhos quando estava no primário. Tinha um avô que fazia poesia, ele era militar. O meu avô é uma figura totêmica na minha família. Ele fazia uns sonetos, meio religiosos. O fato de fazer poesia já estava embutido dentro de uma programação familiar. E dentro disso existe também um componente inexplicável. Não acho que tudo tenha explicação. é como perguntar quem é Deus.

A propósito, quem é Deus?

leminski Acredito que como um ser vivo do planeta eu pertenço a uma ordem maior do que a mim, que vai do tubarão ao gafanhoto. Desde um carvalho até um amor-perfeito. Eu estou no interior do mistério. é difícil compreender o mistério. As religiões todas, para mim, são uma tentativa tosca e grosseira de homenagear o Mistério, com letra maíscula. Eu me dou por satisfeito de ter a sensação de pertencer ao mistério. Que nome esse mistério tem, isso não importa. Isso é historicamente determinado. Nem os mais geniais economistas brasileiros conseguem compreender o funcionamento da economia, como nós vamos compreender o mistério? Porra, é um pouco demais. Tudo o que a gente tem a fazer é realmente homenagear o mistério.

Como você homenageia o mistério?

leminski Escrevendo. é o único tipo de oração que eu sei. Essa oração tem a ver com o zen, algo que você é tão ligado?

leminski De todos esses tipos de atitude de homenagear o mistério, para mim, a atitude superior é o zen. Claro.

é tudo aqui e agora?

leminski É. Tudo é milagre. Não precisa curar leprosos. Não preciso de milagres desse tipo. A cor amarela, para mim, é um milagre. A percepção é um grande milagre. Poder ouvir um som, mi bemol, é um milagre. O azul, as experiências biológicas, o gosto da batata frita, são milagres. Dar três trepadas numa noite é um milagre. O mundo é cheio de milagres. E as pessoas ficam procurando... As pessoas querem circo. Não preciso de circo, o zen não precisa de circo. O zen diz: "é aqui e agora".

é só isso. E é tudo isso.

leminski Por isso que os jesuítas, na catequização do Japão, conseguiram converter todo mundo, menos os caras que praticavam o zen. Esses eram inacessíveis à conversão.

Por quê?

leminski Primeiro porque eles não aceitam a divisão entre corpo e alma. A visão zen é holística, unitária. Quer dizer, ou eu me salvo por inteiro ou nada se salva.

Mas se salvar do quê?

leminski Salvar o quê? Estou salvo aqui e agora. é só pegar aqueles koans dos grandes mestres zen, todos eles continham a iluminação. Como aquele em que o discípulo perguntou para o mestre qual o significado de Bodhidharma ter vindo do Oeste.

E o que o mestre respondeu?

leminski O vento no salgueiro.

Ademir Assunção

 

*OBS.: in revista MEDUSA nº 6, p. 7-9, 1999.

 

Ý

 

Poemas
eu quando olho nos olhos sei quando uma pessoa está por dentro ou está por fora quem está por fora não segura um olhar que demora de dentro do meu centro este poema me olha
° ° °
o velho leon e natália em coyoacán desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia o céu vai estar limpo e o sol brilhando você dormindo e eu sonhando nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia apenas você nua e eu como nasci eu dormindo e você sonhando não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia silêncio nós dois murmúrios azuis eu e você dormindo e sonhando nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia nada como um dia indo atrás de outro vindo você e eu sonhando e dormindo
° ° °
hoje o circo está na cidade todo mundo me telefonou hoje eu acho tudo uma preguiça esses dias de encher linguiça entre um triunfo e um waterloo
° ° °
ascensão apogeu e queda da vida paixão e morte do poeta enquanto ser que chora enquanto chove lá fora e alguém canta a última esperança de chegar à estação da luz e pegar o primeiro trem para muito além das serras que azulam no horizonte e o separam da aurora da sua vida
° ° °
DIONISIOS ARES AFRODITE aos deuses mais cruéis juventude eterna eles nos dão de beber na mesma taça o vinho, o sangue e o esperma
° ° °
este planeta, às vezes, cansa, almas pretas com suas caras brancas suas noites de briga braba, sujas tardes de água mansa, minutos de luz e pavor casa cheia de doce, ondas tinindo de dor, acabou-se o que era amargo, pisar este planeta como quem esmaga uma flor
° ° °
INVERNÁCULO Esta língua não é minha, qualquer um percebe. Quando o sentido caminha, a palavra permanece. Quem sabe mal digo mentiras, vai ver só minto verdades. Assim me falo, eu, mínima, quem sabe, eu sinto, mal sabe. Esta não é minha língua. A língua que eu falo trava uma canção longínqua, a voz, além, nem palavra. O dialeto que se usa à margem esquerda da frase, eis a fala que me lusa, eu, meio, eu dentro, eu, quase.
° ° °
PAREÇA E DESAPAREÇA Parece que foi ontem. Tudo parecia alguma coisa. O dia parecia noite. E o vinho parecia rosas. Até parece mentira, tudo parecia alguma coisa. O tempo parecia pouco, e a gente se parecia muito. A dor, sobretudo, parecia prazer. Parecer era tudo que as coisas sabiam fazer. O próximo, eu mesmo. Tão fácil ser semelhante, quando eu tinha um espelho pra me servir de exemplo. Mas vice versa e vide a vida. Nada se parece com nada. A fita não coincide Com a tragédia encenada. Parece que foi ontem. O resto, as próprias coisas contem.
° ° °
MINIFESTO ave a raiva desta noite a baita lasca fúria abrupta louca besta vaca solta ruiva luz que contra o dia tanto e tarde madrugastes morra a calma desta tarde morra em ouro enfim, mais seda a morte, essa fraude, quando próspera viva e morra sobretudo este dia, metal vil, surdo, cego e mudo, nele tudo foi e, se ser foi tudo, já nem tudo nem sei se vai saber a primavera ou se um dia saberei que nem eu saber nem ser nem era
° ° °
DISTÂNCIAS MÍNIMAS um texto morcego se guia por ecos um texto texto cego um eco anti anti anti antigo um grito na parede rede rede volta verde verde verde com mim com com consigo ouvir é ver se se se se se ou se se me lhe te sigo?
° ° °
MERDA E OURO Merda é veneno. No entanto, não há nada que seja mais bonito que uma bela cagada. Cagam ricos, cagam padres, cagam reis e cagam fadas. Não há merda que se compare à bosta da pessoa amada.
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Adeus, coisas que nunca tive, dívidas externas, vaidades terrenas, lupas de detetive, adeus. Adeus, plenitudes inesperadas, sustos, ímpetos e espetáculos, adeus. Adeus, que lá se vão meus ais. Um dia, quem sabe, sejam seus, como um dia foram dos meus pais. Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus, adeus, meus filhos, quem sabe um dia todos os filhos serão meus. Adeus, mundo cruel, fábula de papel, sopro de vento, torre de babel, adeus, coisas ao léu, adeus.
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PROFISSÃO DE FEBRE quando chove, eu chovo, faz sol, eu faço, de noite, anoiteço, tem deus, eu rezo, não tem, esqueço, chove de novo, de novo, chovo, assobio no vento, daqui me vejo, lá vou eu, gesto no movimento
° ° °
COMO ABATER UMA NUVEM A TIROS sirenes, bares em chamas, carros se chocando, a noite me chama, a coisa escrita em sangue nas paredes das danceterias e dos hospitais, os poemas incompletos e o vermelho sempre verde dos sinais
° ° °
SINTONIA PARA PRESSA E PRESSÁGIO Escrevia no espaço. Hoje, grafo no tempo, na pele, na palma, na pétala, luz do momento. Sôo na dúvida que separa o silêncio de quem grita do escândalo que cala, no tempo, distância, praça, que a pausa, asa, leva para ir do percalço ao espasmo. Eis a voz, eis o deus, eis a fala, eis que a luz se acendeu na casa e não cabe mais na sala.

seleção: Ademir Assunção

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