"e.e. cummings:
OH NÃO!"

MAURÍCIO ARRUDA MENDONÇA


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Oh SLOW ou, o poema dos sussurros, é uma pequena peça que Edward Eastlin Cummings dedicou a uma de suas (inúmeras) amantes a que apareceu no livro intitulado "ETC", com fac-similes dos originais datilografados, publicado por iniciativa dessas mesmas amantes.

  


Como de costume ele aliou extremo apuro técnico a sensibilidade á flor da pele, concebendo uma espécie de poema-epitáfio, reflexão de idade madura. Registro urgente, profano e moderno. Anotação veloz da migração de idéias somada ao impacto emocional: poema-meditação & concentração absoluta.

Oh SLOW além de extrema beleza, apresenta intrincada rede de significados de mensagens a submensagens. Entramos no universo leitura não-linear, simultânea, icônica, que guarda analogia com o fluxo de idéias num cérebro excitado. 0 poeta consegue deslocar a percepção do leitor, deixando-o atento, desperto, aberto a todas as manifestações da realidade. Assim, após uma leitura minuciosa, admitimos seis soluções de leitura; vejamos:

1. NOW OH SLOW OH MY GOD YESS - O motivo principal. Ao pé da letra: "Agora oh devagar oh meu deus simm". É evidente a conotação sexual, de cópula; porém genialmente abordada em sua essencialidade: o orgasmo que culmina com um "sim" (lembre-se do trecho final do "Ulysses" de James Joyce, onde a palavra "sim" tem semelhante importância estilística).

2. OH SO HO - Solução encontrada através da leitura vertical do poema. Sugere em português algo como "Sugere em português algo como "oh assim aaah!". Reitera o cunho de sexo explícito. Um artesanato de gemidos, uma espécie de métrica erótica.

3. NOW LOW GOD - Leitura das três linhas verticais do poema. Aqui verificamos o segundo motivo, a mensagem de caráter transcendental com uma pitada de humor cumminguisiano. Torna-se em português: "Agora 'humilde' deus" - um toque de autopiedade.

4. MY GOD DYE - Trata-se de alternativa secundária. Afirmação de descrença, profissão de não-fé. O verbo "die", morrer, é sugerido por "dye". Obtemos: "meu deus morre"; em que pese a incorreção gramatical resultante.

5. 'Y GO' DYE - Esta leitura é insinuada na terceira linha. Cummings consegue extrair o máximo de significação com um mínimo de palavras, auxiliado pela grande quantidade de monossílabos em inglês. Em português: "eu vou morrer". Alusão ao fenecimento da juventude, à velhice, e também ao langor causado após o ato sexual.

6. HOW SHOW WON - A sexta mensagem a também a mais distante. "Won" é uma palavra arcaica que significa "morada". Temos então: "Como mostrar a morada" Idéia de morada eterna?

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Cummings explora os antagonismos, o sagrado e o profano, eros e tânatos, prazer a transcendência. O êxtase sexual como forma de ascese, de salvação espiritual. O poeta articula ainda e concomitantemente uma reflexão sobre a juventude e o envelhecimento (algo semelhante ao que Joyce tentou em seu "Giacomo Joyce").

O poema é climax perpétuo, sem a construção sintática usual, Com apenas 18 letras Cummings fragmenta as palavras a provoca velocidade; impondo o impacto do tema sobre o leitor. Impacto centrado no apelo universal do instinto - a linguagem do orgasmo. Talvez pela primeira vez o ocidente tenha produzido um poema comparável ao Haiku japonês a nível de economia e significações plúrimas.

Notemos outra das muitas sacanagens técnicas:

NOw Oh sLOw Oh my GOd yess


Através de semelhanças fonológicas no tema principal, Cummings fez perpassar por todo o verso a palavra "NO". Este apelo inscrito no verso, um Não reafirmado, evoca a idéia de um não consentimento amoroso, recusa, hesitação que contrasta com o libidinoso "yess" final: um sibilante "sssimm" de prazer. Este mesmo "não" ainda demonstra uma certa negativa do poeta em acreditar na degeneração, na morte. Mas a riqueza do poema não se esgota aí.

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Conquanto seis leituras principais sejam possíveis, a densidade poético-temática se estende ainda mais. Encontramos variantes interessantes que completam e ampliam o sentido do poema tornando sua interpretação bastante instigante. Resgatamos assim um "estoque" de palavras formadas por espelhismos, sugestões incompletas, inversões etc.:

WOW - NO - DOG - SOW - SNOW - LO - GOOD(B)YE - WWO - ON - WON - WHO - WHY - GO - MYSS - LYE - OWN - HEY - DO - OLD - LOSS - SIN - SEE - SLY - L(E)GS - SOS.

uau - não - cão - semear - neve - eis - adeus - paquerar sobre - morada - quem - por que - ir - falta - mentira/deitar - meu - ei - fazer - velho - perda - pecado - ver - malicioso - p(e)rnas - sos.

Desse estoque de resultantes surgem imprevisíveis microversos. Para citar alguns: onde lemos, "GOD ye", obtemos por uma leitura invertida: "hey dog", aproveitando-se um "H". Em português significa que em lugar de "DEU si" leríamos algo como "ei cachorro!".

Em "MYss" resgata-se a expressiva palavra-tema, "falta" ou melhor, "saudade". "MYss" ainda sugere, ao contrário: "sY M" ou seja, a palavra "sin', que em inglês quer dizer "pecado". O poema aos poucos vai se reforçando com imagens a alusões como em "LOS(s). A palavra "perda" escondida e mutilada no contexto poético. Um aceno à perda amorosa, à mulher que parte após o amor.

As descobertas prosseguem: "SEY GOD", pronuncia-se "see god", em português, "ver deus". Um forte apelo ao antagonismo pecado/prazer. Fica claro que o poeta joga com a expressividade da palavra isolada, realçada pelo contexto, pelos motivos principais. A leitura criativa é imprescindível.

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Com todos esses indícios, Cummings parece querer nos dar um toque para um roteiro de filme: uma transa entre um homem maduro e uma ninfeta; relacionamento de poucas noites de amor em que o homem termina solitário, meditando sobre a juventude e a perda da beleza, abandonado sem qualquer explicação numa manhã de neve. Sim, só Cummings permite este delírio porque sua poesia traça os verdadeiros limites da realidade.

Há que se salientar o caráter icônico, puramente visual do poema. Há semelhanças da obra com a figura de um homem sobre uma mulher em posição de coito, e, sobretudo, com uma cruz invertida; como uma rebeldia ao sagrado.

Os "ss" são os pés do homem. "my" a "ye", são os pés da mulher. Na região pélvica temos "LoW", uma alusão a "SoW", semear, em português. Aqui Cummings elabora uma super metáfora. O ato de semear, procriar, espalhar sementes. Em português a etimologia latina é clara: sêmen, semente, semear.

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Em suma, trata-se de um poema total no qual o poeta explora de todas as formas os dualismos, a hesitação, o medo, a nostalgia, o amor. Consegue fazer convergir a atenção do leitor para as diversas leituras, examinando todas as situações possíveis, como num lance de Xadrez. É sem dúvida uma partitura musical, não-linear, a par com a realidade a sintonizada com o desejo humano - todos os sons do prazer.

Uma versão do poema é praticamente impossível em português. Apresentamos uma série de tentativas que se não atingem o coração do poema, ao menos servem de roteiro para a sua compreensão.

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TRADUÇÕES: MAURÍCIO ARRUDA MENDONCA e RODRIGO GARCIA LOPES
publicado originalmente em Revista K'AN nº 3, Londrina, PR, 1989


Copyright © Mauricio Arruda Mendonça e Rodrigo Garcia Lopes.

 

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