PAULO LEMINSKI, A CIGARRA
excerto do livro Oku: Viajando com Bashô *

Carlos Verçosa


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Dentro dos requisitos do haikai apontados pelo especialista Reginald Horace Blyth, citados pela poeta Alice Ruiz numa palestra em São Paulo, destacam-se: a) a ausência do eu, onde o poeta procura não deixar transparecer sua individualidade, inserindo sua opinião, b) não moralidade, pois questões morais configurariam prosa e não poesia; c) solidão, a plenitude de estar só consigo mesmo; d) grata aceitação, o que nos torna mais felizes, independente das coisas que nos aconteçam; e) não intelectualidade ou ausência das palavras, procurando usar mais substantivos que adjetivos; f) contradição, de notada influência do espírito zen, à semelhança dos koan (anedotas), que servem para o mestre treinar seus discípulos. 1
Ninguém melhor que o curitibano Paulo Leminski (1944-1989) colocou tanto em prática estes preceitos. Dentre os haikaistas brasileiros do século 20, Leminski foi justamente a estrela mais brilhante. Autor de livros essenciais à biblioteca de qualquer admirador do haikai: Matsuo Bashô; a lágrima do peixe , 1986; Quarenta clics em Curitíba, 1976 (com fotos de Jack Pires); Polonaises, 1980; Não fosse isso e era menos. Não fosse tanto e era quase, 1981; Ideolágrimas, 1983; Sol-te, 1983; Caprichos e relaxos, 1983; Hai-Tropikai, 1985 (com Alice Ruiz); Distraídos venceremos, 1987; La vie en close c'est une autre chose, 1991 (ed. póstuma); Leminski viveu pela poesia e para a poesia. Só não conseguiu viver da poesia.
Importante, ainda, em sua obra, a crítica fundamental de Anseios Crípticos, 1986, toda magia da prosa experimental de Catatau, 1976, e a tática guerrilheiro-poética de ocupação de todos os espaços possíveis da mídia, publicando todas, desde suplementos como Folhetim, da Folha de S. Paulo, e passando por páginas como Rascunho, da Folha de Londrina, e Raposa, do Diário do Paraná, até jornais e revistas experimentais como Corpo Extranho, Outras Palavras, Muda, I, Nicolau, Inventiva, Fetiche, Código, entre tantas.
"One-way poetry", como ele um dia definiu: "a poesia-curtiu-cabou" Leminski acreditava que "a ilusão de ficar pode ser um preconceito, vindo de eras outras. Dai, a revista, o folheto, o cartão, em vez do livro. Quem sabe não haja mais tempo nem espaço para a glória trocada em miúdos. Miúdos momentos de poesia, partículas subatômicas, prótons, elétrons, grãos de poeira cósmica. A possibilidade de a poesia ser isso e assim encontrou, nos anos 70, seu veículo perftito: as revistas, as antologias, os livretos de curta duração, como se fossem feitos com páginas de papel higiênico". 2 Ele próprio embarcando nessa, de cabeça.
Leminski caiu na estrada da poesia desde os anos 60. Contemporâneo dos Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, Glauber Rocha, Torquato Neto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Pasolini, Jorge Mautner, Chico Buarque, Zé Celso Martinez, Plínio Marcos e tantos outros poetas das palavras e das imagens que pintaram nos anos mais curtidos deste século 20, ele chegou de Curitiba, cara e coragem, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, em 1963, com todo o gás dos seus 19 anos. Haroldo de Campos é quem conta: 3
"Leminski nos apareceu, Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o Senhor Bananeira".
Já em 1964, Noigandres, o grupo concretista, o acolhia na plataforma de lançamento de Invenção. Leminski, "lampiro-mais-que-vampiro de Curitiba", conforme Haroldo de Campos.
Leminski dava as caras justamente com hai-cai-hi-fi: 4
chove		cavalo com guizos	de espanto

na única sigo com os olhos espontânea oh
qu'houve e me cavalizo espantânea

"Aí começou tudo. Caipira cabotino (como diz afetuosamente o Julinho Bressane) ou polilingüe paroquiano cósmico, como eu preferiria sintetizar numa fórmula ideogrâmica de contrastes, esse caboclo polaco-paranense soube, muito precocemente, deglutir o pau-brasil oswaldíano e educar-se na pedra filosofal da poesia concreta até hoje no caminho da poesia brasileira), pedra de fundação e de toque magneto de poetas-poetas", conta Haroldo de Campos. 5
A partir daí, ninguém segura Leminski; sua poesia inventiva, feita de saques, piques, toques & baques, como ele próprio costumava dizer, passou a chover no piquenique bem comportado da literatura brasileira. 6

pra que cara feia?	confira			nuvens brancas
na vida			tudo que respira	passam
ninguém paga meia.	conspira		em brancas nuvens

Leminski foi um caso raro de poeta em tempo integral. Mesmo na prosa, feita de kakekotoba (literalmente, em japonês, "palavra pendurada"), port-manteau words (as "palavras-valise" de Lewis Carrol) e toda a inventiva joyceana-roseana-glauberiana que sua mente liquidificadora diluía em versos vitaminados e/ou citações-novas combinações-invenções. Mistura fina.
Nos anos truculentos garrastazúis, Leminski arrastava por toda a parte, numa pasta velha, seu Catatau de anotações, em folhas soltas, escritas e reescritas dias e madrugadas a fio. Apresentou-me Maiakóvski e, principalmente, Leminski. Apontei Bashô entre seus escritos. Espantou-se. Entre uma página e outra de Rascunho, um e outro show de rock d'A Chave, ficamos amigos. 7
Finalmente, em 1975, consegue editar o Catatau, "sátira ao intelectual brasileiro q quer resolver tudo dentro da cabeça dele", escreveu-me na dedicatória.
A crítica, ora a crítica. Como era de se esperar, caiu de pau no Catatau. A exceção da regra: Antonio Risério, que rodou a baiana e botou a bota no trombone (sic). "Antes de falar de 'Catatau', quero dizer que o texto foi realmente escrito por Leminski. E digo isto porque a desatenção da crítica brasileira, nesses últimos tempos, tem roçado o escandalo", denunchiava (sic). 8
A "fábula rasa" de Catatau é simples: Leminski imagina o filósofo René Descartes (1596-1650, sob o seu nome em latim, Renatus Cartesius, dai o pensamento 'cartesiano') aportando no Brasil com as invasões holandesas, em companhia de Maurício de Nassau. (Na realidade, ele morou por vinte anos na Holanda, à época, poderosa potência européia, e foi contemporâneo dessas invasões. Como se vê, a pedra[da] de toque da ficção leminskiana tem lá sua lógica.) A tentativa de transplantar o racionalismo cartesiano para o Brasil esbarra num ilógico calor dos trópicos que baratina o pensar claro, organizado e sistemático. "Penso, logo desisto", cogitaria o filósofo aclimatado.
"Catatau não é romance nem ensaio. Texto conceitual e poético, além ou aquém de gêneros. Rede de signos", afirma Antonio Risério. "Leminski, como Oswald, reconhece a riqueza dos bailes e das frases feitas, explorando e manipulando frases prontas do repertório coloquial, torcendo expressões codificadas, etiquetas lingüísticas, etc. (...) entramos num mundo labiríntico, de imprevistos reflexos e reverberações (...) enfim, riqueza sonora e semântica, invenções léxicas, minúcia artesanal num texto de textura paranomástica. Lembro-me do que Harry Levin disse do estilo de Joyce; luxuriosa profusão de linguagem. A frase se aplica às maravilhas ao Catatau (...) Para encerrar, digamos que o Catatau ocupa um lugar raro na prosa literária brasileira. O que pintou depois das aventuras textuais de Guimarães Rosa? Quase nada (...) Por tudo isso, o Catatau é uma surpresa e uma alegria. Não só em termos brasileiros. O livro de Leminski deve, sem esforço, ser colocado ao lado do que há de melhor na produção literária do continente", escreve o baiano Antonio Risério. 9
Pois a floresta sígnica de Catatau se permite também a haikais no cipoal trópico-lingüístico de suas montagens. O próprio Leminski, consultado, achara divertidas essas possibilidades: 10
a flor				festa no pavilhão da primavera
suja de ouro			a música nos perfumes
afunda em água morna		as flores das feras

tira pestana ao sol		plum! bum!
uma jibóia			no rio apenas uma pedra
que é só borboletas		que caiu

o olho		o óbvio
do sol		vai ver
pisca		que é

para limpar lágrimas		sede chave
uma lápide			que abre a fonte

vou ali
me suicido
e já volto

o girassol			cobras de sangue frio 
amanheceu			carregam calor
imaginando-se			no veneno

velho poço
o sapo salta num

Sobre a poesia, que, marginal, encolheu na contracultura dos anos 70, Leminski dizia que ela ficara portátil, leve de carregar: "Grafitável, numa palavra (..) o fato é que o poema curto se impôs. O investimento de material verbal, na fritura do poema, foi, consideravelmente, diminuído. Donde teria vindo esta tendência à economia? Da publicidade? Das técnicas da poesia concreta, que devem tanto à publicidade? ou é inexplicável mutação, inexplicável como todas as mutações que colocam em xeque nossas velhas lógicas apenas porque estão chamando novas lógicas à vida" 11
Recolhidos, entre caprichos e relaxos dos anos 70: 12
ameixas			bateu na patente   	1º dia de aula
ame-as			batata			na sala de aula
ou deixe-as 		tem gente		eu e a sala

acordei bemol			não discuto
tudo estava sustenido		com o destino

sol fazia			o que pintar
só não fazia sentido		eu assino

inverno			palpite
primavera		o grafitti
poeta é			é o limite
quem se considera

"A única razão de ser da poesia é o antidiscurso. Um modo de dizer como não se diz. Poesia, num certo sentido, é o torto do discurso. O discurso torto", diz Leminski. "Tirando isso, não vejo nenhuma razão para ela existir. A pior poesia é aquela que tenta dizer, ornada ou dramaticamente, aquilo que a prosa consegue dizer. nisso, a poesia dos anos 70, ou 'marginal', é ótima: ela registra bobagens tão insignificantes que nenhuma prosa se dignaria recolher para as eternidades da memória. A poesia dos anos 70 é uma antropofagia. Uma devoração de todos os materiais imediatamente disponíveis" 13
um pouco de mao			nada que eu faça
em todo poema que ensina		altera este fato

quanto menor				a folha de alface
mais do tamanho da china		é a última no prato

Sobre o haikai, Leminski começou a se interessar por esta estrutura poética mínima dos japoneses por volta de 1964. 14
Em 1976, ele, publica Quarenta Clics em Curitiba, com fotos de Jack Pires. Álbum numa caixa com pranchas soltas: uma foto, um haikai. Leminski, elefante atrás da orelha sobre as possíveis afinidades entre foto e haikai, confirma este parentesco: "Foram diversos os critérios de aproximação entre foto e haikai: fiz haikais para algumas fotos já prontas, mas, em muitos casos, casamos fotos e haikais que eu já tinha prontos. Em alguns casos, Pires fez fotos para haikais anteriores" 15
Escreveu o artigo Click: Zen e a arte da fotografia, onde estabelece as afinidades entre uma e outra arte ("foto, haikai: elipse do eu, eclipse da retórica") e acaba por revelar boas definições sobre o haikai: 16
"O haikai valoriza o fragmentário e o 'insignificante', o aparentemente banal e o casual, sempre tentando extrair o máximo do significado do mínimo de material, em ultra-segundos de hiperinformação. De imediato, podemos ver em tudo isso os paralelos profundos com a estética fotográfica. Esses traços característicos do haikai podem ser transpostos sem nenhuma dificuldade para a fotografia ".
"O mundo que o haikai procura captar é um mundo objetivo, o mundo exterior. Um mundo de coisas onde o eu está quase sempre ausente, sujeito oculto, elidido. Mas não é um mundo morto, uma mera descrição. Por trás das objetividades do haikai, sempre pulsa (sem se anunciar) um Eu maior, aquele eu que deixa as coisas ser, não as sufoca com seus medos e desejos, um eu que quase se confunde com elas. A esse estado, os poetas japoneses de haikai chamam de mu-ga: em japonês, 'não-eu', o exato ponto de harmonia entre um eu e as coisas. 'Não-eu' é o estudo perfeito para fazer haikai. Os mestres japoneses gostavam de dizer que o bom haikai ninguém faz. Ele se faz sozinho, à hora que quiser; tudo o que o poeta pode fazer é suspender os egoísmos da subjetividade para permitir que a realidade se transforme em significado. Por este motivo e por sua brevidade, haikais não têm 'estilo' no sentido em que a literatura entende essa palavra: a marca registrada de um eu gravada na obra como uma impressão digital". 17
essa estrada vai longe		coisas do vento
mas se for				a rede balança
vai fazer muita falta			sem ninguém dentro

quem me dera				feliz a lesma de maio
até para a flor no vaso		um dia de chuva
um dia chega a primavera		como presente de aniversário

Sete e dez			para fazer uma teia num minuto
Aqui jaz o sol,		a aranha cobra pouco
sombra a meus pés		apenas um mosquito

"Será que isso não se aplicaria também à arte da fotografia?", pergunta Leminski. "Essa 'abolição do eu' está ligada a outra importante característica do haikai: a ausência de retórica. A própria brevidade torna o haikai imune a toda tentativa de ênfase, de adjetivos desnecessários, de redundância, de entropia. É uma unidade de informação quase pura". 18
Para Leminski, o haikai tem uma característica comum com a técnica caligráfica japonesa: a irrepetibilidade. "Um ideograma é traçado num só gesto, único, irremediável, absoluto: não pode ser corrigido. Entre os mestres de haikai, sempre foi enfatizada essa imediatidade irrepetível e incorrigível o verdadeiro haikai é aquele que desponta de súbito, inteiro, íntegro, sólido objeto do mundo, num momento decisivo que não depende da vontade, do arbítrio do poeta. Como o ato de bater uma foto. Tenho uma amiga fotógrafa que me confessou experimentar uma sensação quase mística, orgásmica, quando sente que bateu uma boa foto. Antes de revelá-la, no momento mesmo em que está fotografando " 19
velhas fotos		dia sem senso		acabou a farra
velha e revelha	acendo o cigarro	formigas mascam
uma flor de lótus	no insenso		restos da cigarra

a noite — enorme	novas telhas		dia cinzento
tudo dorme		à primeira chuva	assim me levanto
menos teu nome		a nova goteira		assim me sento

"O que é irrepetível não pode ser traduzido, vertido, passado para outro sistema de signos. Fotos e haikais são ícones; ícones são coisas, coisas não têm tradução. Um ícone só pode ser adequadamente comentado por um outro ícone: é o que faz a história da arte, o jogo vital das influências, citações, cópias, paródias, pastiches. O ícone é um signo produtor de significados. Ele é ativo, radioativo, sujeito, não objeto. Por isso podemos levar mil horas falando sobre uma foto sem esgotar suas possibilidades de significar que, afinal, dependem também, e sobretudo, da consciência de quem lê ou vê", finaliza. 20
escurece		brisa quente		morreu o periquito
cresce tudo		quem te precisa	a gaiola vazia
que carece		pressente		esconde um grito

Leminski afirma que é magra a safra de um poeta de haikai. "Já não bastasse a extrema escassez de meios que esta forma implica, algumas palavras, alguns buracos, o haikai demanda dias e dias de brisa e mormaço, birita e desempenho, desespero e euforia, namoros e despedidas, só os piores e os melhores pedaços de vida. Um belo momento, pinta." 21
soprando esse bambu			a noite
só tiro					me pinga uma estreia no olho
o que lhe deu o vento			e passa

a chuva é fraca			casa com cachorro brabo
cresçam com força			meu anjo da guarda
línguas-de-vaca			abana o rabo

a chuva vem de cima			duas folhas na sandália

correm					o outono
como se viesse atrás			também quer andar

cortinas de seda	viu-me,			primeiro frio do ano
o vento entra		e passou,		fui feliz
sem pedir licença	como um filme		se não me engano

É quando a vida vase	   enfim, 		rio do mistério
É quando como quase		nu,		que seria de mim
Ou não, quem sabe.	como vim 	se me levassem a sério?

Sobre a riqueza, virtude semântica e polivalência de significados que latejam "nos interstícios das 17 sílabas que Matsuo Bashó e seus discipulos elevam à categoria de grande arte", ele lembra, no livrinho fundamental Matsuo Bashô, a lágrima do peixe, 1983, que a escrita japonesa se grafa com um sistema de escrita composto de dois subsistemas: e' necessário usar kanji, ideogramas de origem chinesa, mais um silabário, hirakaná.
"Acontece que o japonês é idioma aglutinante (como o tupi, as línguas indígenas da América, o basco, o turco, finlandês, o húngaro) de mecanismo muito distinto do chinês (monossilábico, como o tibetano, o vietnamita, o thai). Japonês tem terminações, conjugações de verbo, sufixações: o núcleo dos substantivos e verbos é dado em ideograma, kanji, as terminações morfológicas em silabário", escreve Leminski. 22
Ele cita o estudioso americano Donald Keene: 23
"O japonês clássico é uma língua de frases intermináveis, às vezes literalmente intermináveis e, nesse caso, se deixam incompletas, no vigésimo ou quadragésimo giro, como se seus autores desesperassem de chegar jamais ao término da sua tarefa".
Em contraste, o chinês clássico "é uma língua monossilábica, escrita sem modulações gramaticais, apenas uma morfología posicional, com entonações musicais, que servem para diferenciar muitas sílabas que são idênticas".
"O japonês é polissilábico, não tem as entonações musicais do chinês, e soa um pouco como o italiano, pelo menos para os que não sabem italiano", comenta Keene. 24
Leminski emenda citando R. H. Blyth: 25
"O gênio da língua japonesa era bem difrrente do chinês. Não só sujeito, predicado e objeto eram, até um grau, indistinguíveis, e a pontuação inexistente, mas até o perfil das palavras era borrado". E complementa: "Em japonês, não existem artigos nem plural".
Blyth arremata: "Na vida, sujeito e predicado não estão fixados, nem causa nem efeito (...) Coisas não começam com letra maiúscula e terminam com um ponto final". Leminski: "A língua japonesa, idioma meio sem parentescos históricos visíveis com outros, é vaga, fluida, cheia de gerúndios, soltos, sem conexões sindéticas claras: o sistema de preposições e conjunções do japonês clássico é líquido, com ambigüidades entre em, e, e de (ni, to, no). Nessa língua, talvez, Descartes não conseguiria dizer: 'penso, logo existo'. Nela não existe articulação, causa ou consecutiva desse rigor, pensado em latim".
O haikai é parte de um conjunto plástico maior, pintando como mancha integrante de um desenho caligráfico onde ambos, desenho e texto são traçados a pincel num mesmo momento da composição. Leminski: "A tudo isso, soma-se a riqueza própria do ideograma chinês, entidade pictocaligráfica, irrepetível e incorrigível como uma rubrica. Essa riqueza de significados do haicai é garantida, ainda por outro traço formal distintivo: os haikais japoneses não têm título". 26
Finalmente, Leminski observa que é fundamental que esse processo de escrita seja caligráfico, feito à mão: "Isso implica deformações personalizadas, que, embora quase destruam o signo de origem, com ele mantêm relações plásticas e icônicas tais que permitem sua leitura no interior da comunidade dos praticantes desse código".
"Há, sobretudo, naturalmente, o plano fonético do haikai, com tramas sonoras muito elaboradas: o japonês é língua foneticamente muito simples, sílabas completas tipo consoantevogal (yúkí, nátsu, aki, kokorô, tábi, úmi), sem encontros consonantais violentos, permitindo mini-harmonias acústicas sutis, com inversões, espelhismos, aliterações, repercussões, harmonias imitativas, onomatopéias, ecos, rimas esparsas. A poesia japonesa não conhece a rima, como tal, a coincidência sonora obrigatória no final dos versos". 27
Leminski, lia e traduzia japonês (é sua a tradução de Sol e aço, 1985, de Yukio Mishima), que começou a aprender desde quando era um jovem judoca (chegou a faixa preta e professor). Ele demonstra as complexidades e musicalidades do haikai japonês, traduzindo alguns originais, inclusive este, de Bashô: 28
úmi kuretê				o mar escurece
kamô no koê			a voz das gaivotas
honoká ni shirôshi			quase branca

O haikai de Bashô, diz Leminski, "é um severo exercício de linguagem. Basta ver a tessitura material, o jogo fonético, no plano do significante deste haicai, que em japonês soa assim: 29
kare eda ni			árvore curva
karasu tomarikeri	o vôo do corvo
aki no kure			inverno

"Esse haikai", prossegue Leminski, "apresenta um grau de elaboração ao nível físico da linguagem (assonâncias, paralelismos, paronomásias, ecos), de tal nitidez que poderíamos, sem medo, incluí-lo naquela categoria de 'poema artificial' do filósofo alemão Max Bense. Basta ver a série: kake/kara/keri/kure... O haikai é uma bateria de 'k', a konsoante de aki..."
Falando sobre kakekotoba, ou seja, "palavra pendurada", Leminski lembra a explicação de Donald Keene: "O limitado número de sons possíveis na língua japonesa deu lugar inevitavelmente, a muitos homônimos e há inúmeras palavras que contêm outras ou partes das palavras distintas. Por exemplo, a palavra shiranámi, que significa 'ondas brancas', poderia sugerir a um japonês a palavra shiranu, que quer dizer 'desconhecido' ou námida que quer dizer 'lágrima'." 30
"A função do kakekotoba consiste em ligar duas ideias diftrentes mediante um giro ou desvio do seu significado próprio", conclui Keene. "O kakekotoba mostra um traço característico da língua japonesa: a compressão de muitas idéias num espaço reduzido, por meio, geralmente, de jogos de palavras que produzem uma dilatação dos harmônicos da palavra".
Mas a melhor definição, antológica, de kakekotoba é do próprio Leminski: "É a passagem de uma palavra por dentro da outra, nela deixando seu perfume. Sua lembrança. Sua saudade." 31
Ele define, ainda, as funções dos três versos do haikai, assim reduzido ao seu "esqueleto fonético-formal": 32
			_ _ _ _ _
			_ _ _ _ _ _ _
			_ _ _ _ _


O velho tanque:
"O primeiro verso expressa, em geral, uma circunstância eterna, absoluta, cósmica, não humana, normalmente, uma alusão à estação do ano, presente em todo haicai."
O sapo salta:
"O segundo verso exprime a ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual. Por isso, talvez, tenha duas sílabas a mais que os outros."
O som da água:
"A terceira linha do haikai apresenta interação entre a ordem imutável do cosmos e o evento (...) o terceiro verso de um haikai não é uma conclusão lógica: parte de uma obra de arte, é o membro de um poema."
Mais adiante, Leminski comenta: "Assim, muita complexidade está lá, escondida dentro dos haikais, aparentemente, mais banais. Os de Matsuo Bashô podem ser qualquer coisa: menos banais." E traduz, a seguir, um de seus haikais que revelam toda a sua humanidade e humor zen-budista: 33
		em minha cabana
	tenho o que oferecer pelo menos
		os mosquitos são pequenos

Mais Bashô, por Leminski: 34
em kyoto			lua onde está?
com saudades de kyoto		o sino caiu		
o hototoguisu			no fundo do mar	

flor pura
pó	algum
nessa	pupila

Leminski lembra que, além dos mosteiros tradicionais, sob a direção de mestres experimentados, o zen é acessível, para todas as pessoas, através dos "caminhos" (em japonês, do): "Esse dô (ou caminhos) são vias de acesso a uma experiência: através da sua prática, vive-se circunstâncias zen, circunstâncias em que o zen pode manifestar-se, ocasiões nas quais se toma visível, nas cores dos nossos gestos. Bashô praticou vários." 35
Alguns dos caminhos mais percorridos: kyu-dô (o caminho do arco-e-flecha), cha-dô (o caminho do chá), ken-dô (o caminho da espada), chu-dô (o caminho da caligrafia), ka-dô (o caminho das flores, ikebana) e haiku-dô (o caminho do haiku, do haikai).
"Quão longe nos é dado ver, o tema central do zen é a superação das dualidades. A dissolução dos maniqueísmos. A síntese dos contrários. Além do bem e do mal Do sagrado e do profano. Do espiritual e do material Do transcendental e do imanente. Do aqui e do além. Isso, Matsuo Bashô procurou em seus haicais. Neles, a mais funda espiritualidade manifesta-se nos eventos mais vulgares", afirma Leminski.
"Os pensamentos mais sutis revelam-se nas condições mais materiais. E a mais alta poesia, nas circunstâncias mais pedestres e corriqueiras. Assim, Bashô transformou uma prática de texto, uma produção verbal, em 'caminho' para o zen, a mais extraordinária aventura espiritual do bicho homem", complementa. 36
acenda a luz de leve			do orvalho
eu lhe mostro uma beleza		nunca esqueça
bola de neve				o branco gosto solitário

esta estrada		a lua se foi		narciso
lá vai ninguém		tristeza		biombo
outono			os quatro cantos	um ao outro ilumina
tarde			da mesa			branco no branco

"o caminho do haikai, arte zen, parece um contrasenso nesse zen tão não-verbal. Exatamente por isso desconfiamos que o haicai, talvez, não seja escrito em palavras", finaliza Leminski. "Duvidamos até que seja escrito. Ele é inscrito. Desenhado. Incrustado, como um objeto, em outro sistema de signos. Palavras mais que palavras: gestos, vivências, coisas-em-si."
Palavras mais que palavras, os haikais e toda a poesia de Paulo Leminski, que encantou a tantos, ficaram inscritos em nossos corações e mentes. Caprichos e relaxos. Campos de morango para sempre, cultivados por esse curitibano 'cachorro louco', capaz 'de fazer chover em nosso piquenique'. Polêmico, infrator, inventor. Capaz de emocionar, surpreender, instigar; provocar, gozar, criar sempre. Fazer rir e chorar.
Raimundo Caruso (n. 1945), poeta curitibano-catarinense, num dos seus recentes Poemas exemplares, 1995, fulminante: 37
rimar é fácil:
   montanha com mar
neblina com trem
   carta com clima
— difícil

	é Ieminski

Numa conversa de poetas, contou que um dia mostrou uns haikais seus a Caetano Veloso (n. 1944), e o baiano multimidia perguntou como se apreciava um haikai. Leminski, rápido no gatilho: "Haikai tem três linhas e cinco buracos. os buracos são mais importantes que as linhas".
Caetano Veloso encantado, achava os poemas de Leminski "uma maravilha, porque são muito sintéticos, muito concisos, muito rápidos, muito inspirados" Ele o considerava "um personagem muito único, no panorama da curtição de literatura no Brasil". Gravou-o: "Leminskí tem um clima/mistura de concretismo com beatnik Que é muito legal. 'Verdura' é um sonho. É genial E um haikai da formação cultural brasileira." 38
7 de junho de 1989, aos 45 anos, Leminski nos deixa. E deixa um legado de poesia inestimável. Nesse dia invernoso, inesperado, após a notícia no rádio e o telefonema de confirmação do poeta curitibano Reinoldo Atem (n. 1950), tudo o que consegui foi xingar e chorar. Não consegui escrever uma linha sequer sobre o amigo que partira.
Lembro que, naquele momento, um haikai veio crescendo, crescendo, até eclipsar totalmente essa mistura de dor e saudade entorpecidos em cachaça de gosto ruim: era um haikai de Bashô, que o próprio Leminski um dia transcriara, quase numa premonição. Esse haikai é a sua cara:
casca oca
a cigarra
cantou-se toda

Valeu. A viagem do haikai no Brasil há muito chegara a um porto seguro e aqui plantara suas raízes fundas. Mais de 80 anos depois da chegada do Kasato Maru, e após a passagem do cometa Leminski, nós podemos realmente afirmar: yes, nós temos haikai. Brasileiro. Aqui é bananeira que já deu cacho. E continuará dando, ainda, por muito tempo."

 

Carlos Verçosa
Bahia, novembro de 1995.

 

OBS.: excerto do livro Oku: Viajando com Bashô publicado pela SEC. DE CULTURA E TURISMO DO GOV. DO EST. DA BAHIA,1996, pp 468-487.


NOTAS



1 Alice RUIZ, in O haicai tenta definir-se, Portal, dez. 1988, p. 5.

2 Paulo LEMINSKI, Anseios crípticos, 1986, p. 51.

3 Haroldo de CAMPOS, in Paulo LEMINSKI, Caprichos e relaxos, p. 7.

4 Ibid., p. 147.

5 Ibid, p. 7.

6 Ibid., p. 131; 79; 86;

7 Dessa época, 1973, um haikai que nunca tive coragem de lhe mostrar:

veia antiga
risque o novo em moscouritiba
em maio com leminski


8 Antonio RISÉRIO, Catatau: cartesanato, José, nov. 1976, p. 1.

9 Ibid., p. 3; 1; 4.

10 Paulo LEMINSKI, Catatau, p. 60; 76; 2; 89; 28; 138; 7; 133; 117 (aqui, a citação do sapo totêmico de Bashô, em seu memorável flagra); 128; 188; 108; 144. Registro ainda uma pequena homenagem do "irmão em poesia" (à época, eu editava Rascunho página literária dominical do jornal Folha de Londrina), na citação:
o ras traz o cunho
do seu pulso
óstia versisovina...

11 Paulo LEMINSKI, op. cit., p. 48.

12 Idem, op. cit., p. 91; 101; 106; 138; 89; 77; 95.

13 Idem, op. cit., p. 49. Idem, op. cit., p. 84; 103.

14 Aná1ise de Antonio Risério, Leminski e a vanguarda, Bric a Brac, 1990, p. 11-3: "Não sei como Leminski chegou ao Oriente. Sei que o Oriente é fundamental em sua vida e em sua obra. (...) É evidente que há, em seu orientalismo, a marca esprit de geómetric do concretismo, rebrilhando com nitidez no plano-piloto para poesia concreta. E é evidente que há também o influxo contracultural, mistura de satori e LSD, rock e zen, Eros e koan. Mas há ainda, a interseção, fragmentos que brilham nos interstícios. É possível viajar, neste aspecto, a partir do ideograma. (...) Leminski via o haicai com olhos experimentalistas: sintaxe de montagem, visualidade da escrita, harmonias fônicas, jogos de imagem, signos que se espelham e se espalham. Mas via também com olhos de andarilho contracultural (...) Leminski colheu a lágrima no olho do peixe", complementa Risério, citando o haikai genial com que Bashô inicia sua viagem a Oku, e que acabou por servir de título ao livrinho escrito por Leminski (Bashô - A lágrima do peixe).

15 Idem, op. cit., p. 97.

16 Ibid, p.98. Um belo haikai é como fotografia revelou fixou, registrava na contracapa de Sashimí, 1987.

17 Ibid., p. 98. Idem, La vie en close c'est une autre chose, 1991, p. 118; 120; 122; 157; 68; 150. A maioria dos haikais constantes neste 1ivro póstumo foram selecionados por Leminski e Alice Ruiz em setembro de 1988. Ele reúne poemas escritos desde os anos 60: "O poeta que aqui se lê, a exemplo dos faraós, construiu uma obra capaz de continuar falando, por si só, como as pirâmides, e transcender mesmo no deserto a aridez da mesmice da nossa finitude", escreve Alice.

18 Idem, op. cit., p. 98.

19 Ibid., p. 99. Idem, op. cit., p. 130; 137; 174; 154; 128; 126.

20 Idem, op. cit., p. 99.

21 Idem, op. cit., p. 96; 98; 96; 98. Idem, op.cit., p. 103; 106; 99. Idem, Distraídos venceremos, 1987, p. 128; 113; 121;7; 112; 116.

22 Idem, op. cit., p. 32-3.

23 Donald KEENE, A literatura japonesa, apud Paulo LEMINSKI, ibid., p.33.

24 Ibid., 33.

25 Reginald Horace BLYTH, Haiku, apud Paulo LEMINSKI, ibid., p. 33-4.

26 Ibid., p. 34. "É uma coisa, não uma declaração sobre fatos", declara Leminski sobre o fato de haikai não ter título (idem, op. cit., p. 103). Título limita: "Já vi muito poeta sofrendo para achar o título para um poema. E eu dizendo, pra que título? O poema não funciona sozinho?"

27 Ibid, 34-5.

28 Ibid., p. 35-6; 40. "Nem de longe tenho a pretensão de que os haikais que, aqui, apresento, traduzidos do japonês, dêem conta da fertilidade de sentidos de um poema que, freqüentemente, é parte integrante de uma pintura. Isto é. um ícone. Um ícone, não tendo sinônimos, não pode, rigorosamente, ser traduzido. É apenas igual a si mesmo: toda obra de arte tem natureza tautológica. Beleza é aquilo que as coisas bonitas têm. Indefinível, beleza não tem tradução. O belo é irrefutável", justifica Leminski. A busca do equilíbrio entre o pleno e o vazio, quando o silêncio pode dizer mais que o discurso, no haikai, resulta num contínuo re-interpretar: "Nenhum haicai está concluído, ele é apenas abandonado, e cabe ao leitor continuar onde o poeta parou", escreveu o poeta americano Raymond Roseliep (apud J. Carlos M. BARBOSA, Planeta, set. 1992, p. 31).

29 Idem, Ahahahaikais: poesia em estado de graça, op. cit., p. 1.

30 Donald KEENE, op. cit., apud Paulo LEMINSKI, ibid., p. 39.

31 Ibid., p. 39.

32 Ibid., p. 44-7

33 Ibid., p 54.

34 Ibid., p. 55 (Kyoto é a velha capital do Japão, antes de Edo, hoje Tokyo; hototoguisu ora é traduzido como rouxinol, ora como cuco; ao ouvir seu canto, Bashô "sente nostalgia por um Kyoto que não existe mais"); 57 (composto por Bashô em Tsuruga, numa de suas viagens, e baseia-se na lenda sobre uma cidade no fundo do mar; "Bashô aproveita o mito para expressar a enigmática natureza da lua, calada como um sino náufrago"); 60 (Bashô, aqui, homenageia sua discípula de haikai Sono-jô, também médica e oculista, e refere-se a urna flor branca do jardim de sua casa, onde estava hospedado, em cuja pétala nenhuma poeira pousara: "Assim, festeja a pureza de vida da poeta, com sutil alusão a seu ofício de oftalmologista, especializada em retirar partículas do olho das pessoas. Minha tradução acrescenta, em português, um kakekotoba, entre 'pupila' do olho e 'pupila' discípula. Muito leve a mão desse Bashô, capaz de retirar o cisco de um haicai da íris de uma flor. O branco, do branco", escreve Leminski).

35 Ibid., p. 79.

36 Ibid., p. 88; 90; 64; 60; 59; 59. "Bashô concentrou a essência dessa cultura [zen] numa forma-miniatura: o haicai. Ele fundou 'o caminho do haikai', um dos caminhos zen-budistas para atingir a iluminação o 'satori' (...) Quando Bashô chegou, o haikai como forma já existia. Era um tipo de poesia humorística, chamada, em japonês, 'senryu'. Tudo o que Bashô fez foi infundir um conteúdo espiritual na pequena forma, dando-lhe uma alma imortal. Mas a graça que havia no 'senryu', o haicai humorístico, não desaparece com Bashô. Só que a graça é agora menos imediata, mais sutil, mais 'poética'. A poesia do haikai é, porém, crua, seca, brutal, fiel à percepção zen das coisas", afirmava Leminski in Ahahahaikais: poesia em estado de graça, Anexo, Diário do Paraná, 3 ago. 1977, p. 1.

37 Raimundo CARUSO, 5O poemas exemplares, 1995, lâmina 23.

38 Caetano VELOSO, in Paulo LEMINSKI, op. cit., contracapa; p. 84. A "Verdura" (in Outras palavras, 1980) cultivada por Caetano na horta leminskiana: de repente/ me lembro do verde/ da cor verde/ a mais verde que existe/ a cor mais alegre/ a cor mais triste/ o verde que vestes/ o verde que vestiste/ o dia em que eu te vi/o dia em que me viste// de repente/ vendi meus filhos/ pra uma família americana/ eles têm carro/ eles têm grana/ eles têm casa/ a grama é bacana/ só assim eles podem voltar/ e pegar um sol em copacabana

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