Poemas de Elson Fróes

 

SEM CAUTÉRIO


Aqui a ferida
respira enquanto arde
sua metamorfose
solitária
para saber abrir
flore no ar
à flor da pele
nova

Está aqui e ferve
como se um sol
ardesse prestes
a desatá-la
dor de não saber
incerto tempo
transferir
um eu jorrado
fora

Esta que se recobre
escudo contra
casca sem fruto
polpa em brasa
labora enquanto
segrega sua cola
secreta cicatriz por
coda

Eis aqui o intato
campo de batalha
que o esquecimento
por fim ressecado
cimento tatuado
à superfície remende
e não se relembre 
a furia quando
corta

um sono profundo



AA MARIO QUINTANA


Na cadeira que balança 
na memória
- não fosse um disquete
removível, descartável
dôce lembrança -
seria
a caveira da esperança?



ODE A SAFO

I

Pouco
por tudo     safou-se
por pouco     poupado
mais
	       vitais pela sobra
do tempo     - impunes passados
- o resgate de rejeitos     re-
ciclagem por desgaste
	                        partes
em pó tor-
	             nadas     aos ventos
imortais     (ainda se ouve)
que ao eterno se     move

signo revel
	              desígnio revés


II

	                        Profil-
axia ou porfíria     abrir
porfia     feridas de (órficos)
avessos
	          - phoenix inexata -
impossível dilapidar uma aura
(haurir a musa) a memória
dimanante ainda afia
antes diamante     aflora
teu dia ou noite
	                   luz
não cinge mas sim
	                    jus
tanto no que foi-se
infinita vive     e des-
afia a furia do imanente

a morte não toca
	                   tua lira



AA BERTOLT BRECHT


Ler é questão de largura
a capacidade de enfiar milhares
de pequenas contas num único fio
O entendimento rompe-o
milhares inesperadas contas
rolam em liberdade

Pensam que o saber
é tirar contas dentre milhares
de um vidro e enfiá-las
num fio de pequenos colares
Prefere-se sabe-las rolando
ao chão

Ler é questão de largura
a capacidade de enfiar
milhares de pequenas contas
num fio imaginário
de pequenos colares
O entendimento rolando
solto em liberdade dentro
de um vidro vazio

Pensam que o saber
é tirar contas dentre milhares
de um fio imaginário
e enfiá-las num vidro
Rompendo pequenos colares
o chão rolando
sob o entendimento vazio



ANTIQUI AURORA


fora o que me haure
fora o ar em que ardo das artérias minem
			acesas manhãs
ora ainda destempero
em flor o tempo flamo ao que chama
			contemple-se ora
o quanto a que aero
o vento acenda aquele outro aureo
			o canto que impele
todo em pós em luz
o agora amor em mim hálito divino
			ânfora afora



7:30 am

Mau hálito matinal
1ª cena: paisagem da morte
negar com flúor e
afogargarejar com desejos
de vida (devidamente rotulados
de asséptico e felicidade)

Aqui toda teoria
converte-se em água fria:
desagradável lavar o rosto
em manhã de 10°C

Ao enxaguar-se o fel
que desafia a boca
aqui nesta pia cuspe
de outro dia entre saliva
e sangue de tempo dormido

Aqui o impasse
e o juízo do espelho
mirar o mirar-se
rimar o mirrar-se



	O OURO DO RISO CONTRA A NOITE
		a Néstor Perlongher


Se te corta o ouro do  riso contra a noite
o agonizante membro  exibe a distração que 
daí envolta um  espelho dos raios os dedos 
torceu  com  um  frágil  arco  a  paisagem 
engloba   lábios    brandidos   ao   redor 
atravessada não  mais nem sequer à invasão 
dos olhos depois  da quente chuva primeiro 
refracta   de  branco   estanque  deixando 
dentro de seu tremular que pensa o impulso 
de espuma  congelada  senão sustida ou sem 
pousar-se no campo da memória aterrissa se 
te sobe  eletrizado instante  ao levitar e 
sair o  motor de  sucessivos agoras um mar 
que as  realidades ou  a luz  desperta com 
seu giro  transpasso a voar no  cenário se 
reação  nem tanto à  velocidade da visão a 
língua no zênite de pernas  às  vezes onde 
segue até por via de multiplicar ao brilho 
de estrelas o ouro  do riso contra a noite			 




AFFAIR


Homem de palavras no papel
  mulher de pose nua

Escrito sobre o corpo
  perderam o sono

Um pingo na página dela
  borrou o cabeçalho



C'EST LA MORT


Do morto, restos do mundo
porque sim esquecer
este safado? ao eterno
safou-se? absoluto:
abismo de luto
não vale este putrefo
defunto um puto se
o que vaga no além
voga em sua obra? sobras
de tudo definharemos
como de ti aqui
comodamente sorvemos



MOTE E VOLTAS
	a Rosana Urbes


"Por quê não és
 tal como escreves?"

O ouro de ser um outro
 para aquela que soube
amaldiçoar com precisão
 quem de não ser tão bom
tal saiu-se seu escrito
 pois pensava-se inscrito
o aquém de algum sol
 sem pejo de um despejo
por não pagar aluguel
 além de si proscrito
foi-se depurando revés
 em via de transcende
em vez de esquecer
 eis o "gênio da memória"
de cor e sen saber a
 flor de ferida mais
dor de menos vale mais
 uma vida nova a fel
que move um céu se eterna
 e interna intensa mais
que a que adulando anula

Envoi:
 Teu lance de praga
sempre traga tua graça
 a revolta que detesto
demolindo o que não presto
 o ouro de ser um outro



AA DOLHNIKOFF


Sorvendo
este tipo de poesia
bebendo tinta
tipografia

Madrugadas trocando
socos com o sono
sonhos no olho
vermelho a ver
melhor estrelas

Verve nas veias
vertendo sentidos
versos nervos tensos

Noites em claro
passadas a limpo
deuses descendo no papel
pequeno Olimpo

Quem imaginaria
imprimir a vida
nesta via?



A XÉROX


Lance de feitiçaria
nunca míngua nem minha
essa língua de íons
que transfere energia
onde apenas fere
inesperadas atmosferas
na pálpebra de papel
ápice do índice:
ânsia insana de saber
o palpável sabor



CAMISA
	a Vasko Popa


Casa separa casa
Pensar com eles

Lava-se sob o sol
Aprende o ar em botão

Casa separa o corpo
Para si e abraça

Acompanha pares
Da gaveta em dobras

Passa depois do sol
Planos e espera

Casa separa para
Secar as asas

Azares comem
O tempo rasga

Despe  o corpo
Traça o destino come

Trapos laços sem
Causa sem sonhos



AFORISMOS


o obscuro é um poema de deus sem face
deus é uma face obscura do poeta
o poema é uma face obscura de deus
a face é um poema obscuro de deus
o poeta é um deus do poema sem face



ISTO É


Se isto
           não for poesia
eu insisto
              até que um
deus imprevisto
                   diga
desisto
           eu não existo



COMPLEMENTOS
a Maria do Carmo Ferreira

Ao sol, fel mente
o que se vê dissolve-se
véu indiscutível

Frio fel do visto
isto é, saudade
do que não vi
vi

Desfio o desafio:
frio fel tecido

Desvisto a saudade
saudo o desvio
desvirtuo a verdade
esvazio o dever

aqui
há que se
aquecer o
que há de
ser

 

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POEMAS DIVERSOS, Ed. Lumme, S. Paulo, 2008, 100p.

 

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