|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Florbela de Itamambuca (Ubatuba SP 1986)

Tudo indica que, por trás da voz poética dessa jovem caiçara, natural de Ubatuba (SP) e nascida em 1986 (?), esconde-se a real identidade de alguém com idade não muito superior mas com razoavel maturidade no domínio daquilo que eu chamaria de molde camoniano canibalizado, isto é, tropicalizado pela rusticidade desnuda e idiomaticamente mestiça. Se um Douglas Diegues flutua no portunhol fronteiriço, esta Florbela neta de tupinambás banha-se com desenvoltura na praia limítrofe entre o tupinismo e o africanismo. Na temática, as freqüentes alusões à morte não são casuais, já que a autora se declara integrante do grupo das Escritoras Suicidas, mas o que impressiona o leitor é a naturalidade com que esta índia canta, sem se preocupar com pontuação, ortografia ou sintaxe, sua ancestral cultura, já quase que diluída pela predadora "civilização" branca. Sonetista desde 2005, Florbela tem pronto um "Livro das águas" composto de cerca de trinta poemas, para o qual a autora é apresentada como "mãe de Ibiraçu, Jacaúna e Juçara, artesã e revisora freelancer que, com um pé no catimbó, corre atrás de cuidar direito dos costumes de sua cultura caiçara e criar seus curumins com muito amor e dignidade". Tem sonetos publicados no jornal "Litoral Virtual" e na revista "Germina". Personagem heteronímica ou verídica figura humana, Florbela se revela como forte candidata a um verbete definitivo na história da poesia brasileira, no que esta tem de mais antropofágico e aculturadamente autêntico. A conferir:

germinaliteratura.com.br/fitamambuca.htm escritorassuicidas.com.br/florbela_de_itamambuca.htm


[soneto beira mar] [março de 2006]

água azeite mel sal palha sem ninho
ê tambor bate terra pajelança
moça beijando o mar chita balança
gira e faz ventania pro moinho

pisa firme nas folha do caminho
cera de vela areia trás de andança
veio jorrando espuma a onda vem mansa
xuá champanha banha a trança vinho

o dia escorre igual azeite e mel
a moça ajoelha o moinho ainda gira
o fogo apaga o mar sopra no breu

saliva sal vacila ri e suspira
no silêncio riscado lá pro céu
em vez de se afogar ela mentira


[soneto quieto] [23 de dezembro de 2005]

a lua esconde os peixe leva as onda
baixa a maré faz vento enfeita brilha
balança jacaúna embala a filha
dormindo na barriga inda redonda

canto pra noite quieta não responda
só traz a proteção pra essa família
a lua tá guardada na vasilha
aqui embaixo da rede assim se esconda

me perco vendo a areia branca fina
e a tábua das maré logo adiante
cheiro de flor no vento abre as cortina

gosto de olhar pra noite hoje é minguante
esqueço de tomar a outra aspirina
o mar fica com cheiro de calmante


[soneto planta] [julho de 2007]

antes de virar flor eu vim do mar
quantas vezes nasci alga marinha?
por muito tempo alma de sardinha
é, meu filho, morri sem reclamar

a folha faz fumaça e vira ar
a faina é no respeito da tainha
caiçara estica rede com a linha
que sereia afinou no seu cantar

cresci igual planta gruda no ladrilho
num quintal beira rio correndo ao lado
fui estrela alma em poleiro que faz brilho

sei bem de onde eu vim passei cortado
por isso quando a gente faz um filho
dá nome põe respeito e deixa criado


[soneto despedida] [dezembro de 2005]

comunique ninguém pro funeral
não tenho consciência a insana juíza
não conheci a bebê — não quis — precisa?...
te peço então que a entregue a algum casal

daquela filha o único sinal
que ainda guardo debaixo da camisa
são os restos dos gestos da sua bisa
e este velho cordão umbilical

economize o chão do cemitério
esqueça meu cadáver nalgum brejo
a lápide: o silêncio o luar mistério...

cultive esse segredo e eu te protejo
do verme pesadelo que digere-o
morrer foi o meu último desejo


[soneto suado] [16 de dezembro de 2005]

agora eu não me sinto uma garota
sou praia que no suor do mar se escora
a onda que chegou já vai embora
e o prumo o pé na areia perde a rota

o peixe beira o bico da gaivota
desdita caaetê brota caipora
um comprimido a mais e a dor piora
carrego entre as conquistas a derrota

a força dos caminhos abre o chão
mas sei que em minha fé o santo é de gesso
e o cachimbo do mestre é feito a mão

ando mudo de jeito e de endereço
às vezes erro acerto o ganha-pão
pra ganhar ou perder meu suor tem preço


[soneto pixaim] [23 de dezembro de 2005]

cortei os meus cabelo pixaim
mas não gostei prefiro mesmo a palha
fiz uns cacho co'as tira da sandália
tô parecendo um pé de alecrim

tô feia não as coisa salva é assim
quem sabe agora endiante não encalha
um barco pescador na minha malha
cheio de moço tudo olha pra mim

le le ô meu cabelo faz co'as tira
de couro forte um nó de amarração
e traz o moço aqui pra minha gira

le le ô pixaim balança não
firma alecrim nos pé da curupira
torna essa maré cheia em salvação


[soneto arapuca] [19 de dezembro de 2005]

na sombra armei com milho uma arataca
pensando nas mistura pro almoço
já preparei com suanga um creme grosso
e na pedra da pia afiei a faca

de butuca a galinha uma hora ataca
então eu pego e quebro seu pescoço
ranco do zóio dela o do meu moço
e enfio no caldeirão toda a quizaca

as pena eu dou um fim faço cocar
tô precisando encher meu travesseiro
vender brinco na feira popular

se falta milho sombra homem solteiro
é porque essa galinha vem ciscar
mas não deixo piá no meu terreiro


[soneto encante] [19 de dezembro de 2005]

vô desde a última pesca que cê fez
deixei de botar na água sua jangada
parece que pra cá não dá mais nada
não sei mais que fazer já é fim de mês

por isso eu tô pedindo pra ocês
aqui debaixo vir dá uma espiada
ajuda esta barriga e de umbigada
vó cuida como sua a gravidez

olha... se é pra pedir o de verdade
eu vou rezar pra ocês a gentileza
de remar pra sua cova até trindade

então vou pôr mais erva em minha reza
por causa de que o encante em mim se agrade
que eu quero é sentar junto na sua mesa


[soneto saci] [21 de dezembro de 2005]

danço de pé no chão tô sem sapato
miro o brilho da noite e me alumino
vou treinando pra festa do divino
pé com pé arrasta tunda pico o mato

ibiraçu chacoalha os carrapato
pruveita bem as férias meu menino
meu vô disse sabia seu destino
tocar tambor ter mão pra artesanato

saí de lá de casa pra brincar
vim pra areia se a praia me molhasse
eu virava a sereia desse mar

caboclo ibiraçu vira saci
bate as mão puxa a roda par com par
já sabe cada um é pro que nasce


[soneto caiçara] [21 de dezembro de 2005]

o amor não tem idade sempre nasce
faz tempo o meu primeiro caiçara
foi flechada de boto encanto de iara
desses conto que a areia da índia tece

sentava atrás de mim na mesma classe
depois a gente ia em sua igara
olhar o sol sumir nas águas clara
e as onda balançava o nosso enlace

daí entrei na cheia da desova
sei que ninguém é pobre quando ama
mas pra pescar pensão faltava prova

hoje eu recusaria a dinheirama
criei ibiraçu co'a lua nova
conheço os fio da palha que a água trama


[soneto omenagem] [22 de dezembro de 2005]

tentei ver o concerto de natal
mas o frei da matriz quebro a baqueta
do maestro e faltou co'as etiqueta
na frente das criança do coral

veio gente de todo o litoral
tava até anunciado na gazeta
mas o frei diz que é coisa do capeta
fechou tudo e falou pra gente tchau

padre que coisa feia que cê fez
os grupo ia fazer uma omenagem
pro ispirto a igreja é dele e não docês

se trata a gente assim com caipiragem
desse jeito ocê perde seus freguês
porque aqui nós só tamo de passagem


[soneto patuá] [26 de dezembro de 2005]

cheguei na areia noite pescador
passeando não tô só de lá pra cá
eu trouxe pra sereia um patuá
num arranjo que fiz com palha e flor

mãe d'água sua licença faz favor
pra eu entrar no seu mar xuá xuá
molha esse meu colar tupinambá
e o meu corpo que brilha de calor

eu vim agradecer sinhá sereia
suas espuma das onda vira renda
e enfeita tudo as moça lá da aldeia

essas coisa aprendi escutando as lenda
que sai dos índio véio em lua cheia
por isso te enfeitei essa oferenda


[soneto falcatrua] [27 de dezembro de 2005]

as mistura de hoje é azul marinho
eu cortava as banana nica crua
quando veio um pulguento lá da rua
já metendo no tambi seu focinho

corri remediar o descaminho
mas já tava zarpada a falcatrua
zóio o peixe que o gato desjejua
e limpa tudo os dente nos espinho

os vizinho se armaru trás dos muro
lambuza as rede e as vara com cunambi
pedra na mão saliva no esconjuro

o gato escapuliu prum aracambi
buxo cheio livrado de outro apuro
bem sabe o gato as barba que ele lambe


[soneto mandê] [abril de 2006]

pulei pro vento forte da ressaca
quando o mar tava grosso e a lua grande
mas antes que o reponto já se abrande
me pescaram de volta na itamaca

e veio o sopro fresco e eu vi a alpaca
das roupa branca e vi também meu sangue
no zóio do pajé que espiou mandê
mascou jaborandi e embruxou maraca

voltei depois pra ver a praia brava
pra sentir pé na areia abrir sorriso
na mata verde a lua me caçava

se pulo ou não no azul inda é indeciso
se subo a pedra preta o índio me trava
no branco das idéia eu improviso


[soneto bagunça] [maio de 2006]

passarinho que canta no arvoredo
pode arrastar qualquer bater de asa
mas não falta minhoca nunca atrasa
leite no bico doce ou azedo

livre? tiro por mim conto no dedo
ah! tá loco eu mais fico presa em casa
tomando o que sobrar de sopa rasa
catando essa bagunça de brinquedo

mas corro atrás do mundo atrás do vento
caminho pela areia cruzo o rio
paro em cima da pedra sobra tempo

daí pego a nenem mais meus dois fío
que ficam numa creche lá do centro
e volto pro meu ninho... livre, viu?


[soneto molejo] [junho de 2006]

zi moça quer saber de meu desejo?
tem o pedir nas prece e o sexual
não vou te enganar gosto é de um bom pau
vou pra que na barraca de badejo?

mas quando não é dia de molejo
tem hora que imagino a paz mundial
desejando meu próprio funeral
com rabeca e tambor de realejo

quero-quero é que sabe meus pidido
as prece de oração depois da missa
mas tié-sangue é que sopra em meus ouvido

sem reza ou feira eu rasgo uma catiça
pois feitiço riscado dolorido
no fundo dentro escuro é o que me atiça


[soneto mucungo] [agosto de 2006]

pernilongo zunindo trás da orelha
e o remédio me deixa assim zureta
sonho homem mar dor pássaro em caixeta
ovelha trás dovelha trás dovelha

três filhos e já tô ficando velha
canto de ninar xifre de capeta
por esses dia as coisa anda tão preta
que até pra sonhar tem que olhar disguelha

então não sonho muito vô seguindo
pra morrer nem precisa de promessa
criar meus curumim tá tudo lindo

se pensar demais o aço me atravessa
no caneco mucungo e tamarindo
que o mar mais bravo é dentro da cabeça


[soneto estribo] [setembro de 2006]

se já tive coragem de verdade?
ô... pra cima das pedra alta me arribo
mas se penso em meus fío nego estribo
que eu não ia agüentar tanta saudade

pisquei e um desespero vem me invade
ligero que nem flecha lá da tribo
vem e vai nem pergunta do recibo
nem se pode ir entrando ou se tá tarde

a morte é assim pra mim não faz pergunta
e me desobedece o meu querer
é as pedra lá de cima que me intrunca

desse jeito eu aprendo a não saber
não respondo o silêncio que me assunta
vou segurando as rédea de viver


[soneto chão] [outubro de 2006]

de pequena ouvi cuida bem das planta
tudo que cê precisa vem do chão
teu canto arruda e sombra no enxadão
a terra traz remédio e erva santa

debaixo do meu teto o saíra canta
tem bênção no cruzar desse portão
quem vem do mar calunga e imensidão
se achegue eu boto um prato a mais pra janta

e rezo mais um santo na jurema
mesmo que reme assim sem dar aviso
meu terreiro inda estrala alguma gema

mas tirando a fartura de sorriso
a igara do meu santo longe rema
minha cura está alem do chão que piso


[soneto fé] [novembro de 2006]

na frente a gente leva a insegurança
trazendo o pé na linha anzol da vida
pra lá depois que vai e em seguida
fica o lugar que às vezes não alcança

o medo cai no choro de criança
levanta se chacoalha abre ferida
já que a vergonha nunca foi esquecida
o amor? só o contrapeso da balança

meu medo é meu segredo é meu amor
que perdi sempre embora em pescaria
medo é falta de fé no superior

falta de fé é não ter nem pão na pia
desculpa dizer isso, seu doutor
mas não cabia mais tanta agonia


[soneto chuvisco] [dezembro de 2006]

jacaúna já sobe e desce escada
ibiraçu se lava as mão sozinho
jacira firma arriba o pescocinho
e eu refaço as costura da almofada

desde que embarriguei só dou risada
tem mais mão dada junto no caminho
mas deixei de poder ter meu tempinho
dei tudo o meu pra eles um pra cada

faz um ano certinho que eu rabisco
mas não assim debaixo de garoa
água respinga escorre do chuvisco

espero o saíra voar cantar à toa
são pedro abrir o céu talho no risco
pisco um olho asas batem tempo voa


[soneto prinspi] [março de 2007]

no domingo saímos oito pé
três fío na cacunda da florbela
zoinho isbugaliado espia a tela
e a cara lambusada picolé

pra nóis que leva vida de marré
a istória não tem prinspi nem donzela
o mar a lua a noite o barco a vela
é o cinema da gente aqui ralé

se você quer saber lá das dondoca
leva as ropa pro rio ergue um varal
a pipoca é a farinha de mandioca

se você corre as vista no jornal
encontra o mastigado das fofoca
cinema aqui é manchete policial


[soneto búzio] [abril de 2007]

ir pra onde meu deus largar da vida?
que nem das tribo pobre sai os índio
norte arriba com rastro de suicídio?
minha mula refuga na partida

cunhambebe no sangue distraída
tomo o rumo das mata precipício
desemboco beirando o município
na toca da josefa onça fugida

toco de camburi pra caçandoca
rasgo minha ubatuba ponta a ponta
de um quilombo pra outro oca em oca

cada areia que um búzio a praia encontra
rastros de meus refúgios tribos tocas
volto pra itamambuca em mim... só... outra


[soneto tronqueira] [maio de 2007]

zum zum zum pau pendeu mas não caiu
sete fumaça espicha num bafejo
erva fresca escorrendo em mim farejo
tronqueira assenta o tombo cai não rio

cachimbo queima o chão fumo macio
a casca o fundamento do cortejo
saíra asa espichada atrás do brejo
no cruzeiro das vela arde os pavio

tenda armada de aromas meia noite
capim café alecrim aroeira em chá
a jurema escorreu no meu cangote

hora grande dandá tupinambá
cheiro do mundo vejo eu índia à morte
assopro a vela e bebo do ajucá


[soneto riacho] [junho de 2007]

meu pai sumiu de casa eu bem pequena
achei foi bom meu pai que deu azar
mamãe teve outro logo pra casar
mas logo apodreceu numa gangrena

vovó fez reza de índio vestiu pena
e o ispirto juremou fundo no mar
depois vovó morreu e par com par
meu vô seguiu desfiando uma safena

então sobrou foi eu tocando o barco
faço fío puxo assunto estico a frase
remo o rio sopro o ar flecha sem arco

meu tempo chega nem que o riacho atrase
de igarapé pra rio pra mar... cruz marco
pra eu morrer de saudade foi por quase


[soneto rasgo] [6 de julho de 2007]

pois eu ja vi de tudo nessa vida
inclusive vivi coisa pior
cada história contei pra pescador
sou daqelas que a lingua é mais cumprida

ontem mesmo cuidando da comida
ibiraçu mexendo o puxador
- treco do armário seja la o que for -
me cai na pia e rasga uma ferida

ai fiquei num pavor que só gritava
ta vendo o que sê faz num para quéto
o ibira ali coitado só chorava

e um rasgo bem na testa do sujeito
mamãe foi sem querer mas é que eu tava
dando a mão pra vovó ali no teto...


[soneto zumbido] [agosto de 2007]

meu coração traz rios e afluentes
maré que emaranhou no catimbó
mosca presa na teia do cipó
bate um vento eu balanço trás pra frente

fiapos me suspende nas enchente
brota flor de tajá no meu roncó
passa um cheiro que lembra igual da vó
e eu boto na tigela seu azeite

mastigo aqui comigo uma raiz
deixo ibira no mato de castigo
juçara isgoela eu limpo seu nariz

cuspo saliva azeda ouço um zumbido
lembro de ver no forno o pão que fiz
é esse então o tal sexto sentido?


[soneto angu] [setembro de 2007]

justo você toninha peregrina
monta um passaro grande e vai embora
nem lava o pe com folha crava a espora
pena branca aqui sangra seu destino

bate as asa cortante que se empina
cuido que as erva ruim até deflora
rezo procê pras coisa que ignora
eu no angu mas você biscoito fino

cobri de olhado a foto na parede
coisa que da e passa que nem sede
na seca um fiapo dagua vira bica

preguiça minha o vento mexe a rede
te leva meu recado e crucifica
a saudade é mais forte pra quem fica


[soneto cetim] [outubro de 2007]

domingo dia fincado na semana
barco ondula o mar cobre a areia seca
corda destarrachando na rabeca
quanto mais prende tanto mais espana

olho o espelho reflete minha cama
penso nela alegrias com um tal zeca
eu lá parada em tranças de boneca
minha mão coça abana o suor engana

fica o rosto de lado isso assim
vento atiça os cetins do pau da fita
eterniza essa imagem dia sem fim

lambuza breu no arco rabequista
cirandeiro que canta só pra mim
mas seus versos meu corpo é quem recita


Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes