Leminski:
dor e rigor em seus últimos poemas.

Em La Vie en Close o poeta sinaliza a contagem regressiva de sua própria vida. Sinais evidentes deixados também num bilhete-testamento, que o JT publica com exclusividade. *

Ademir Assunção


O poeta Paulo Leminski sabia que tinha pouco tempo de vida. E foi ao encontro da morte com a mesma vitalidade demonstrada em toda a sua obra. Essas são constatações evidentes no livro La Vie en Close — que deixou organizado e que chega às livrarias no inicio de abril, pela Brasiliense — e em um bilhete redigido no final de 1988.
Oito ou nove meses antes de sua morte (ocorrida em junho de 89), o poeta sofreu uma violenta crise hepática, fruto de uma cirrose que há alguns anos comprometia-lhe o fígado. Na época, outubro ou novembro de 88, escreveu um breve bilhete-testamento (que o JT divulga pela primeira vez no Brasil). Boêmio assumido, irreverente, imprevisível, procurou dar um significado maior ao próprio desaparecimento. o documento é cristalino: "Este pode ser meu último texto. Talvez eu repita o destino de Fernando Pessoa, aos 44 anos e do mesmo mal. Nunca estive interessado em envelhecer, eu que sempre amei a juventude. Quero repousar em Curitiba, ao som dos Beatles, com meu kimono de faixa preta. Saio da embriaguez de viver para o sonho de outras esferas." (trecho omitido na matéria original: "Alice: por toda uma vida. Ana: obrigado pela vida que você me deu. Fortuna: você foi demais pra mim. Áurea, Estrela: vou amar vocês até o fim e depois.").
Quando escreveu este texto, morava em São Paulo, no apartamento de uma amiga, a cantora Fortuna. Estava separado da poeta Alice Ruiz, com quem foi casado durante 20 anos. Apesar do susto, conseguiu se recuperar retornou a Curitiba sua cidade natal e onde morou quase toda a sua vida. Nos últimos meses com a Cineasta Berenice Mendes. Mas continuou a beber. O físico de judoca faixa-preta ajudou a disfarçar o quadro crítico de seu mal. Amigos que estiveram com ele até uma semana antes da sua morte, como Arrigo Barnabé e Guilherme Arantes, disseram que seu estado de saúde parecia excelente. A notícia que correu o Brasil no dia 7 de junho de 89 surpreendeu até mesmo os amigos mais íntimos. Ele parecia forte, apaixonado pela vida — como sempre foi — e cheio de planos.
Com o lançamento de La Vie en Close, as evidências saltam aos olhos: Leminski demarcou com extrema coragem e lucidez a contagem regressiva de sua própria vida. Vários poemas estão carregados de pistas, algumas diretas, outras camufladas. É o caso de "Dor Elegante", transformado em música por Itamar Assumpção. Na última estrofe, o bom humor de grande parte de sua poesia veste-se com uma lapidar mudança de tom: "ópios, édens, analgésicos/ não me toquem nessa dor/ ela é tudo o que me sobra/ sofrer vai ser a minha última obra."
Afora o próprio título do livro, trocadilho auto-referente com a famosa canção eternizada na voz de Edith Piaf, o poeta há anos vinha preparando um terreno conceitual para seu desaparecimento precoce. Não foi por simples motivos financeiros — como alegaram críticos emburrados — que traduziu Sol & Aço, de Yukio Mishima, em 85. Como o samurai japonês, Leminski disse um sonoro não à mediocridade e às misérias do cotidiano dos dias atuais.
— Ele chegou a verbalizar pra mim que tinha escolhido esse caminho. Ele disse no Natal de 88 que o destino dele era o mesmo de Mishima. Não sei exatamente se a tradução de Sol & Aço induziu. Acho que deu um fundamento, uma estética. O livro do Mishima é uma apologia ao suicídio honroso. Paulo transformava tudo em evento, em signo diz Alice Ruiz, mãe das duas filhas do poeta, Áurea e Estrela.

Fabbro furioso

Leminski não chegou ao ato extremo como o próprio Yukio Mishima, ou como Torquato Neto, Iessiênin ou Maiakovski. Mas não há exagero nenhum em comparar sua trajetória vigorosa com a de Jimi Hendrix, Janis Joplin ou Jim Morrison. Erudito, culto, poliglota, não passou incólume, no entanto, à geração rebelde e furiosa dos anos 60.
"Nós somos de uma geração que sonhou muito alto. Em algum momento, acreditamos que realmente pudéssemos mudar o mundo", atesta Alice Ruiz, num depoimento emocionado. "Hendrix, Janis Joplin, eram pessoas que pareciam ter muita pressa realmente. O Paulo não morreu no auge dos seus 20 anos, mas no auge dos 40. Morreu no ponto máximo, no apogeu".
O próprio poeta orgulhava-se das canções que tinha composto, muitas transformadas em verdadeiros clássicos na voz de Caetano Veloso, Itamar Assumpção, Moraes Moreira ou Ney Matogrosso. Orgulhava-se também de pertencer à geração que pretendeu "derrubar as estantes, as estátuas, as vidraças". Por outro lado, cultivava um profundo rigor herdado da poesia concreta e da familiaridade com os monumentos literários da humanidade, de Ovídio a James Joyce. Poetas de primeira grandeza, como Haroldo de Campos, perceberam rapidamente a peculiar originalidade de sua poesia: o hábil artesanato aliado à loucura, à urgência e à rebeldia da geração de um Frank Zappa ou de um Rolling Stones.
Segundo Alice Ruiz, a paixão pela juventude e ao mesmo tempo as antenas conectadas com textos de ruptura acompanharam a trajetória de Paulo Leminski desde o início. Catatau, o primeiro livro publicado, ainda nos anos 70, só encontra paralelos nacionais no Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa ou nas Galáxias, de Haroldo de Campos, conforme o crítico Leo Gilson Ribeiro escreveu. Mas nesta própria prosa repleta de abismos e armadilhas verbais, o germe diferencial já estava alojado. No livro, René Descartes tenta compreender o Brasil. Em uma mão, uma luneta. Na outra, um cachimbo recheado com maconha.
— Quando conheci o Paulo, ele já tinha cabelos compridos. Mas já era um cara culto, erudito, só falava de Homero, Ovídio, Pound, Joyce, Rimbaud. Era um clássico aos 20 anos e um rolling stone aos 40. Na realidade ele foi se tornando cada vez mais jovem. Tinha uma irresponsabilidade total da juventude, aos 40 anos — relembra Alice.

A vida se fechando

O rolo compressor da mesquinha sobrevivência nos dias atuais — ele dizia que os artistas são especialmente vulneráveis a isso —, juntamente com alguns baques pessoais, talvez tenha abalado o poeta com uma intensidade maior do que aparentava. Ele mesmo chegou a escrever em um poema que estava se tornando mestre em disfarces. Jamais comentou em público, ou mesmo a amigos próximos, a morte do filho Miguel, aos 9 anos, vítima de um tumor cerebral. Também disfarçou o suicídio do irmão, Pedro. Se ainda estivesse vivo, talvez até se indignasse com a divulgação dessas cicatrizes. "Ele não elaborou a perda do Miguel. Ninguém está preparado para perder um filho" - comenta Alice, emocionada. "Paulo sempre teve uma vitalidade, uma paixão pela vida impressionante. Mas a primeira vez que ele falou em 'pedir a conta' — foi esse o termo que usou — foi no enterro do irmão dele, em dezembro de 86. Talvez todas as pessoas que vão fundo num plano, como o Paulo foi no plano intelectual, acabam descuidando de outros. Ele procurou negar essas perdas
No livro La Vie en Close e em outro volume que deixou parcialmente organizado, O ex-estranho (além desses, deixou Winterverno, um álbum de haikais e desenhos, em parceria com João Virmond Suplicy, e O Gozo Fabuloso, um volume de contos), Leminski abriu a barragem dessas águas turvas em mais de uma dezena de poemas, jamais esquecendo o rigor formal de verdadeiro fabbro, característico em sua obra. Os disfarces tornaram-se poesia de alta voltagem. "Acho o La Vie en Close o melhor livro de poemas do Paulo. É o mais denso, o mais intenso. Ele escancarou todo um lado emocional contido durante toda a sua vida. Fez isso com o rigor que sempre teve. Mas é um livro de um período quando nada mais importa", afirma Alice. "O próprio titulo deste livro é fantástico. Ao mesmo tempo que é a vida que se fecha, é também a vida que se amplia. O close é a aproximação máxima".
Famoso, respeitado, dono de um enorme prestígio, Paulo Leminski realmente ampliou-se ao limite máximo e partiu em direção ao "sonho de outras esferas". Viveu com a intensidade de um samurai zen budista e construiu uma obra seguramente inscrita definitivamente na pele da prosa e da poesia brasileira. Poeta inovador, polemista irreverente, agitador imantado e — fatalidade inquestionável — humano, atingiu uma luminosidade extrema, como ele mesmo escreveu no poema "Sintonia para pressa e presságio": "Eis a voz, eis o deus, eis a fala,/ eis que a luz se acendeu na casa/ e não cabe mais na sala".

Ademir Assunção

 

*OBS.: texto publicado originalmente no caderno Artes e Espetáculos do Jornal da Tarde. São Paulo, 29/3/1991.

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